Por muitos anos o nome Dolpo me atraiu como uma mariposa a uma lâmpada em uma noite de verão. Significava um dos últimos lugares do Nepal ainda não explorados, onde a cultura budista tibetana mantinha-se sem influências exteriores. Ler o magnífico "Snow Leopard" do Matiensen e muitos anos depois assistir ao filme "Himalaya" só fez com que minha vontade de visitar o Dolpo aumentasse. Mas, como todo bem guardado segredo, só vontade não bastava e os obstáculos eram muitos. Primeiro tinha o problema do custo. Os poucos visitantes desta região tinham de pagar ao governo uma taxa de US 100 por dia, além de todos os custos inerentes a uma expedição a uma região remota. Depois, para chegar-se ao Dolpo tinha-se de passar pela região de maior atividade guerrilheira maoísta do Nepal e isso representava um considerável risco. E finalmente, o fato de se ter de fazer este trek durante o período das chuvas fazia com que os cancelamentos de vôos fossem muito freqüentes. As histórias de pessoas que ficavam em Nepalganj por dez ou mais dias esperando por bom tempo eram muito desanimadoras. Mas, minha vontade de ir era maior do que os obstáculos e em maio do 2009 tomei um vôo de Katmandu a Nepalganj com a expectativa de voar para Juphal, a pequena pista de pouso que serve a região do Dolpo, na manhã seguinte. Tinha pago as taxas, comprado comida para 20 dias, contratado carregadores e um sherpa meu amigo que conhecia bem a região e estava pronto para minha grande expedição. Ao chegar ao aeroporto, porém, soube que há vários dias não tinha havido vôos por causa de uma enorme nuvem de poeira que pairava pela região. Após uma angustiante espera de 4 horas no apertado, úmido e quente aeroporto nos foi anunciado que o vôo havia mais uma vez sido cancelado. Voltei para o deprimente quarto de hotel barato e esperei até o dia seguinte. A cena repetiu-se da mesma maneira assim como iria se repetir por outros 6 dias. Após uma semana de esperas sem esperança desisti e guardei meus sonhos para outra oportunidade. Enquanto isso ouvia com mais e mais freqüência de grupos de agências européias que estavam visitando a região, o que significava mais e mais influência estrangeira no outrora intocado Dolpo. Claro que os números ainda eram mínimos quando comparados aos do Annapurna ou Everest, mas mesmo assim sabia que se queria ter o tipo de experiência que sonhava era melhor ir rápido.
|
|
Phoksumdo Lake
Foto: Divulgação |
fotos |
1 |
2 |
3 |
4 |
5 |
6 |
7 |
8 |
9 |
10 |
vídeo |
1 |
mapa |
1 |
|
|
|
E então, a oportunidade apareceu na forma de um grupo de amigas que já viajam comigo há vários anos e que assim como eu buscam lugares de cultura preservada mundo afora. Expliquei a elas os problemas de voar para o Dolpo e sugeri que usássemos um helicóptero que consegue voar em condições de clima muito piores aos dos aviões. Apesar do custo significativamente mais alto elas aceitaram a sugestão e no dia 23 de setembro embarcamos no novo helicóptero da Montain Helicopters, o B2, um helicóptero francês que pousa até 6300 metros, muito mais potente do que os das outras empresas. Voamos até Pokara onde pousamos para reabastecer. O tempo que já não estava muito bom piorou e por alguns momentos não sabíamos se iríamos prosseguir viagem. Mesmo na perna final da viagem por várias vezes o piloto cogitou em pousar em plantações para aguardar a melhoria do tempo. Mas, com muita alegria, após duas horas e meia de viagem tensa pousamos no pátio da escola de Dunai, o principal vilarejo do Lower Dolpo, ponto de inicio de nossa caminhada.
Nos próximos quatro dias nossa trilha seguiu o estreito vale de um rio ora quase encostando em suas turbulentas águas ora subindo centenas de metros para desviar-se de magníficos penhascos. Para complicar, muitas vezes o caminho estava bloqueado por deslizamentos de terra recentes e tínhamos de caminhar por trilhas improvisadas instáveis. No segundo dia, justamente em um desses desvios, uma de nossas mulas escorregou e caiu no rio morrendo quase instantaneamente. Ao encontrarmos seu corpo rio abaixo vimos que a sua carga, ao redor de 20% de nossa comida havia se perdido. Apesar de tristes por ela e por nossa carga continuamos, com a esperança de que no Lago Phoksundo pudéssemos comprar o que havíamos perdido. Mas, esse nome mágico era esperado ansiosamente por mim por uma razão muito mais importante. No ano retrasado conversei com um guia inglês que concluiu um projeto muito interessante. Ele caminhou toda a fronteira do Nepal com o Tibete de leste a oeste por 160 dias visitando todas as regiões deste lindo país e me disse que de tudo o que ele tinha visto nada o havia impressionado tanto quanto esse lago. Ao chegarmos ao Phoksundo não tive como discordar. Este que é o mais profundo lago do Nepal é sem dúvida também o mais lindo. Por mais que tenha tirado fotos e observado por dois dias inteiros suas águas, não podia acreditar no tom azul turquesa de suas águas. Algo absolutamente deslumbrante.
O lago também funciona como divisor entre duas regiões completamente díspares, o Lower e o Upper Dolpo, a região ao sul dos Himalaias e a região trans Himalaia, geográfica e culturalmente muito mais relacionada com o Tibete do que com o Nepal. E nesta região algumas jóias nos esperavam. Vilarejos completamente tibetanos cercados de plantações douradas de trigo e cevada prontos para a colheita. Monastérios budistas com mais de 900 anos de idade. Passos com mais de 5000 metros de onde se via um cenário amplo de uma aridez completa e, no entanto belíssimo com mil tons de marrons, cinzas e vermelhos. Cadeias de montanhas se sucedendo a mais cadeias até onde a vista alcançava.
Mas, talvez a imagem que mais levo na lembrança deste lugar tão especial seja a de famílias de três gerações juntas cantando enquanto trabalhavam na colheita, um cortando os pés de cevada com um pequeno foice, outro fazendo pequenos feixes como ramalhetes de flores, outro preparando o almoço em fogareiros improvisados enquanto ao redor as crianças brincavam em grande algazarra, tudo em um clima descontraído, sem pressa e com muitas brincadeiras e bom humor. Olhar a estas cenas tão simples de trabalho familiar me fez pensar muito em como isto contrasta com nossa maneira de ver trabalho, com os horários, o stress e as hierarquias.
Saímos, eu, a Sylvia, a Tera e a Babate, sabendo que tínhamos tido um grande privilégio, o de, por duas semanas, termos visto um mundo que cada vez mais não existe e um profundo agradecimento nos encheu o nosso coração. |