O dia que estive no Topo do Mundo
da redação, Manoel Morgado
23 de maio de 2010 - 17:20
 
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07/05/2010 ao 10/05/2010 – Mais um descanso em Pamboche
A previsão do tempo não mostrava a possibilidade de uma nova janela nos próximos muitos dias e para mim estava muito claro que ficar no campo base com a altitude de mais de 5.000 metros, a comida ruim e sem nada para fazer só prejudicaria minhas chances de estar bem preparado para o grande dia. Além disso, os dias que tinha passado em Pamboche na semana passada haviam sido tão fantásticos para minha saúde e para minha moral que contemplava mais uma descida com bastante entusiasmo. Meus companheiros, porém haviam decidido que não queriam mais descer. Para eles o esforço de caminhar 20 quilômetros e descer 1500 metros não compensava o ganho. Estavam felizes em fazer boldering todos os dias e passar o restante do tempo na barraca refeitório conversando. Minha decisão foi tomada quando o grupo da Andrea decidiu também descer. Após o almoço eu e a Andrea partimos rumo a Dimboche a 4300 metros. No dia seguinte fomos para Pamboche onde ficamos por três dias.

11/05/2010 – Chamado de volta ao campo ba
seEstava na minha rotina de não fazer nada quando recebi um torpedo no meu telefone por satélite dizendo que no dia seguinte partiríamos para o campo 2 provavelmente para nossa tentaiva ao cume. Será que realmente iria acontecer? Ainda estava muito claro em minha memória a última vez que isso tinha acontecido. Estava aqui mesmo em Pamboche e abreviamos nosso descanso para voltar ao campo base para partir para o cume. No fim, tudo foi cancelado e ficamos dias e mais dias no campo base. De qualquer forma voltei a preparar minha mochila e fui dormir cedo.

12/05/2010 – De volta ao campo base
Baseado na minha experiência anterior desta vez eu e a Andrea decidimos sair mais tarde, pois sabíamos que não demorariamos muito para ganhar os 1500 metros que separam Pamboche do campo base. Acordamos na hora que acabou o sono, tomamos o café da manhã com calma e as 10 da manhã estávamos começando o conhecido caminho. Apesar dos dias que passei a 3900 metros, desta vez notei que não estava tão recuperado como da última vez. Com tristeza notei que aquele tinha sido o meu pico físico e que ter ido ao cume após aquele descanso teria sido o ideal. Não importa o que se faz, a permanência prolongada em altitude acaba fazendo com que o corpo se deteriore e o caminho ao campo base me custou muito mais.
Chegamos ao campo base as 16;30 e por causa do cansaço estava torcendo para que os planos tivessem mudado e que tivéssemos um dia de descanso antes de subir. mas o que ouvi foi até o contrário. O despertar seria a uma da manhã e as duas estaríamos a caminho. Me despedi da Andrea não sabendo muito bem o que iria acontecer, se estava subindo para aclimatar ou para a tentativa ao cume e fui dormir. Ela voltou ao campo dela para mais vários dias de descanso antes de uma possível tentativa ao redor do dia 22 ou 23.

13/05/2010 – Aclimatação ou cume?
Ainda não sei o que acontece comigo em relação a altitude. Já são tantos anos que passo mal quando passo dos 5000 metros e já pensei em tantas coisas que já nem sei nem mais no que pensar. Já estou em altitude há quase dois meses e mesmo assim esta noite não dormi um minuto por causa de dor de cabeça. Na próxima vez que for para altitude vou levar algum remédio para enxaqueca, pois costumava ter quando era médico e o que tenho agora é muito similar. De qualquer forma, quando ouvi a voz do Victor nos despertando a uma da madrugada já estava rolando no meu sleeping bag desde as 8 da noite quando tinha ido para minha barraca. Já com a mochila pronta desci para tomar café da manhã e as duas já estávamos a caminho do campo 2.
Fazia já tanto tempo que não colocávamos os pés na montanha, dezesseis dias, que me sentia como que se fosse a primeira vez que enfrentava a cascata e as suas precárias escadas. Logo percebi que este dia seria uma tortura. No dia anterior tinha subido 1500 metros, não tinha descasado nada e agora tinha 1000 metros de sobe e desce pela frente. Cheguei ao campo 1 exausto e decidi que precisava de um descanso, uma pequena siesta para ser capaz de chegar ao meu destino. Victor se prontificou a ficar comigo enquanto Greg, Rob e Marco seguiam ao campo 2. Bebi um pouco de água, comi duas barras energéticas e dormi por uma hora. Despertei reenergizado e seguimos então por mais duas horas ao acampamento. Jantei super cedo e dormi mais de 12 horas.

14/05/2010 – Descanso no campo 2
O dia transcorreu sem muitas novidades apenas com eventuais contatos por rádio com o campo base para receber a atualização nas previsões do tempo. Ainda não sabíamos se este ciclo seria apenas mais um de aclimatação ou se realmente iríamos para o cume. As palavras para descrever essa janela pelos dois serviços metereológicos que usávamos ainda resonavam em nossas mentes. Um descrevia a janela como perigosa e o outro como estreita. Victor se comunicava constantemente com Henry Todd no campo base e as horas passavam sem que alguma conclusão fosse chegada. A responsabilidade na mão deles é enorme. Se decidem abortar a tentativa de cume e outros grupos chegam lá sem problemas podem desperdiçar a única oportunidade da temporada. Se por outro lado decidem subir e o tempo se torna mal com ventos fortíssimos a chance de acidentes aumenta sigificativamente.

De nosso lado tentávamos não colocar muita esperança. Amanhã desceríamos ao campo base e alguns dias depois subiríamos novamente para fazer a tentativa ao cume. O grupo da Andrea não havia subido e estava apostando na janela do dia 22. O mesmo nós também podiamos fazer. Ainda tínhamos uma semana pela frente para esta nova janela. Tinhamos tempo de descer, descansar e tornar a subir. Assim eu tentava pensar para não me decepcionar.

Mas, as cinco da tarde fizemos uma reunião e o Victor nos disse que se estivessemos dispostos a tentar, amanhã poderíamos subir ao campo 3! Claro que concordamos e saimos para preparar nossas mochilas para nossa chance de chegar ao cume em menos de 60 horas.

15/05/2010 – Do campo 2 ao campo 3. A caminho
Relativamente descansados partimos as 7 da manhã para o que sabíamos iria ser o dia mais duro da expedição. Já tinha estado no campo 3, mas na parte inferior dele. Nosso acampamento fica 200 metros acima e de qualquer forma, a aclimatação ganha naquela subida provavelmente já havia sido pelo menos parcialmente perdida com os 20 dias no campo base ou abaixo em minhas duas descidas para recuperação. Além disso, naquela subida estávamos com mochilas leves ao contrário desta vez quando estava com 15 quilos nas costas. Do campo 2 ao campo 3 superior são 1000 metros de diferença de 6350 a 7300 metros. Apesar de tudo, me sentia forte e ganhei os primeiros 400 metros que separam o campo a base da parede do Lhotse sem maiores problemas. Comecei a subir a parede que agora tinha um pouco mais de neve do que da última vez, mantendo um ritmo bastante forte. Mas, aos poucos comecei a sentir que o Greg que estava na minha frente estava diminuindo seu ritmo. Pensei até em ultrapassá-lo, mas quando perguntei a ele se tudo estava bem vi em seu rosto que algo estava seriamente errado. Para meu desespero me disse que estava com cólica renal, uma das mais fortes dores que alguém pode ter. Não podia acreditar, cálculo renal na parede do Lhotse. Para ele a expedição havia terminado, ou assim pensava eu. Ele tirou de dentro de sua mochila seu kit médico, preparou uma seringa com um forte analgésico e se aplicou diretamente na coxa, por sobre sua roupa mesmo e disse que iria prosseguir. Disse que já tinha tido isso antes e que queria 12 horas para ver se melhorava. Eu lhe disse que isso era loucura, argumentei que os sherpas já haviam descido rumo ao campo 2 (os sherpas nunca dormem no campo 3) e que se ele piorasse um resgate a noite sem sherpas seria quase impossível. Mas, ele não se deixou convencer. Com uma máscara de dor em seu rosto prosseguiu vagarosamente parede acima. Victor desceu para encontrar-nos e me orientou para prosseguir já que ele seguiria com o Greg.

Mantive um bom ritmo até a parte inferior do campo 3, mas aí minhas forcas me abandonaram. Os últimos 200 metros de gelo azul inclinado foram um puro martírio. Cada passo era arrancado a força das minhas reservas e só a completa falta de opção me fazia seguir um pouco mais. Após 8 horas de escalada finalmente cheguei ao campo 3. Greg chegou mais de uma hora depois completamente exausto, mas mais uma agonia o esperava. Precisava urinar e sabia que ao fazê-lo iria eliminar o cálculo. Por suas experiências anteriores sabia o quanto isso era dolorido. Junto com o cálculo de 3mm saiu uma grande quantidade de sangue e coágulos. Arrumei a barraca o mais confortávelmente possível para ele com meu colchonete inflável e ambos praticamente desmaiamos de cansaço com nossas máscaras de oxigênio a 0,5 litro por minuto.

16 e 17/05/2010 – O dia que estive no Topo do Mundo
Apesar de tudo o que se diz de como é desconfortável a noite no campo 3, a minha foi surpreendentemente tranquila. Claro que não dormi mais do que uma hora a cada vez. Nesta altitude, 7300 metros, o sono é muito superficial. Mesmo usando oxigênio ao fluxo de meio litro por minuto acordava frequentemente. Também estava preocupado com o Greg que a cada instante gemia de dor. Como havia dado meu colchonete inflável para ele para que tivesse mais conforto, estava dormindo em cima de um fino colchonete diretamente sobre o gelo e meus pés estavam gelados a noite toda. Esperamos que o sol esquentasse nossas barracas para nos levantarmos, mas muito antes que isso já estávamos despertos envolvidos na interminável função de derreter gelo para poder nos hidratarmos para o longo dia que tínhamos pela frente. Na realidade o dia de cume começava aqui, no campo 3 a 7300 metros de altitude, 1550 metros abaixo. Hoje iríamos subir ao campo 4 a 7950 metros, passar lá no máximo 7 horas tentando ter algum descanso e de lá subir ao cume. Era como se pela manhã subíssemos um 8.000 metros como o Gasherbrun 1 ou 2, ou o Shishapagma, eles três apenas poucos metros mais altos do que o nosso campo 4 e daí, a tarde, escalassemos o Everest. Não conseguia deixar de pensar se seria capaz de tal feito. Sei que dentro de mim consigo buscar forças para coisas que a princípio pensava que não seria capaz, mas o tamanho da façanha que tinha pela frente abalava minhas convicções. Mas, como tudo até agora nesta expedição, tinha que pensar em cada etapa e não no todo que era muito intimidante. Então o trabalho agora era chegar ao campo 4, o famoso South Col ou Colo Sul.

Coloquei meu down suit, harness, botas duplas e crampons e comecei a longa subida até a Yellow Band, a faixa de rocha mais clara que atravessa a parede do Lhotse ao redor de 7500 metros de altitude. Nesta altitude, a parede do Lhotse é inclinada porém o gelo está coberto de neve e degraus foram cavados pelos que nos antecederam de modo que pude subir sem grande esforço até a Yellow Band. Estou agora com oxigênio com fluxo de 2 litros por minuto e isso ajuda grandemente. Passei a noite razoavelmente bem, estou descansado, saudável e me sinto forte. Com isso um grande otimismo me invade e finalmente sinto que dentro de menos de 24 horas estarei no cume do Everest. Essa simples certeza faz com que todos meus pelos se arrepiem. Desde que sai de Katmandu já se passaram 50 dias e agora, neste minuto, pela primeira vez sinto que posso realmente realizar meu sonho. Pela primeira vez vejo que estar no cume do mundo está ao alcance de minhas mãos.

Após uma hora de subida íngrime o caminho cruza para a esquerda e sigo em direção a Yellow Band. Agora já não é tão fácil, pois escalamos entre neve, gelo e rocha e é preciso mais concentração para não escorregar. A visão daqui é indescritível. Descendo diretamente abaixo de meus pés por 1000 metros está a parede do Lhotse. No meio desta longa rampa de gelo os pontinhos amarelos das barracas do campo 3. Mais abaixo, a direita, em um canto protegido do Vale do Silêncio, o campo 2. Um pouco mais abaixo se vê as poucas barracas do campo 1 e logo em seguida este enorme rio de gelo despenca no vazio da cascata de gelo!

O próximo obstáculo é o Geneva Spur que deste ângulo parece apenas a encosta de uma elevação de ao redor de 200 metros. Sei que da crista ao campo 4 são apenas meia hora de caminho plano. Com determinação inicio a subida que de um modo geral é por neve firme com alguns trechos verticais mas curtos de rocha. Tinha iniciado o dia as 8 da manhã e agora, a uma e meia estava prestes a chegar ao Colo Sul. Da crista sigo por entre um estreito e um pouco traiçoeiro caminho de neve e pedras soltas até que após uma curva me deparo com o famoso campo 4. Que decepção! Em todas as fotos que vi toda a extensão do South Col era coberta por neve, mas neste ano de pouco inverno nosso acampamento está entre pedras e lixo de inúmeras expedições anteriores. Se isso desagrada a vista, o que se ve de nossa barraca é deslumbrante. Finalmente posso ver minha rota de escalada ao cume. A Triangular Face levando 500 metros acima ao Balcony, um pequeno platô a 8500 metros de onde seguindo por uma estreita crista se chega ao South Summit, ou Cume Sul e de lá, passando pelo Hilary Step se chega ao Summit Ridge e finalmente ao cume. Mas, minha visão se desfaz rapidamente, pois logo após chegarmos o acampamento é envolvido por uma grossa camada de nuvens, o vento aumenta e começa a nevar. Dentro de nossa barraca nossas expressões refletem o que se passa em nossos corações. Não é justo, após tanto esforço, tanto sofrimento e na hora que podemos ver o nosso sonho se realizando uma cruel mudança de tempo nos faz ver a possibilidade de ter de dar a volta e descer até o campo base e esperar por uma nova janela. Será possível? São 3 da tarde e não podemos fazer nada a não ser esperar. O ideal seria que estivéssemos nos hidratando, tentando comer algo e até quem sabe dormindo um pouco. Mas, a incerteza nos paraliza. Quase não conversamos, apenas olhamos um ao outro com expressão vazia. Não é necessário conversar, sabemos perfeitamente bem o que se passa dentro de cada um. Eu me pergunto se terei forças para fazer tudo novamente. Descer ao campo base, esperar novamente por bom tempo, subir ao campo 2, fazer o mais difícil dos dias, do campo 2 ao campo 3, passar frio, exaustão construir dentro de mim novamente a esperança, o otimismo, a determinação necessária para chegar aqui novamente. As horas vão passando e como com toda má notícia aos poucos você vai se acostumando com o inevitável. O rádio não se silencia. Do campo 4 ao campo base buscando informações, buscando a última previsão de tempo que nos conte o que acontecerá nesta noite. Então magicamente, as 6:30 da tarde o céu se clareia e um lindo por do sol tinge de rosado o Lhotse. Em um frenesi de atividade colocamos os dois fogareros em fogo máximo para derreter gelo e começamos a preparar nossas mochilas. A barraca para 4 pessoas agora habitada por 5 mais mochilas, cilindros de oxigênio, nossas esperanças e expectativas, está um pandemônio. Pernas se misturam com braços e tubos de oxigênio. Marcamos a saída para as 21 horas na expectativa de estar no cume ao redor de 10 horas depois. Resolvo ir ao banheiro para evitar de ter problemas pela manhã, meu horário habitual enquanto que os outros resolvem tomar Imodium para inibir a atividade intestinal normal. Quando termino de fazer tudo que precisava me sento em um canto da barraca, fecho os olhos e medito por alguns minutos procurando acalmar minha mente que está agitadíssima. Finalmente o momento chegou. As nove em ponto saio da barraca, troco meu cilindro por um cheio, coloco os crampons e junto com Padawa, o sherpa que subirá comigo, parto rumo ao topo do mundo.

Logo ao sair da barraca vejo uma enorme linha de luzes subindo em direção ao Balcony.  Sei que vários grupos estão subindo hoje, mas a longa linha me assusta. O pesadelo de 96 está sempre presente quando por um número excessivo de escaladores uma grande tragédia aconteceu. Afasto esses pensamentos da cabeça e me concentro no trabalho a frente. Tento acalmar meu coração que bate descontroladamente. Sei que tenho que encontrar meu ritmo. A temperatura está confortável, estou forte e confiante. Sigo a longa linha, mas logo percebo que está demasiadamente lento para mim. Aproveito que o ângulo de subida é suave, me desclipo da corda fixa e ultrapasso pelo menos vinte escaladores. Isto me enche de confiança e sigo adiante. Algo porém começa a me encomodar. Minha barriga se comporta de maneira estranha e posso ouvir um monte de ruidos. Será medo? Emoção? Mas logo percebo que não. Que estou começando a ter uma diarréia. Será possível? Não, hoje não! De resto está tudo tão perfeito. A temperatura está ideal, a noite agora estrelada, nada de vento. Bom, nada a fazer. Continuo a subir ganhando metros com facilidade. Estou com 2 litros por minuto e com isso estou economizando oxigênio já que tenho 3 cilindros para usar durante a escalada e poderia estar com 3 litros por minuto. Após duas horas olho meu altimetro e estou a 8215 metros e comemoro meu novo recorde de altitude. Já estou 14 metros acima do Cho Oyu. As horas vão passando e tenho duas preocupações, a minha barriga e os raios que iluminam o céu ao sul de tempos em tempos. Parece que vem dos vales muito abaixo de nós, mas mesmo assim constantemente olho nesta direção para ver se há alguma mudança. Já minha barriga está cada vez pior com cólicas muito fortes e frequentes. Quando chego a 8400 metros não posso evitar mais. Me clipo a uma antiga corda fora da rota e efetuo a complicadíssima tarefa de evacuar a 30 graus negativos com um terço do oxigênio a nivel do mar e com várias camadas de roupas além da cadeirinha. Quase gelado retomo a subida e com felicidade vejo que ao chegar ao Balcony Victor e Greg ainda estão lá descansando. Retomamos a subida juntos. Agora faltam apenas 350 metros e tenho a certeza absoluta de que nada me impedirá de chegar ao cume. São 2 da manhã e fiz um tempo ótimo até agora. Em apenas 5 horas subi 550 metros. Aumento o fluxo de oxigênio para 3 litros por minuto e sigo pela escuridão apeans vislumbrando o que deve ser uma crista muito estreita. Dos dois lados vejo enormes precipícios que não sei mas imagino que são de milhares de metros, de um lado levando ao Vale do Silêncio e do outro ao Tibete. As 3 da manhã tenho um grande congestionamento a minha frente. Avanço a passo de tartaruga, mas é impossível ultrapassar. Qualquer escorregão aqui sem estar preso a corda fixa sigifica morte. Finalmente quem estava segurando a fila se senta ao lado do caminho para descansar e consigo ultrapassar. A minha frente tenho um trecho de rocha quase vertical que me deixa completamente sem fôlego. Já estou a 8650 metros. As 4 e meia da manhã olho para trás e vejo os primeiros sinais do amanhecer. Estou tão alto que o nascer do sol não está longe. As cólicas estão cada vez mais intensas. Sei que terei de parar novamente, mas tento adiar o mais possível. Meia hora mais tarde acontece o espetáculo que estava esperando com tanta antecipação, o sol nasce e o Everest é refletido nos vales abaixo na forma de uma perfeita pirâmide. Dou um passo e paro para admirar este lindíssimo fenômeno que já havia presenciado em outras escaladas. As 6 da manhã chego ao South Summit. Estou a apenas 150 metros verticais do cume, mas as cólicas estão tão fortes que sou obrigado a parar mais uma vez. Talvez por causa da dor, talvez por causa da confusão mental desta altitude fico 10 minutos sem luvas e quando novamente me visto já não sinto nada nas mãos. Estão completamente adormecidas. O Padawa, que estava um pouco atrás, vendo o que eu tinha feito grita comigo que eu não poderia ter ido ao baneiro alí. É muito perigoso, grita ele comigo. Mas, é muito tarde para repreensões. Tento reaquecer minhas mãos, mas por alguns minutos penso que é tarde demais. Porém, aos poucos o sangue comeca a voltar e a dor é quase insuportável. Estou ofegante por ter estado 10 minutos sem oxigênio e gelado. Padawa coloca o máximo fluxo de oxigênio, 6 litros por minuto, e aos poucos vou me aquecendo e recuperando o fôlego. Passados 15 minutos recomeço a escalada, mas a minha frente está o Hilary Step, uma seção de rocha quase vertical com 10 metros de altura. Sou obrigado a tirar as mittens e colocar luvas mais finas para poder ter mais agilidade na rocha. Escalo, mas mais uma vez estou exausto e tenho que ficar alguns minutos parado para que minha repiração volte ao normal. Olho para cima e avisto o cume. Estou na foto que tantas milhares de vezes admirei nesses 20 anos que venho para a região do Everest. A crista do cume com suas lindas curvas de gelo contrastando com o céu mais azul do mundo. Cheio de uma nova energia cruzo os poucos metros que me separam do cume. Lá esta Greg vindo em minha direção com seu generoso abraço, Marco sempre sério, mas de uma amizade constante, Rob com seu bonito sorriso e Victor me recebendo. Eles estão prontos para descer, só estavam esperando por mim. São 8 da manhã do dia 17 de maio de 2010 e eu estou no topo do mundo! Tiro as tradicionais fotos, olho deslumbrado ao meu redor, pego algumas pedras do cume e antes mesmo que perceba já estou iniciando a longa descida. O tempo já está começando a mudar, uma fina nuvem de neve cobre o ar e a previsão é de ventos muito fortes a tarde. Quero ficar mais tempo, quero sentar e observar tudo com calma, quero agradecer ao mundo, aos meus amigos, a Chomolungma a oportunidade de ter chegado aqui. Mas, não posso. A subida é apenas metade do caminho. Vou até o altar e deixo o cartão postal que o Lama Geshe me deu além de duas pequenas ilustrações das Taras, divindades femininas budistas que representam compaixão. Agradeço a Chomolungma pela permissão de ter chegado lá. Olho para o Nepal de um lado, para o Tibete do outro, viro as costas e inicio a longa e árdua jornada rumo ao campo base três quilômetros e meio verticais abaixo. Mesmo com as duas paradas e com as fortes cólicas cheguei ao cume em menos de 11 horas e assim que começo a descer me deparo com uma enorme fila de escaladores ainda subindo. No Hilary Step tenho de ficar meia hora esperando por uma chance de descer. Desescalar estas partes de rocha íngrime cansado como estou é arriscado e tomo todo o cuidado para colocar cada pé. No South Summit troco meu último cilindro de oxigênio e sigo a 4 litros por minuto. Calculo que terei o suficiente para chegar no campo 4. O céu está agora completamente nublado, mas o vento que havia sido previsto ainda não se manifestou. Perco altitude rapidamente e no Balcony reencontro meus amigos. Divido meu último meio litro de água com o Greg e o Marco. Assim como eles tenho uma bola na garganta e cada vez que engulo saliva é como se estivesse engolindo fogo. O pequeno gole de água não alivia, mas sei que em breve, muito em breve tudo terá acabado. Sigo em frente só pensando na barraca no campo 4. A neve derreteu com o calor do sol e descer vira um suplício. A cada 10 passos escorrego e acabo sentado na neva fofa. Mesmo assim sigo montanha abaixo o mais rápido que a segurança permite. Ao meio dia me jogo dentro da barraca e assim deitado posso pela primeira vez me congratular pelo que atingi. Após muitos e muitos anos de sonhos cheguei ao topo do Everest. Sou o oitavo brasileiro a fazê-lo e o mais velho. Mas, isso é apenas estatística. Não escalo por números e sim por que amo as montanhas e por criar este tipo de ligação que criamos em nosso grupo nesses dois meses. Isto é o que realmente fica. No Cho Oyu foi assim e agora no Chomolungma também.

As próximas horas passam sem que eu perceba muito bem. A felicidade misturada com a exaustão faz com que eu me deixe ficar. Marco assume a tarefa de derreter gelo e preparar bebidas. O sol da tarde aquece a barraca e todo meu corpo pesa uma tonelada. Poderia ficar assim por dias. Mas, as 5 da tarde somos brutalmente tirados de nosso estado de relaxamento por uma chamada pelo rádio dizendo que dois dos membros da equipe do Kenton que nos últimos 3 dias tem nos acompanhado, Bonita, uma inglesa de 22 anos e Rick, um médico americano de 54 anos, dois dos mais rápidos escaladores estão ainda no Balcony. As primeiras informações que chegam são muito confusas, mas aparentemente Bonita não consegue mais se locomover e está bastante incoerente. Em choque acompanhamos a comunicação por rádio entre eles, o seu guia Kenton e o campo base. Eu e Greg conversamos e mesmo com essas poucas informações decidimos que o melhor é tratar como edema cerebral causado por altitude e recomendamos injetar 8 mg de dexametazona. Do campo base vem a orientação de enviar cinco sherpas ao Balcony com garrafas de oxigênio e líquidos. Assim como nós, os sherpas estão exaustos. São fortíssimos e naturalmente aclimatados, mas acabam de descer do topo do Everest que fizeram com uma só garrafa de oxigênio e carregaram outras duas para seus clientes (nós). Mas, heroicamente saem de suas barracas e voltam a subir a montanha. Levam também o kit de medicamentos de dia de cume do Greg para que eventualmente o Rick possa usar. As horas passam rapidamente sem que possamos nem pensar em dormir. Já estamos acordados há 40 horas, mas temos que começar a fazer preparativos para quando eles sejam trazidos para o campo. O Greg e o Victor se preparam para sair ao encontro deles assim que tenham baixado um pouco mais. O frio está terrível e eles colocam tudo o que tem além de hand a feet warmers. Eu assumo a produção de água quente colocando os dois fogareiros a funcionar. Rob está com snow blindness, cegueira das neves, uma afecção temporária, mas muito dolorosa da córnea e não pode ajudar em nada. Envolvido em seu sleeping bag e com óculos escuros na barraca escura parece um velho de cem anos. As duas da manhã Victor e Greg saem e só as 4 ficamos sabendo que as duas vítimas estão nas suas barraca e aparentemente em estado controlado. Não tem congelamento de extremidades e Bonita está coerente. Eles voltam para nossa barraca exaustos e eu continuo minha tarefa de preparar mais líquidos para hidratar a todos nós. Neste meio tempo porém, mais uma vítima aparece.  Anita é uma húngara muito forte que já atingiu o cume do Everest no ano passado e agora está tentando sem oxigênio. Ela está na expedição do Henry Todd que está associada a nossa expedição também. A meio caminho do cume ela percebeu que não seria capaz de chegar sem oxigênio, mas nesta altura tinha gasto muito de suas reservas. Chegou ao cume e resolveu descer diretamente ao campo 2, mas a caminho começou a apresentar sintomas de HAPE, edema pulmonar de altitude. Por sorte estava acompanhada por Rob Casley, um dos guias do Henry Todd e médico. Com o coração nas mãos acompanhei pelo rádio os sinais de piora progressiva. Mas, por sorte, também ela apresentou melhora quando chegou ao campo 2 embora tivesse de ser resgatada por helicóptero do campo base no dia seguinte.

O dia amanheceu sem que eu tivesse dormido um minuto sequer. Duas noites em claro, 1500 metros de escalada ao cume e 900 metros de descida ao campo 4. A felicidade de ter chegado ao cume do Everest se perdeu no meio de tudo isso.

18/05/2010 – Deixando a zona da morte

Finalmente as 10 da manhã estamos prontos para deixar o campo 4. Depois de tudo o que vivemos aqui, alegrias, desesperos, preocupações, estou como que vazio. Saio da barraca como um autômato, coloco meus crampons e começo a descida. Olho pela última vez para a triangular face, avisto o Balcony e o South Summit e vislumbro o cume. Não consigo estar feliz, estou muito cansado para isto. Sei que mais tarde a felicidade de ter alcançado um de meus maiores sonhos virá, mas agora não sinto nada, apenas uma grande vontade de sair deste lugar. Quero chegar vivo ao campo base e para isso tenho que buscar dentro de mim forças para que cada passo seja preciso. Não posso me dar ao luxo de relaxar, não agora, ainda não. A primeira parte do caminho até o topo do Geneva Spur é plano, mas mesmo assim avanço com cautela, clipado na corda fixa. Um escorregão aqui seria fatal, mesmo com a corda fixa. Vem então a descida do Geneva Spur e quando vejo o grau de inclinação da descida não acredito que tenha subido isto. Respiro fundo, agarro a corda fixa com firmeza e começo a descer. Estou ainda a 8.000 metros e apesar do oxigênio a 3 litros por minuto tenho de parar a cada 20 metros para recuperar o fôlego. Estou totalmente concentrado. Não existe nada ao meu redor, apenas as rochas e os pequenos lugares onde coloco as pontas de meus crampons. Após meia hora estou em terreno mais amigável e posso relaxar um pouco. A descida da Yellow Band é menos complicada, mas agora um outro inimigo aparece, o calor. A variação de temperatura nesta montanha é uma coisa incrível. Quando sai da barraca estava um frio incrível, ao redor de vinte graus negativos. Agora o sol nos castiga com 30 positivos. Por sorte decidi sair sem o meu down suit, mas mesmo assim estou molhado de suor. Desço mais um pouco e avisto as barracas do nosso campo 3 e concentro todas minhas energias em chegar lá para poder descansar, tomar um pouco de água e tirar um pouco de roupa. Estou quase chegando lá quando sinto que meu crampon direito está se soltando. Estou em plena parede do Lhotse, 45 graus de inclinação e tenho que fixar o crampon. Perdê-lo aqui me deixaria em uma situação muito perigosa. Coloco o pé esquerdo fixo no gelo e de maneira muito desajeitada consigo fixar o crampon, mas neste processo infelizmente uma de minhas luvas desce em camera lenta a extensão da enorme parede de gelo. Lembro-me do desespero de quando isso aconteceu com a mochila da Andrea no McKinley. Mais tarde venho a saber que o Marco perderia quase no mesmo lugar sua máquina fotográfica com suas fotos de cume, uma perda muito mais séria do que a minha. Exausto chego no campo 3 e me desabo dentro de minha barraca. Me dou ao luxo de aumentar o fluxo de oxigênio para 4 litros, tiro todas minhas roupas e aos poucos vou me sentindo novamente humano. Em seguida vão chegando meus companheiros ainda mais cansados do que eu usando seus down suits. Descansamos por uma hora na esperança de que a temperatura melhore, mas quando retomamos a descida a temperatura continua a mesma. Deixo meu cilindro de oxigênio, agora quase vazio, no campo 3 e desço as íngrimes encostas de gelo que separam o campo 3 superior do campo 3 inferior. Sem oxigênio tudo fica muito mais difícil e de tempos em tempos tenho que parar para que as forcas retornem as minhas pernas. Novamente preciso usar todo o meu poder de concentração, pois um pequeno escorregão nestas encostas de gelo azul teria consequências muito serias. Agora falta pouco, apenas mais 300 metros de parede e estou na parte mais plana que leva ao campo 2. Nas encostas mais suaves desço usando apenas a fricção das luvas na corda, mas cansado como estou em algumas partes mais inclinadas resolvo rapelar o que leva mais tempo, mas é mais seguro. Finalmente as 3 da tarde desço a última parede e posso caminhar até o campo 2. Rob que saiu com um cilindro de oxigênio mais cheio do que o meu segue a minha frente impulsionado pelo ar mais rico. A 300 metros do acampamento minhas forças me abandonam completamente e peço a ele para usar por alguns minutos o oxigênio. Sento-me em uma rocha e de olhos fechados fico inalando profundamente até sentir minhas forças voltarem. Após alguns minutos recomeçamos e minutos depois chegamos a barraca refeitório.

Antes do jantar consigo ter comunicação por rádio com a Andrea e ela me conta que vai subir ao campo 2 no próximo dia e decido então passar mais uma noite no campo 2 para poder encontrá-la. O restante do meu grupo seguirá para o campo base e a tentação de seguir com eles e com isso encerrar a minha expedição é enorme, mas tenho muita vontade de rever a Andrea e, mais do que isso, contar a ela o que aprendi nessas últimas 48 horas para que ela possa usar esse aprendizado para aumentar a segurança de sua escalada.

19/05/2010 – Reencontro com Andrea
Dormi 15 horas! Enquanto aos poucos tomo consciência de onde estou escuto alguém chamando o Victor. Olho no relógio e vejo que são 9 da manhã e estranho pois os planos do grupo eram de sair cedo. Subo até a barraca refeição e chego lá ofegante e extremamente cansado como se tivesse acabado de chegar do cume. Vejo minha saturação e está 71, bastante baixa. Peço para o Greg dar uma olhada nos meus pulmões, mas está tudo bem. Estou porém bastante desidratado e começo a beber. Despeço-me deles e volto a minha barraca onde fico dormindo mais algumas horas. Ao meio dia ouço a voz da Andrea chamando-me e nas próximas 4 horas ficamos conversando, abraçados, matando a saudades. Aos poucos vamos contando um para o outro o que aconteceu nos últimos dias tão repletos de emoção. Mais que tudo quero contar para ela como é o caminho, onde estão as dificuldades e o que aprendi nessas últimas 48 horas. Quero que ela saiba exatamante onde tomar mais cuidado, onde ir devagar e onde aproveitar para ganhar terreno mais rapidamente. Quanto usar de oxigênio em cada parte da montanha. Mais que tudo quero passar a ela o quanto esta montanha é perigosa na descida. O quanto é facíl se machucar em uma das descidas verticais de rocha na Geneva Spur e no Hilary Step. E o que significa se machucar nestes lugares onde um resgate é quase impossível. Quero que ela tenha dentro dela o mesmo matra que eu tive: cuidado ao colocar cada passada, cuidado ao colocar cada passada. Ela me escuta com atenção e sinto-me mais tranquilo. Atinjo o que queria com este dia extra aqui no campo 2. Meus companheiros já estão na segurança do campo base, mas sinto que valeu a pena ter ficado aqui. Com muita emoção nos despedimos e vejo ela se distanciar com o coração na mão. Se passarão cinco dias até que eu a veja novamente. E nesses cinco dias ela subirá ao topo do Everest.

Janto com os cinco membros da expedição do Henry Todd que estão esperando para que os sherpas que nos auxiliaram descansem no campo base para que eles também possam ter sua chance de cume, mas o clima entre eles é de frustração e desanimo. A cada dia que passa a monsão está mais próxima e se não partirem para o cume muito em breve possivelmente não terão outra chance. Logo após o jantar me despeço, lhes desejo a maior sorte do mundo e vou para minha desconfortável barraca gelada para uma noite sem sonhos.

20/05/2010 – Final da expedição
Apesar de ter dormido duas noites no campo 2 acordo sentindo-me exausto, como se não tivesse descansado nada. São seis da manhã e já está completamente claro, sinal de que o verão está chegando. A idéia é sair o mais cedo possível, pois os dias tem estado quentes e meus níveis de energia caem muitíssimo com o calor. Mas, onde está a energia para sair do sleeping bag e enfrentar o frio da manhã de 6300 metros?

Nevou a noite toda e já saio da barraca com minhas botas duplas e todo o equipamento. Tomo um café da manhã rápido e começo a longa descida rumo ao campo base mil metros abaixo. Nunca o Vale do Silêncio mereceu mais este nome. Tudo está amortecido pela neve fresca e é muito cedo para que quem saiu do campo base esteja por aqui. Estou completamente sozinho e o único ruido é o da neve quebrando sob minhas botas. Paro para apreciar uma vez mais a maravilhosa paisagem ao meu redor. Me deslumbro com o que acabo de completar. Olho para trás e vejo os minúsculos pontos amarelos das barracas na parede do Lhotse e mais acima a Yellow Band e o Geneva Spur, obstáculos que acabo de superar. Mas, meus pensamentos estão todos em direção ao campo base e sigo rapidamente meu caminho. Apesar de rápido, procedo com cautela. Com a neve da noite anterior as cravasses estão quase cobertas e cair em uma delas agora, sozinho seria fatal. Cada vez que me deparo com uma, dou um grande salto, pois não sei onde elas começam ou terminam. Chego 50 minutos depois com segurança no campo 1 que é a imagem do abandono. Desde o começo da expedição que este campo não é usado, a maioria das pessoas preferindo ir diretamente do campo base ao campo 2. Pedaços de barracas precariamente presas por um ou dois pegs balançam furiosamente ao vento.

Coloco meus crampons e sigo cascata abaixo, minha última passagem, meu último obstáculo para a segurança do campo base. Lembro-me da história de uma das expedições do Bonington onde o base camp manager passou quase dois meses no campo base e no último dia da expedição pediu permissão ao Bonington para dar uma subida na cascata. Bonington que nesses 2 meses havia passado pela cascata inumeras vezes não viu problema algum, mas um enorme bloco de gelo se desprendeu e o manager morreu. Assim é a cascata, algo imprevisível. Não quero ter logo agora um acidente. O sol saiu e a manhã está lindíssima, o céu azul sem uma nuvem e nada de vento. De alguma maneira sei que Chomolungma não irá me matar. Escalei pelas razões corretas, ajudei sempre que pude e sempre que foi necessário. Procurei o mais que pude seguir o conselho do Lama Geshe Rimpoche de manter o coração puro. Sei que chegarei bem ao meu destino. Sinto que a cascata tem os seus humores e em algumas das vezes que passei por ela tive muito medo enquanto que em outras estava tranquilo. Logo de cara percebo que o caminho mudou muito desde que subimos a última vez poucos dias atrás. Estou escalando em algo vivo, mutável e cada vez que atravesso este labirinto de blocos de gelo estou percorrendo algo novo. O número de escadas aumentou drasticamente e das 16 do começo da expedição agora são mais de 30. A cada uma que atravesso sinto que estou mais próximo da segurança. Amei esta expedição, mas agora quero estar de volta ao campo base. Estou exausto e apesar de já estar mais de 500 metros mais abaixo, com mais oxigênio, cada passo me custa mais. O calor está me matando, mas não é seguro parar agora para beber o pouco de água que tenho ou para tirar um pouco de roupa. Estou no meio da pop corn, a mais instável das áreas da cascata. Tenho que seguir o mais rápido possível, mas minhas pernas não mais me respondem. De repente, todo o cansaço dos últimos 5 dias como que desaba sobre mim. Ao fundo vejo a pequena cidade do campo base e almejo estar lá. Agora tem inúmeras escadas duplas sempre mais instáveis. Passar pelos degraus onde as escadas estão amarradas uma nas outras é difícil. Estou sozinho, não posso cair. Se cair ficarei pendurado um bom tempo até que chegue alguém para me ajudar. Já estou desescalando há 3 horas e minhas pernas pesam como se fossem de chumbo. Finalmente chego ao final das cordas fixas e do perigo. Sobrevivi ileso a escalada do Everest! Com exceção da diarreia do dia do cume me mantive saudável por dois meses na montanha. Não tenho congelamento de extremidades como soube que metade de nosso grupo teve. Estou tão cansado....mas tão feliz.

Chego ao campo e abraço aos meus companheiros. Agora sim podemos comemorar. Estamos todos de volta do maior desafio de nossas vidas, realizamos nosso sonho, estivemos no ponto mais alto do planeta, achamos dentro de nós a energia necessária para superar cada um dos desafios e o fizemos com habilidade, paciência, espirito de grupo e generosidade. Creio que saimos desta experiência melhores seres humanos e nos conhecendo melhor. Uma grande amizade se solidificou entre nós e já começamos a planejar nossa próxima grande aventura, a travessia em skis rumo ao polo sul no verão de 2011. Não sabemos nada sobre o assunto, mas a idéia já tomou conta de nossa imaginação. Temos o mais importante, a vontade de fazer e essa energia que nos une.

Fatiamos os salames italianos trazidos exatamente para esta ocasião, abrimos as cervejas e passamos o restante da noite contando a recontando o que vivemos nos últimos dias. Em mais 36 horas nos separaremos, Victor, Marco, Rob e Greg vão para Gokyo e de lá Katmandu e eu esperarei aqui no campo base com o coração nas mãos até que a Andrea esteja de volta sã e salva. Serão dias difíceis para mim e sinto muito que não possa ter a companhia deles para que as horas passem mais depressa. Em mais um dia o campo base estará vazio. Quem já fez o cume estará a caminho de Katmandu e quem ainda não fez estará na montanha aproveitando o que será possivelmente o último período de bom tempo antes da chegada das monsões. Enquanto comemoramos escutamos terríveis trovões que sempre antecedem as nevascas que caem nesta região nos meses de verão. Vou dormir em minha confortável barraca torcendo para que os próximos três dias passem rápido e que tudo corra tão bem para a Andrea como foi para mim e meu grupo.

22/05/2010 – Recuperando as forças
Acordo tarde e em minha agenda não há nada para fazer. Mesmo que quisesse fazer algo não tenho forças. Com muito esforço consigo reunir energia para fazer a barba e tomar banho. Ao ver meu corpo após tantos dias me surpreendo com o quanto perdi de peso e mais do que tudo de massa muscular. Minhas pernas estão super finas e as costelas aparecendo. A sensação da água quente no  meu corpo é deliciosa, mas ainda sonho com um banho mesmo e não com esse balde e caneca que são nossos banhos aqui. Ao fazer a barba percebo que em algum momento tive um congelamento superficial da pele do queixo. Deve ter sido há alguns dias pois a pele já está descamando.
Passamos o dia na barraca refeitório conversando e a tarde tomo um pouco de coragem para arrumar minha barraca que está quase inabitável. Além de roupas sujas por todos os lados vejo que a parte esquerda da barraca está desabando com o derretimento do gelo sob o qual ela está armada. Mas, calculo, ela ainda se mantém em pé por mais 4 noites que é tudo o que preciso.

21/05/2010 – Despedida e aflição
Acordo com os gritos de alegria de alguma expedição. Olho no relógio e sao 5:55 e sei que os membros de alguma expedição chegaram ao cume do Everest. Agora estou do outro lado, estou no campo base enquanto alguem está lá em cima, a mais de três quilômetros no cume do mundo. Sorrio e dou mentalmente meus parabéns a quem quer que seja. Ainda está frio e apesar de não conseguir mais pegar no sono me deixo ficar no conforto do meu sleeping bag. As 7:30 o sol chega na barraca e saio para arrumar meus barris que serão levados nas costas de yaks para Lukla e de lá em avião a Katmandu. Chegarão antes que eu. Me lembro então de minha noite agitada. Ventou muito aqui no campo base e a barraca sacudiu violentamente por toda a noite. E eu acordei inúmeras vezes pensando em como estaria a Andrea no campo 3 dois quilômetros acima. As próximas 24 horas serão de muita aflição para mim. Desço para o café da manhã e meus companheiros estão agitados, se preparando para a descida para Katmandu. Nos despedimos com emoção e mais uma vez Greg, Rob e eu nos prometemos começar imediatamente a estudar tudo que seja relacionado a expedições ao Polo Sul. O fato de termos este plano deixa a despedida mais leve. Victor e Marco não estão interessados, mas sabemos que vamos nos reencontrar de alguma outra forma.
As 10 da manhã chamo por rádio o acampamento da Andrea e me informam que ela está acima da Yellow Band, que tudo está bem e que o vento, nosso pior inimigo, está suave. Situação ideal. Ela saiu com o down suit e se não tivesse nenhum vento estaria sofrendo com o calor. Ao meu redor tudo está sendo desmontado. Nossa barraca refeitório já está no chão. Muitas das barracas já não existem mais, apenas plataformas de rochas marcam sua existência. Dos 20 escaladores das 3 expedições apenas 7 estão na montanha, o restante se foi. Aqui no campo base hoje só eu. Almoço sozinho e volto a escrever. As duas da tarde capto uma ligação por rádio e fico sabendo que Andrea já está no campo 4 a 7950 metros. Dentro de 7 horas é a sua vez. Procuro mandar toda a energia que tenho dentro de mim a ela. Sei o que essas horas antes de sair para o cume significam. Solidão, apreensão, medo, ansiedade. Que tudo corra bem com você, meu amor!
Começo e ler a biografia de Ranulph Fiennes, o primeiro homem a chegar a ambos os polos. Suas experiências são tão brutais que comparado com o que ele passou Everest é brincadeira de criança. Isso é bom pois tira minha atenção da espera da escalada da Andrea. As 21 horas ouço pelo rádio que ela partiu rumo ao cume. O restante da noite passo acordado lendo e escutando o rádio que de tempos em tempos me trás algum novidade.


23/05/2010 – Sucesso!
As frias horas da madrugada passam lentamente e só de tempos em tempos escuto alguma novidade sobre o progresso da escalada da Andrea. Esta noite é a melhor desta semana e com isso mais de 100 escaladores estão tentando chegar ao cume. O grande número de pessoas faz com que todos demorem demais. As 7 horas saio no frio da manhã e para minha grande felicidade vejo o dia mais perfeito das últimas duas semanas. Céu azul sem uma nuvem e sem vento algum. Caminho os 15 minutos até o acampamento da Andrea onde a Mara, uma americana que trabalha como base camp manager está monitorando o avanço de seu grupo. As 8 recebemos um chamado pelo rádio dizendo que o grupo da Andrea está já acima do Hilary Sep. Agora é questão de minutos. As 8:40 finalmente vem a confirmação de que todos estão no topo do Everest. Com os olhos cheios de lágrimas falo brevemente com ela e ela me diz que está bem, com os pés e mãos um pouco frios, mas, claro, muito feliz. Dou mil parabéns a ela e feliz volto ao meu solitário acampamento. Queria ter alguém para dividir esta emoção.  Após dois anos de treinos incessantes conseguimos nosso objetivo, ambos estivemos no ponto mais alto do planeta. Em mais algumas horas ela estará na relativa segurança do campo 4 e em dois dias estaremos partindo para Katmandu. De lá ela segue para 40 dias na Guatemala onde será alvo de intensa atenção da mídia. Andrea acaba de se tornar a primeira mulher centro americana a escalar o Everest. Eu seguirei para uma viagem de exploração com destino ainda não definido. As montanhas do Marrocos (Atlas), Irã, Kyrgistão??? Ainda não sei, deixei para definir após o Everest. Mas, para onde quer que vá sei que será para alguma região montanhosa do planeta...

 
 
 
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