01/08/2010
Chegamos a Tash Rabad, um antigo caravanserai, posto de paradas das caravanas de camelos da Rota da Seda, às 16 horas, mas como aqui anoitece muito tarde saímos para uma caminhada de aclimatação subindo 300 metros acima de nossas yurtas. A vista do vale gramado foi lindíssima e nos deixamos ficar lá no topo desta montanha por mais de uma hora. Já anoitecendo voltamos para as yurtas para o jantar. No caminho de volta encontramos uma amiga de nossa guia e seguimos juntos os 5 para as yurtas. Chegando lá Maria trouxe uma garrafa de vodka e embora normalmente eu recomende não beber em altitude essa era uma ocasião especial. Estávamos a caminho de nosso objetivo, tínhamos tido um dia maravilhoso, durante toda a viagem conversamos e rimos sem parar e, o mais importante, estávamos no Kyrgyzstão e isso merecia uma comemoração! O único problema é que a essa garrafa de vodka se seguiu outra e acabamos fazendo uma grande festa super divertida com as duas simpáticas Kyrgyz. Fomos dormir a meia noite, bastante alegres e como não poderia deixar de ser acordei com uma ressaca razoável, mas que foi um preço pequeno pela noite agradabilíssima que tivemos.
02/08/2010
Saímos às 8 da manhã rumo à fronteira com a China com planos de encontrar o veículo chinês que nos levaria a Kashgar as 11 da manhã, mas após cruzarmos a fronteira Kyrgyz tivemos de esperar por 2 horas. Quando finalmente o ônibus chegou transferimos nossos duffle bags de veículos com alguma pressa e com isso minha bolsa com absolutamente todas minhas roupas e equipamentos acabaram ficando para trás. Só fui perceber mais adiante, mas então minha bolsa já tinha seguido de volta a Bishkek. Desesperado liguei para meu operador chinês que entrou em contato com o operador Kyrgyz e um grande drama começou que só se resolveria 5 dias depois. Por este tempo todo fiquei com a roupa do corpo, um fleece fino e um grosso e nada mais.
Chegamos a Kashgar às 22 horas e encontramos o Luiz Butti, o quarto membro de nossa expedição. Estava se iniciando ali a primeira expedição brasileira ao Mustagata com 7564 metros. Se fizermos o cume seremos não só os primeiros brasileiros a escalar esta montanha, mas também meus clientes se juntarão a um seleto grupo de menos de 15 brasileiros que fizeram um cume desta altitude.
Como chegamos muito tarde e na manhã seguinte saímos cedo não tivemos oportunidade de passear por esta interessantíssima cidade que já foi uma das mais importantes da Rota da Seda. Esta foi minha terceira passada por ela, mas a Mica e o Guto não a conhecem. O Luiz que tinha chegado 2 dias antes nos contou de suas aventuras pelos mercados locais e nos deixou com vontade de ter um dia lá no final da expedição.
03/08/2010
Pela manhã saímos rumo ao Karacol Lake, um lindíssimo lago a 3650 metros que em dias sem vento reflete a majestosa Mustagata criando um efeito espelho deslumbrante. Conforme nos aproximávamos da montanha ela ia aumentando assustadoramente de tamanho e quando chegamos ao lago pudemos sentir o tamanho do desafio que tínhamos pela frente. Quatro mil metros nos separavam de seu cume, quatro quilômetros que teríamos de ganhar nos próximos 16 dias. Acampamos na beira do lindo lago e seguimos para uma gostosa caminhada de aclimatação seguindo minha tática de "active rest", ou seja, mesmo nos dias de descanso caminharemos por algumas horas de preferência subindo para manter nosso corpo em atividade. Chegamos neste dia a 4040 metros e tivemos outra linda vista lá de cima. Voltamos ao nosso acampamento para merecido descanso.
04/08/2010
Saímos às 9 da manhã para uma caminhada de aclimatação mais longa com o plano de chegar a 4400, altitude onde dormiríamos na próxima noite. O problema é que todas as montanhas ao redor do lago eram de rocha poder e muito íngremes. Tentamos algumas rotas e quando estávamos quase desistindo achamos uma mais promissora que se revelou perfeita para nossos propósitos. Por 4 horas subimos por uma escarpada crista e chegamos a 4300 metros de onde se descortinava uma visão perfeita não só do Mustagata como também de uma série de outras montanhas com altitudes entre 6500 a 7400 metros ocupando 180 graus de nossa visão. Fizemos um pequeno lanche, conversamos bastante e descemos por outra crista ainda mais íngreme. Fiquei extremamente feliz com o desempenho de meu grupo e usei a rota difícil de descida como treino para agilidade em pedras que pode ser útil para perder altitude rapidamente no Mustagata.
Quando chegamos ao acampamento nos despedimos do guia que tinha estado conosco até então e conhecemos os dois guias de montanhas que seguiriam conosco no restante da expedição. Imediatamente senti que teria um ótimo relacionamento com eles. Ambos já fizeram 4 vezes o Mustagata e um deles, o Norbu tem 4 cumes de Everest e 4 do Cho Oyu. A diferença entre o staff chinês e os dois tibetanos era gritante. A diferença entre o staff chinês e os dois tibetanos era gritante. Com eles era como se estivesse novamente no Nepal.
Ao entardecer tomei um banho gelado no lindo lago e adormeci com o barulho do vento fortíssimo que sopra diariamente das 16 horas a meia noite.
05/08/2010
Acordamos as 6 da manhã e as 7:30 já estávamos tomando café da manhã para seguir para o campo base. Tomamos duas peruas e fomos até o local onde os camelos báctrios nos esperavam para levar nosso equipamento ao campo base, ao redor de 4 horas de caminhada de lá. O lugar me deu a sensação de estar de volta no tempo mil anos. Yurtas, os estranhos camelos peludos, os homens com seus chapéus típicos e a paisagem extremamente árida ao meu redor me remetiam a algum local em um passado distante. Nossos camelos partiram e ficamos esperando nossos passaportes voltarem da polícia para mais um registro dos inúmeros que existem na China. Só que o tempo passava, o céu ia se cobrindo de nuvens pesadas de chuva e nada. Três horas depois finalmente fomos liberados e partimos para o campo base. A caminhada seguiu por uma planície quase sem vegetação subindo e descendo e aos poucos ganhando altitude até que atrás de uma colina o agradável acampamento apareceu. Um riacho de degelo, a encosta do Mustagata, ao redor de 40 barracas e montanhas por toda a volta. Esta será nossa casa pelos próximos 15 dias.
Nos instalamos em duas barracas, arrumamos nosso equipamento (menos o meu que ainda não havia chegado) e jantamos nossa primeira refeição preparada pelo Bai, nosso cozinheiro chinês que não fala uma palavra de inglês. Nossos dois guias tibetanos se mostraram super prestativos e mais e mais me afeiçôo a eles. Acho que teremos uma excelente expedição!
Como quase sempre acontece, quando mudo de altitude tenho problemas para dormir. Fiquei rolando dentro do meu sleeping bag e pensado em como minha vida me apresenta sempre com deliciosas surpresas. Quando saí do Everest achava que iria para o Irã ou Marrocos. Acabei indo para o Brasil fazer kite surf. Daí achei que iria escalar o Peak Lenin no Kyrgyzstão e acabei vindo para a China escalar o Mustagata. Que delícia!
06/08/2010
Apesar de não ter dormido muito acordei bem disposto e com muita vontade de colocar os pés na montanha, final já faz dois meses que estou fora das montanhas e isso me faz muito falta. Tomamos café da manhã e saímos para uma caminhada por uma trilha bem formada em direção ao campo 1 a 5440 metros. Logo de início coloquei um ritmo razoavelmente rápido, porém constante e subimos ganhando 400 metros por hora. A cada passo a vista se tornava mais deslumbrante, mas não de uma maneira tradicional de beleza. Aqui você tem de se acostumar com a aridez completa de tudo ao seu redor. E é exatamente isso que dá a beleza ao lugar, uma beleza selvagem, diferente, mas muito atraente.
Após pouco mais de uma hora e meia chegamos ao que será nosso primeiro acampamento a 5100 metros. Estudando a montanha decidi que subir para dormir no campo 1 a 5440 metros diretamente do campo base, um salto de 1100 metros não seria muito seguro então resolvi quebrar a subida em duas etapas. A 5100 metros existe um pequeno platô que usaremos como acampamento provisório por uma noite. Descansamos um pouco lá e seguimos ainda por uma trilha sem neve ao acampamento 1 na borda do glaciar. Chegamos lá com o tempo fechado, mas enquanto descansávamos o céu abriu e pudemos ver a magnífica vista ao nosso redor. Descemos então rapidamente para o campo base onde para minha grande felicidade meu duffle bag me esperava com tudo dentro. Apesar de o cadeado estar aberto e do duffle ter passado por muitas mãos até chegar aqui nada estava faltando. Esses dias todos sofri com a possibilidade de algo ter desaparecido que pudesse comprometer a expedição.
Passamos o restante da tarde preparando nosso mochila para o dia seguinte, e também aproveitei para ensinar alguns dos nós que usaremos na montanha. Meus três clientes tem bem pouca experiência de montanha e de escalada o que não me preocupa já que são fortes e estão com muita motivação, principalmente o Luiz e a Mica. O Guto que é um pouco mais lento que os outros dois está preocupado em comprometer a escalada dos outros dois e hoje chegou a aventar a possibilidade de não prosseguir. Conversei longamente com ele e pelo menos por hora ele decidiu seguir adiante.
No final da tarde, pela primeira vez, começou a chover. Isso coloca em risco nossos planos para amanhã, mas acho que eu já esperava uma mudança do tempo. Nas montanhas nunca se tem bom tempo por muitos dias. O barulhinho da chuva na barraca me deixou um pouco melancólico e me sentindo solitário.
07/08/2010
Acordamos com o céu bastante nublado e passamos a manhã relaxando e nos preparando para a primeira etapa um pouco mais puxada da expedição quando subiríamos ao campo intermediário com mochilas bem pesadas. Montei a minha que ficou com 28 quilos, mas como estava me sentindo bem não me preocupei. Almoçamos e logo em seguida começamos a subida e pouco depois começou a chover alternando com períodos de nevasca leve. Combinei com eles de cada um fazer seu ritmo e nos encontrarmos no acampamento intermediário a 5100 metros, uma subida de 700 metros. Coloquei Gilberto Gil no meu Ipod que cantava muito apropriadamente "O Melhor Lugar do Mundo é Aqui e Agora" e segui em um ritmo de 7 metros verticais de ganho por minuto e em uma hora e meia estava no acampamento. Nossos sherpas que tinham saído mais cedo já tinham montado o acampamento e entrei em uma das barracas e comecei a arrumá-la deixando pronta para quando a Mica chegasse. Um pouco depois ela chega com muito frio e com as mãos doendo. O tempo tinha piorado bastante e com o vento a sensação térmica devia estar abaixo de zero. Derreti neve, preparei um chá quente e em breve todos estavam confortáveis. No final da tarde preparei um prato de noodles com cebola e uma espécie de acelga que jantamos com muito apetite. Passamos o começo da noite jogando cartas e conversando. Todos estávamos muito felizes com o dia e o que fizemos inclusive o Guto que agora conseguia sentir a felicidade de nossa pequena conquista.
Dia 08/08/2010
Acordamos cedo com uma linda vista do vale agora sem nuvens. Após o café da manhã seguimos para o campo 1 apenas 300 metros acima de nós, caminhada que demorou um pouco mais de uma hora. Enquanto nossos sherpas cavavam as plataformas para nossas 3 barracas trocamos nossas botas de trekking pelas botas duplas de escalada e colocamos pela primeira vez os snow shoes (raquetes de neve) já que nesta montanha devido a neve ser muito profunda e fofa não se usam crampons e sim as raquetes. Eu já tinha usado bastante no McKinley no ano passado, mas para o Guto, Mica e Luiz era a primeira experiência. Após alguns passos titubeantes já entenderam com facilidade como se tem de caminhar. Como o tempo ainda estava bom propus que subíssemos por uma hora para ajudar a aclimatação. A inclinação geral do Mustagata e ao redor de 25 a 30 graus então não exige técnica alguma de escalada, porém esta mesma inclinação suave faz com que a distância horizontal entre os campos seja razoavelmente longa.
Agora podíamos ver o lugar maravilhoso onde nos encontrávamos. Olhando para cima víamos uma longa encosta nevada até onde a vista alcançava. Para baixo aos dois lados desciam duas línguas de glaciares com penitentes branquíssimos contrastando com a aridez completa do restante da paisagem. E lá, 1200 metros abaixo as barracas coloridas do acampamento base. Apesar de estar fazendo um esforço considerável com a neve afundando mesmo com os snow shoes estava extremamente feliz. Em uma hora ganhamos 220 metros e achei que estava bom para este dia. Se estivesse sozinho teria seguido até o campo 2 a 6300 metros apesar da dor de cabeça que começava a se manifestar, porém resolvi que para eles os 600 metros que tínhamos ganho estavam adequados para nossos propósitos. Estou bastante feliz com o rendimento deles e muito otimista com nossa escalada embora tenhamos pela frente ainda muitos dias. Voltamos para a barraca, jantamos e novamente jogamos cartas até as 19 horas quando o Guto e o Luiz foram para suas barracas e a Mica adormeceu em instantes. Fiquei ouvindo música confortavelmente coberto pelo meu sleeping bag quente demais para a temperatura deste campo 1. Esta experiência de guiar uma montanha tão alta está me dando confiança e vontade de guiar o Cho Oyu em um ou dois anos.
09/08/2010
Acordei descansado como nunca antes nesta expedição apesar da grande inclinação lateral da barraca que me fazia escorregar em direção a Mica por toda a noite. As nuvens cobriam o vale e o tempo devia estar bastante feio no campo base já que o Norbu se surpreendeu quando pelo nosso contato de rádio das 8 da manhã lhe disse que lá no campo 1 o céu estava descoberto. Mas, apesar disso o frio estava intenso e demoramos muito a decidir-nos sair dos sleeping bags para tomar o café da manhã. Em seguida escolhemos as poucas coisas que levaríamos de volta ao campo base e começamos a descida sob um vento glacial. Como sempre acontece em expedições, o campo base que na chegada parecia um tanto austero, ao voltar dos acampamentos de altitude parece um lugar muito aconchegante. Nos dedicamos nas próximas duas horas as atividade normais de campo base, lavar roupa, tomar banho, arrumar a barraca e as mochilas para amanhã quando voltaremos a subir para o campo 1 e no dia seguinte ao campo 2, nosso segundo e último ciclo de aclimatação. Depois disso temos dois dias de descanso e então o ciclo do cume dependendo, claro, de como o tempo se comportar.
10/08/2010
A manhã transcorreu de forma tranquila aproveitando os últimos momentos de temperaturas agradáveis antes de enfrentarmos os rigores da altitude. Após o almoço subimos o agora já bem conhecido caminho rumo ao campo 1 desta vez com 27 quilos na mochila levando tudo o que queríamos deixar nos acampamentos de altitude para que no ciclo do cume pudéssemos subir leves. O tempo estava bom e a subida foi rápida apesar do peso. Mesmo tendo ficado apenas um dia no campo base me sentia recuperado e bastante forte. Porém, o Guto não se sentia da mesma forma e após o jantar nos comunicou que não iria prosseguir. No dia seguinte voltaria para o base e não mais voltaria a subir. Com muita tristeza aceitamos sua decisão sabendo que a expedição perderia parte de sua graça sem a sua alegria e generosidade.
11/08/2010
Acordei com o céu azul e sem vento após uma noite não muito bem dormida por causa da inclinação da barraca que me fazia escorregar para baixo e para o lado. Às 9 horas da manhã conforme o combinado os dois carregadores que tínhamos contratado chegaram para levar 4 barracas e comida além de parte do equipamento da Mica e do Luiz. Apesar do preço elevado, 10 dólares por quilo, era importante que eles não se desgastassem fisicamente para chegar bem nesta próxima altitude do campo 2. Tínhamos dormido a 5450 metros e o campo 2 fica a 850 metros acima, uma diferença considerável para um dia. Nos despedimos do Guto e seguimos nosso caminho já com os snow shoes por um zig zag pouco inclinado. As formações de gelo contrastavam fortemente com o céu azul escuro criando efeitos surreais. Em uma das paradas de descanso conversei com o Chris, um guia da Jagged Globe, uma empresa de escaladas inglesa, que já tinha encontrado no Cho Oyu no ano anterior, e ele me disse que tinha uma previsão de tempo suíça que dizia que o tempo iria ser bom por mais dois dias e depois iria virar entrando ventos fortíssimos de até 100 km/hora no cume. Continuei escalando e pensando muito nesta informação. Nós três tínhamos dormido bem, nenhum de nós tinha tido dor de cabeça à noite, estávamos com bom apetite e fortes. E se tentássemos o cume neste ciclo? Era uma decisão um pouco arriscada, mas se desse certo poderíamos ter uma semana viajando um pouco pelo China explorando esta região tão rica culturalmente e poderíamos encontrarmos com o Guto novamente. Fazer um 7500 em 10 dias?!?!? Decidi esperar para ver como seria nossa noite a 6400 metros para daí tomar uma decisão.
Eu sabia que esta montanha era muito fácil tecnicamente, mas não esperava que as dificuldades se resumissem a travessia de apenas uma cravasse usando uma desnecessária corda fixa. Estávamos trazendo piqueta, cadeirinha, corda e mosquetões e vi que tudo isso era desnecessário, poderíamos levar tudo de volta e economizar peso.
Chegamos ao campo 2 após apenas 5 horas de escalada e montamos o acampamento em um bonito platô de neve fofa onde já estavam outras 10 barracas dando o colorido tão bonito aos acampamentos de altitude. Todos se sentiam muito bem e tínhamos feito o percurso do campo 1 ao campo 2 em um ótimo tempo. Conversei com eles sobre a possibilidade de tentar o cume em dois dias e eles ficaram super entusiasmados com a idéia. Minha responsabilidade ao propor esta idéia era muito grande e isso pesava sobre meus ombros. E se um deles passasse mal? Tentar o cume de uma montanha de mais de 7500 metros em apenas 10 dias era um tanto arriscado, mas como tínhamos bastante tempo para uma nova tentativa podíamos a qualquer momento parar e voltar e ainda assim ter mais uma chance de cume. Decidimos ver como passaríamos a noite para então tomar uma decisão. Nos acomodamos os três em uma das barracas e jantamos pela primeira vez a comida liofilizada de altitude que tínhamos trazido – Pasta Alfredo com frango – bastante saborosa apesar pouco calórica, apenas 450 calorias por pacote que Ra recomendado para duas pessoas e que comemos um cada um, isto é, eu e o Luiz já que a Mica que é vegetariana, um grande problema em montanha, comeu um noodle. Apesar de estarmos em três na barraca acabamos dormindo melhor do que no campo 1 já que desta vez o chão estava plano. Nossos jogos de truco, atividade normal das últimas noites não aconteceu já que o Guto tinha descido. Conversamos um pouco dentro de nossos sleeping bags e após a Mica e o Luiz terem adormecido fiquei acordado ainda mais algumas horas ouvindo música e pensando na minha decisão de tentar o cume. Adoro guiar, mas às vezes também sinto falta de estar em expedições só com amigos onde o peso das decisões é dividido entre o grupo e não apenas meu.
12/08/2010
Vejo sua saturação e está 68, bastante baixa mesmo para esta altitude. Decidimos esperar um pouco e medir novamente após o café da manhã. Ela come com apetite e me diz que a dor de cabeça está melhor. Com a saturação subindo para 71 e a dor de cabeça melhorar decidimos continuar para o campo 3, mas após apenas 50 metros ela nos diz que está muito cansada e que não quer continuar. Decido continuar com o Luiz que está muito forte. Nos abraçamos e parados vemos aos poucos a Mica e descer de volta ao campo 2 onde ficaria esperando o Norbu que está subindo ao campo 3 levando parte de nosso equipamento Seguimos subindo ganhando lentamente os metros que nos separam do próximo campo a 6800 metros. Por 3 horas subimos rapidamente, mas a altitude começa a se manifestar e nosso ritmo cai vertiginosamente. Pelos planos originais era para estarmos descendo ao campo base para dois dias de descanso e não subindo para quase a altitude do Aconcagua para dormir. Como sempre que tenho um grande desafio pela frente procuro quebrar em objetivos menores para com isso não desanimar. Decido fazer paradas de descanso a cada 60 metros e com isso vagarosamente chegamos a 6700 metros, 100 abaixo do que seria nosso acampamento 3. Faço contato pelo rádio com o Norbu para ver se ele já está descendo para acompanhar a Mica de volta ao campo base e ele me diz que está a 6880 metros e ainda não havia encontrado o campo 3. Esta montanha por ser de inclinação tão suave não tem campos muito bem estabelecidos e as expedições montam seus acampamentos onde lhes parece melhor. Um pouco preocupado com o Luiz que está muito cansado digo para o Norbu montar o acampamento onde está e descer o mais rapidamente possível para o campo 2 onde a Mica o espera para descer ao campo base. Pelo rádio ele me diz que quer trazer uma das barracas que tinha levado de volta ao campo base e lhe digo que não, que é para ele deixar a barraca e descer. Ele não entende o porque e eu não consigo explicar através do rádio e com o seu inglês básico. Acabo me irritando e dizendo para ele fazer o que lhe digo. Fico frustrado com o ocorrido já que não é desta forma que gosto de me relacionar com os sherpas que trabalham comigo, mas o cansaço, a falta de ar, a preocupação com o Mica no campo 2 sozinha e com o Luiz que visivelmente está ficando mais e mais cansado acabam me alterando. Quando o Luiz fica sabendo que ainda tem mais 180 metros de subida posso ler visivelmente em seu rosto o quão cansado ele está. Continuamos subindo com um passo uma respiração e meia hora mais tarde vejo o Norbu se aproximando. Aliviado com pelo menos um problema a menos, dentro de meia hora ele estará com a Mica, seguimos ganhando lentamente os metros que faltam. Após quase 6 horas de dura escalada chegamos ao campo 3 e desabamos nas barracas já montadas pelos tibetanos. Consultamos o GPS e vemos que na realidade estamos a 6971 metros! Vamos dormir acima do cume do Aconcagua! Apesar de estarmos bem tenho muito medo do que possa acontecer esta noite. O Luiz me conta que normalmente se aclimata bem e que nunca teve dor de cabeça, mas sei que pelo meu histórico esta noite pode ser bem sofrida para mim.
Faço contato com o campo base e a Mica me conta entre muitos chiados e estática que chegou ao campo base e que está bem. Aliviados, nos acomodamos na nossa ampla barraca só com nos dois e preparamos nosso jantar de ovos mexidos com bacon e nos enfiamos nos sacos de dormir enquanto um lindo por do sol nos promete um dia de cume fantástico conforme a previsão do Chris nos dizia. As horas passam lentamente enquanto conversamos e aos poucos vou sentindo a minha tradicional dor de cabeça chegar. O Luiz tem um pouco de dor também, mas nada muito sério. Nos damos boa noite, mas aminha dor já é forte o suficiente para não me deixar dormir. Também fico pensando como será amanhã. Estamos muito alto a apenas 560 metros do cume e se passarmos a noite bem amanhã temos uma chance muito boa de chegar lá. Penso também se serei forte o suficiente para voltar a subir com a Mica após um descanso de dois dias. Fazer duas vezes um cume de 7550 metros em uma semana? Tento dormir, mas a dor de cabeça agora está com força total e o enjôo, companheiro fiel esta se manifestando também. Já conheço o par de muitas outras montanhas, mas desta vez sinto que pode ser mais sério. Comecei a montanha a apenas 10 dias e já estou a 7000 metros. E se isto se tornar algo realmente sério? Ao redor de 11 da noite o enjôo esta muito forte e coloco a cabeça para fora da barraca e vomito todo o jantar. Uma hora depois volto a vomitar e finalmente a dor de cabeça e a náusea melhoram e surpreendentemente adormeço e tenho uma das melhores noites de toda a expedição.
13/08/2010
Se eu fosse supersticioso não teria saído da barraca. Hoje é sexta feira, 13 de agosto, não uma data muito auspiciosa para tentar um cume. Mas, não somos e acordamos bem com boa saturação e decididos a chegar ao cume. Decido não comer nada, apenas tomar água para re-hidratar já que acordo com a boca completamente seca. São cinco e meia da manhã, a temperatura está muito baixa, uma fina camada de gelo recobre o teto da barraca e desaba sobre minha cabeça ao menor movimento. Com muito esforço consigo acender o fogareiro e quebrar alguns blocos de gelo de tamanho pequeno o suficiente para caber na nossa pequena panela que balança precariamente no gelo do avance. Olho para fora e um lindo nascer do sol se anuncia com maravilhosos tons de cor de rosa no horizonte. Tudo é silêncio e calma e me encho de otimismo. Pesar dos vômitos e da dor de cabeça lancinante da noite estou me sentindo bem e o cume está ao nosso alcance. Passo as próximas hora e meia derretendo gelo e após este tempo consigo apenas 4 litros de água. Temos um só fogareiro já que o outro ficou com a Mica caso ela decidisse passar a noite no campo 2. Tomo um litro e meio de água morna e as 6:45 o Luiz começa o longo trabalho de colocar as botas congeladas e se vestir para enfrentar o frio de fora. Só conseguimos começar a escalada as 7:30. A previsão do tempo dizia que a tarde entrariam ventos fortes e estou um pouco preocupado com nosso atraso. Às 4 da manhã ouvi o Chris e seu grupo passarem em gente de nossa barraca e fico pensando se não teria sido melhor sair mais cedo. Frio versus vento, sair para o cume do campo 2 e com isso não se desgastar com uma noite tão alta versus dormir mais alto, mas ter um dia de cume mais curto...tantas decisões difíceis. Peço para o Luiz seguir em frente pensando que em breve o alcanço, mas para minha surpresa a distância entre nós se mantém. Após poucos passos me sinto exausto. Tento me enganar pensando que em breve vou melhorara o rendimento, que o "second wind" virá, mas o que acontece é justamente o contrário. Os minutos vão passando e vou me dando conta que não será desta vez que chegarei ao cume do Mustagata. Após excruciantes 40 minutos vejo meu altímetro e com desespero constato que ganhei apenas 60 metros de altitude. Minhas pernas pesam toneladas e cada passo é um grande esforço. Estou ganhando menos de 100 metros por hora e o pouco que consigo ver da encosta parece inacabável. Não quero deixar o Luiz sozinho, mas vejo que não tenho condições de seguir. Peco para o Luiz parar e lhe digo que não tenho condições de continuar. Ele me diz que está cansado, mas que acha que pode seguir. Despeço-me dele e volto rapidamente para a barraca onde triste e frustrado, mas também muito aliviado me enfio dentro do sleeping bag. Estou com muito frio, resultado de estar sem nenhum alimento por mais de 24 horas. Com muito esforço coloco água para esquentar e como um "power gel". Tomo um litro de água quente e coloco a segunda garrafa de água quente nos meus pés que estão gelados, coisa muito rara para mim e que me diz o quanto estou debilitado. Uma hora mais tarde recebo uma chamada de rádio do Luiz dizendo que esta a 7160 metros e que o tempo está horrível sem visibilidade alguma e que ele acaba de encontrar com o grupo do Chris descendo e dizendo que e perigoso seguir já que a visibilidade mais acima está zero. Fico triste por ele, mas também aliviado em saber que em breve estará na segurança da barraca. Fico dormitando até que ouço o zíper da barraca sendo aberto. O Luiz entra exausto e gelado e lhe dou água quente para beber. Dormimos por 2 horas e decidimos descer para o campo base. Passar mais uma noite em altitude após esta experiência não é algo que nos atraia. Estamos a 7000 metros e o campo base a 4450. Temos mais de dois quilômetros e meio de descida sendo que boa parte dela por neve que a cada hora se torna mais fofa e escorregadia. Voltamos a nos paramentar com botas duplas, snow shoes, casaco de pena, óculos de ski e começamos a longa descida rumo aos confortos do campo base. O que nos motiva mais do que tudo e o reencontro com nossos amigos e o calorzinho do mundo abaixo dos 5000 metros. Após uma hora e meia estamos no campo 2 onde fazemos uma breve parada para verificar o que estamos deixando para o próximo ciclo. Para mim não há duvidas de que vamos voltar para tentar o cume mais uma vez, mas isso também depende do que o Luiz e a Mica irão decidir. Seguimos, passamos pela cravasse agora já sem a corda fixa e chegamos ao campo 1. Com alívio tiramos os snow shoes e as botas duplas e seguimos em botas de trekking pela trilha já sem neve. Após exaustivas 5 horas de descida finalmente chegamos ao campo base e somos recebidos com muito carinho pela Mica e Guto que nos abraçam, nos parabenizam pelo que conseguimos e nos dão uma deliciosa Pepsi. Vamos para a barraca refeitório para dividir o que vivemos nesses últimos dois dias e saber deles também o que aconteceu aqui em baixo. Após o almoço, tomo um delicioso banho que me faz sentir quase pronto novamente para subir e converso com o Guto que me diz que quer voltar para Kashgar e de lá ir para Moscou para lá esperar por mim e pela Mica para a escalada do Elbrus, nosso próximo programa. Vou ver a possibilidade de conseguir um carro para ele para o dia seguinte e fico sabendo que a estrada tinha sido destruída em mais de 10 lugares pela chuva de alguns dias atrás. Estamos presos aqui e não há outra opção a ele se não esperar pela estrada ou por nós descermos do cume. A Mica e o Luiz me dizem que querem fazer mais uma tentativa de cume, o que me deixa muito feliz. A tentativa anterior tinha sido fora dos planos iniciais e por não estarmos aclimatados foi uma tentativa, apenas isso. A próxima será para valer.
Após o jantar vou para a barraca e me deito sentindo o prazer de estar em um lugar já não tão frio, deitado em uma superfície plana e limpo. Adormeço em seguida.
14/08/2010
Acordo cedo, mas me deixo ficar na barraca ouvindo música sem me mexer, sem ler, sem fazer nada. Sinto o prazer de relaxar meus músculos cansados da última investida. Sinto o calorzinho do sol aquecendo a barraca e me lembro de minha descida do cume do Cho Oyu no ano passado quando fiz exatamente o mesmo...nada por horas e o prazer que senti então.
Um pouco mais tarde a realidade da alta montanha nos alcança. Ficamos sabendo que um dos membros de um grupo grande de alemães de uma expedição comercial com dois guias está perdido na montanha e ninguém sabe nada dele. Do grupo de 12 pessoas metade chegou ao cume sem visibilidade alguma e só na descida os guias se deram conta de que faltava um dos clientes. Não se sabe nada a não ser que ele tinha ligado por um telefone por satélite para a namorada na Alemanha e que disse que estava ao redor de 7.000 metros. Depois disso nada... Fomos conversar com o guia para ver se poderíamos ajudar em algo e ele nos diz que estará subindo novamente esta noite rumo ao campo 3 para ver se o encontra. O tempo está cruel, chovendo aqui em baixo, nevando com certeza lá em cima e com visibilidade zero. Voltamos para nosso acampamento deprimidos com a possibilidade do acidente fatal que se desenrola em nossa frente e estamos impotentes para ajudar. Deixamos comida, gás e fogareiro no campo 3, mas infelizmente trouxe os isqueiros para baixo e isso pode ser o fator determinante na sobrevivência ou não desta pessoa que não conheço. Mais tarde ficamos do lado de fora das barracas, no escuro, pensando em como deve ser terrível estar lá em cima, sozinho, no escuro da noite encoberta, com o frio de menos 10 graus, sem comida, sem água morrendo vagarosamente, sem ninguém para segurar sua mão.
15/08/2010
Logo que acordo, vou saber se há notícias da pessoa perdida na montanha e me contam que um dos guias e cinco carregadores saíram as 23 horas da noite anterior rumo ao campo 3 para ver se encontram seu amigo. Não se tem nenhuma notícia deles apesar de estarem com rádios e telefone por satélite.
Lavo roupa, converso com meus amigos e aos poucos vamo-nos preparando para mais um ciclo, mais uma subida. A tentação de dizer chega é grande. O tempo não está bom, a sombra do alemão perdido, provavelmente morto, o cansaço acumulado desses 13 dias de montanha e altitude. Mas, sei também que quero chegar lá em cima e ajudar no que puder aos meus companheiros. Conversamos mais uma vez e decidimos que iremos até o campo 2 e se o tempo não estiver bom abortamos, mas se estiver vamos para o cume.
Às 15 horas o Luiz chega esbaforido e nos conta que o alemão foi encontrado nas nossas barracas do campo 3. Ficamos extremamente felizes e pensando em como a vida tem caminhos estranhos. Se não tivéssemos tentado ir para o cume no nosso segundo ciclo, ou seja, fora de nossos planos originais, na teríamos montado as barracas no campo 3 e esta pessoa possivelmente teria morrido. De qualquer forma, coincidência, Karma, destino ou o quer que seja, ficamos felizes de por uma maneira completamente involuntária termos contribuído para que ele tenha se salvado.
16/08/2010
Acordo bem mais descansado e me sinto pronto para seguir para o cume. A previsão que temos diz que dia 19 terá céus claros, mas ventos de 30 a 50 km/hr. Com mais de 40 km/hr não subiremos, mas esta previsão é de ontem e tem pouca precisão para 5 dias então mantemos nosso plano de ir decidindo dia a dia.
Após o café da manhã vou até o acampamento dos alemães para ver como o que tinha se perdido, Michel, está. Daí acontece um dos momentos mais emocionantes de montanha para mim. Ele é um homem de ao redor de 50 anos e está visivelmente debilitado, mas sem congelamentos de extremidades ou outras lesões. Apresento-me e ele me conta emocionado o que já sabia, que por nossas barracas estarem lá sua vida foi salva. Conta-me de como achou uma caixa de fósforos molhada num canto da barraca e que a secou embaixo de seu braço e com isso foi capaz de derreter neve e comer a comida que tínhamos deixado. No final, com lágrimas nos olhos me abraça e eu também começo a chorar. Sai de lá com a alma leve, feliz de ter de uma maneira indireta salvo a vida de um companheiro montanhista.
No restante do dia nos preparamos para a volta à montanha. O Guto está indeciso, algumas hortas quer nos acompanhar e em outras acha que o sofrimento acima do campo base não compensa o ganho. No final da tarde finalmente decide subir e se junta a nós na organização da comida e equipamentos que vamos levar.
17/08/2010
Decidimos sair apenas após o almoço. A subida ao campo 1 nos tomará ao redor de 4 horas e não há razão para chegar lá cedo. Saímos todos razoavelmente carregados com ao redor de 18 quilos cada um. O Luiz e a Mica disparam na frente e eu fico subindo mais lentamente com o Guto. Ouço meu Ipod, olho a paisagem e me sinto muito feliz. Não sei o que esses próximos dias nos proporcionarão, cume ou não bom tempo ou tormentas, mas não me preocupo muito. A expedição está ótima, estou me divertindo muito, adorando a companhia de meus amigos e, como sempre, realizado de simplesmente estar nas montanhas.
Quando faltam 100 metros para o campo 1 o Guto me chama e diz que está extremamente cansado. Me ofereço para carregar sua mochila e ele aceita agradecido. Aviso-lhe que se está se sentindo assim não há sentido em continuar montanha acima e ele concorda e me diz que amanhã descerá. Fico triste, pois acreditava que poderíamos os três tentar o cume, mas cada um tem de decidir o que é melhor para si. Quando chego à barraca o Luiz me conta que a Mica também teve problemas na subida, não por cansaço, ela e extremamente forte, mas com uma dor no pé que ela já tinha tido no Nepal. Ela me conta que amanhã se a dor persistir também voltará.
Fazemos as atividades normais de chegar ao campo, pegar neve, derreter para podermos nos hidratar, cavar um buraco que sirva de banheiro e logo após o jantar vamos dormir.
18/08/2010
Assim que acordamos pergunto a Mica se está melhor e ela me diz que teve dor a noite e quer descer com o Guto. Não tento convencê-la, o que temos pela frente é bastante duro e para subir cada um de nós precisa estar bem e com muita vontade e garra. Nos despedimos e o Luiz e eu seguimos em direção ao campo 2 juntamente com um dos guias tibetanos. Pedi p;ara o outro descer juntamente com a Mica e o Guto.
A subida é dura, mas já estamos mais aclimatados e ganhamos os 1000 metros em poucas horas. Mas, ao chegar ao campo 2 temos uma triste surpresa, ficamos sabendo que um de nossos vizinhos italianos de campo base havia morrido entre o campo 3 e o 2. Seus dois amigos estão chorando quando seu corpo e trazido para o campo embrulhado em uma barraca pouco depois que chegamos. Tento entender o que aconteceu, mas eles não estão em condições de fazer um relato muito claro. Do que entendo do pouco inglês deles eles estavam os três subindo do 2 para o 3 quando um deles se sentiu mal. Decidiram que ele desceria para o campo 2 e esperaria lá enquanto os outros dois tentariam o cume e voltariam a se encontrar no campo 2. Os dois tentaram, mas o mal tempo os obrigou a abortar a tentativa e ao voltarem do 3 para o 2 encontraram seu amigo morto. Como as vezes a hipotermia severa simula morte peço para abrir a barraca e ver se ele realmente estava morto. Vejo um rosto enegrecido resultado de exposição ao frio extremo por muito tempo e concluo que não há mais nada para fazer. Ver a morte cara a cara mexe comigo, claro, mas há muito tempo decidi que este esporte tem seus riscos e que não maioria dos casos existe um erro, uma má decisão associada a uma morte na montanha. Neste caso os dois que subiram quebraram uma regra básica. Nunca se deve deixar alguém que não está se sentindo bem sozinho, aliás, de preferência nunca deve-s e estar só nas montanhas. Sei que esses dois italianos vão levar para o resto de suas vidas esta dor e arrependimento. Sinto uma profunda pena deles e procuro consolá-los da melhor maneira possível. Daí eu e o Norbu fazemos uma pequena oração tibetana e voltamos a cobrir o corpo. Cinco carregadores o levam montanha abaixo...
O clima em nossa barraca não poderia estar pior. O Norbu está muito abalado e propõe que voltemos para o campo base alegando que o tempo está muito ruim, mas percebo que a razão é outra. Os tibetanos são extremamente supersticiosos e ver uma pessoa morta no montanha mina toda sua confidência. O tempo realmente não está animador. O vento aumentou muito e a visibilidade está bem pequena. Cai uma leve nevasca e o céu está cada vez mais cinza, mas quero acreditar que a previsão está correta e que amanhã o dia vai melhorar. Vamos dormir mal acomodados, 3 em uma só barraca e tristes com o que aconteceu.
19/08/2010
Acordamos e o tempo ainda não melhorou. O vento não está muito forte, mas está um frio tremendo e o céu continua carregado. Nos aprontamos e saímos com mochilas ainda pesadas e começamos a longa rampa que sobe constantemente rumo aos 7000 metros onde deixamos nossas barracas. Após uma hora de escalada checo o meu altímetro e vejo que ganhamos 200 metros, um excelente ritmo para esta altitude. Sinto que temos boas chances de nos tornarmos os primeiros brasileiros a chegar no topo do Mustagata, mas para isso precisamos de um pouco de sorte com o tempo. Conforme as horas vão passando, porém o tempo vai se deteriorando, o vento aumenta muito com rajadas de mais de 50 km/hora e o frio se torna quase insuportável. Quando chegamos a 6700 metros nosso ritmo está ainda mais lento. O vento constante sempre em nossa cara mina nossas forças. Deveríamos parar para comer algo, mas o frio é tão intenso que qualquer parada significa perder o precioso calor gerado pelo exercício. Um pouco mais adiante resolvo colocar minha face mask. Meu queixo está adormecido e sei de experiências anteriores que se não me proteger em breve terei congelamento superficial de pele. Tiro minhas luvas e em poucos segundos sinto que minhas mãos estão perigosamente frias. Olho para o céu e o que vejo me amedronta. Grossas nuvens negras se aproximando. Fico em dúvida por um momento, mas o bom senso prevalece e chamo o Luiz e proponho que voltemos. Com alívio ele concorda. Também ele está percebendo que estamos entrando em uma situação de risco que não vale a pena correr. A expedição até agora foi maravilhosa e não queremos arriscar nossas vidas por este cume. Aviso ao Norbu que vamos voltar e posso ver em seu rosto a alegria que esta decisão provoca. Ele me diz que vai subir até o campo 3 para recolher as barracas e eu e o Luiz iniciamos a descida de 700 metros de volta ao campo 2. O que levamos mais de 5 horas para ganhar nos custa muito pouco para perder. Em uma hora estamos de volta a nossa barraca, mas a perspectiva de passar mais uma noite desconfortável no campo 2 nos faz decidir em descer ainda hoje ao campo base. Em meia hora o Norbu está de volta nos contando que não conseguiu achar as barracas e como o tempo estava muito ruim decidiu descer e deixá-las lá. Talvez elas tenham voado nos diz sem muita convicção. Não acredito muito sem sua história, mas não posso criticá-lo. Ele está visivelmente abalado com a morte do italiano e quer estar o mais longe possível desta montanha o mais rápido que puder. Descemos os três pelos caminhos agora tão conhecidos e em 3 horas estamos no calor do campo base onde somos recebidos por nossos amigos com abraços e Coca- Colas. Estou exausto. Desci mais rápido que o Norbu e o Luiz. Queria chegar logo. Sento-me na barraca refeitório e conto resumidamente o que aconteceu. Eles também acompanharam o drama dos italianos que neste momento se preparam para voltar junto com o corpo do amigo para Kashgar. O ambiente no campo base é de tristeza e desolação. A maioria das expedições já foi embora e o clima é de final de festa.
Jantamos cedo e vamos dormir exaustos.
20/08/2010
Após o café da manhã, arrumamos tudo e começamos a longa viagem de volta a Kashgar. Primeiro uma caminhada de 3 horas, depois uma longa viagem de carro até a cidade. Chegamos exaustos e imundos. Comemoro meu aniversário de 54 anos em uma boate chinesa dançando tecno e regado a vodka. Enquanto volto para casa penso no que vivi nestes 20 dias e chego a conclusão de que este cume realmente não me faz falta. Teria adorado chegar lá em cima, claro, mas me diverti muitíssimo, fiquei ainda mais próximo dos meus amigos e acho que tomei a decisão certa ao abortar a escalada. As montanhas sempre estarão lá...
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