+  BLOG DO MANOEL MORGADO
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Pela primeira vez no C1 e visita ao C2
 
 
 

17/04/10 – Beleza e perigo

Acordo as 3 da manhã e tenho que buscar toda a força de vontade dentro de mim para comecar a me preparar para o grande dia. Está doze graus negativos fora da barraca e tenho apenas o rosto do lado de fora do meu sleeping bag. Chamo a todos, mas sinto que eles também se sentem da mesma forma que eu. Estranho, eu sempre pensei que nesta hora estaria morrendo de medo de enfrentar a cascata. Em muitos relatos que li as noites antes de subir a cascata sempre inspiravam um grande receio. Meu amigo Carlos Escobar que guiou no Everest 4 anos atrás, me contou que nem conseguia dormir a cada vez que tinha que cruzá-la. Do meu lado, só sinto preguiça de sair no frio. Levo uma hora para me vestir com 4 camadas no tronco, duas nas pernas e um gorro grosso. Tento comer bastante no café da manhã, mas só consigo comer duas torradas e um ovo frito, mas tomo um litro de clight quente.

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Caminhando como um robô com minhas desajeitadas botas duplas entre as pedras do acampamento me deslumbro com a linda noite estrelada sem lua e sem vento. Antes de seguir rumo a cascata paramos frente ao altar e acendemos junípero e junto com o Padawa faço uma pequena preçe para que Chomolongma nos receba. Atiramos grãos de arroz aos deuses e seguimos nosso caminho. Na direção da cascata vejo um grande fila de pequenos pontos de luz subindo verticalmente rumo ao campo 1. Após meia hora de caminhada chegamos ao início da subida e colocamos nossos crampons. O barulhinho do gelo quebrando sob meus pés sempre é delicioso e tento colocar um ritmo constante para acalmar meu coração que bate loucamente. Aos poucos vou me acalmando e em mais uma hora chegamos a primeira escada que se apoia dos dois lados de uma enorme cravasse com pelo menos 30 metros de profundidade. Me coloco na posição inclinado para frente apoiado nas duas cordas e isso faz com que eu olhe diretamente no enorme abismo de gelo azul por entre meus pés. Nesta altura o sol está quase nascendo e tenho luz suficiente para ver onde estou. O lugar é maravilhoso, o paraiso de um montanhista. Enormes torres de gelo de posições e formas variadas, gigantescas cravasses se abrindo para todos os lados, blocos de gelo caidos a esmo mostrando claramente o quanto esta encosta toda está em constante fluxo. Tento não pensar em como é absurdo estar me expondo desta maneira. Normalmente eu não subiria em uma escada colocada tão precariamente nem para trocar uma lâmpada e no entanto aqui estou eu cruzando uma fenda que não consigo e nem ouso ver onde acaba. Mas, mesmo assim prossigo pelo louco labirinto de gelo subindo, descendo, cruzando mais cravasses, galgando os degraus em encostas que de outra maneira necessitaria de técnicas de escalada em gelo o que nesta altitude seria muito cansativo e tardaria ainda mais aumentando o perigo. A idéia é passar pela cascata da maneira mais segura, mas também mais rápida diminuindo o risco de estar lá quando um desses blocos desabe. As 9 da manhã estou a 5500 metros de altitude e entro no que se chama de "área da pipoca", a mais perigosa parte da escalada. Esses 200 metros verticais realmente dão medo e passamos por ela sem parar um segundo. O nome vem da enorme quantidade de blocos de gelo de ao redor de 1 metro cúbico empilhados uns sobre os outros sem lógica ou razão. Um caos pronto para te engulir. Acima da popcorn está o football field, o campo de futebol, um dia uma região plana, mas que hoje é uma enorme encosta também bastante irregular. Tenho fome e sede, mas parar aqui é loucura. Seguimos mais uma hora e finalmente chegamos em uma região segura para reunir o grupo e descansar um pouco. O perigo ficou para trás e posso relaxar um pouco. Acabo de cruzar pela primeira vez a cascata de gelo do Khumbu! Enquanto comemos um pouco escutamos o enorme barulho de um bloco de gelo se quebrando, algo como um grande trovão. O Victor corre para a borda da cascata, mas não ve nada e concluimos que nada de sério aconteceu. Tudo é tão fortuito...

Chegamos ao acampamento 1 após duras, duríssimas seis horas e meia de escalada, mas a visão das barracas é um pequeno conforto. O sol está escaldante e deixa o interior das barracas inabitável. Colocamos os colchonetes do lado de fora e fazemos um picnic. Estou me sentindo super bem e ao checar minha oximetria vejo que estou com 90% de saturação (resultado excelente) e 55 de frequência cardíaca. No entanto, conforme as horas passam começo a sentir minha tão conhecida dor de cabeca pulsátil atrás do olho direito. Infelizmente sei muito bem como será a sequência nas horas que se seguirão. A dor vai piorar, virá a nausea, vomitarei e terei uma noite infernal. Tal qual um bem conhecido script, vou seguindo os passos. Não consigo comer mais nada e o que comi volta as 8 da noite. Tomo analgésicos, mas de nada valém. Finalmente as 2 da manhã consigo dormir, mas as 4 já estamos nos preparando para seguir para o campo 2, quatrocentos metros acima.

18/04/10 – De volta ao campo base após visitar o campo 2

Por toda a noite me torturei com a possibilidade de não conseguir acompanhar o grupo ao campo 2. Sei muito bem o quanto essa subida ao campo 2 é importante e que se não for hoje até lá terei de alguma forma compensar para estar nas mesmas condições do grupo. Mas, quando o despertador toca, vejo que a dor de cabeça passou e que apesar de não ter dormido quase nada e não ter jantado posso pelo menos tentar subir. Tomo apenas um copo de chá, nada mais desce e começo a me preparar para sair. A temperatura está ao redor de 18 graus negativos e um vento sopra do Lhotse em nosso rosto. Estou no Vale do Silêncio e na minha frente está o meu objetivo. Enquanto caminho vou estudando a rota que percorrerei nas próximas semanas. O Vale do Silêncio é uma enorme bacia cercada de paredes de gelo altíssimas. Ao sul, a parede do Nuptse lindíssima toda de gelo vitrificado. A frente a imponente e muito íngrime parede do Lhotse que liga o campo 2 ao campo 4 no South Col, ou Colo Sul. E ao norte a parede do Everest e visível claramente de onde estou a rota do dia do cume. Estou todo coberto e mesmo assim minhas mãos e pés estão gelados. Penso em quanto a Andrea vai sofrer neste dia. O sol já iluminou todo o vale, mas seus raios ainda não chegaram até onde estou caminhando. Coloco o buff sobre o meu rosto, mas o ar que já é rarefeito fica ainda mais escaço e prefiro sofrer com o frio do que com a falta de ar. A subida é longa, mas gradual e consigo manter um ritmo enquanto minha mente vaguea e analiza tudo o que vi e senti nas últimas 24 horas. Preparo-me para cruzar mais uma ponte e como já cruzei mais de 30 desde ontem acho que está sera rotina, mas por alguma razão sinto que esta é diferente e tenho medo. Claro que isso faz com que começe a cruzá-la com inseguridade e no meio dela me desequilibro e pela primeira vez acho que vou cair. Travo no meio dela e tento me acalmar, respiro fundo duas vezes e passinho a passinho vou chegando no outro lado. Aliviado sigo em frente já temendo ter de cruzá-la outra vez dentro de poucas horas quando voltar ao campo 1. Dalí para frente não tem mais escadas, mas por outro lado tenho que saltar várias cravasses menores e por serem menores não tem corda fixa para dar segurança. A cada uma que salto tenho uma breve visão de suas profundezas e sinto que desde que começamos ontem por poucos momentos pude realmente relaxar.

Chegamos ao campo 2 após duas horas de escalada e estou exausto. A parte final já não é em gelo e sim em morena, uma coleção de rochas congeladas deixando o terreno extremamente irregular subindo e descendo e a cada 5 minuto sou obrigado a parar para recuperar meu fôlego. A falta de sono e principalmente de comida se faz sentir e fico super feliz quando o Victor decide que já subimos o suficiente e é hora de descer. Se até agora o frio castigou muito, agora com os raios de sol chegando até onde estamos vamos sofrer com o calor. O Vale do Silêncio é famoso por ter uma absurda variação de temperatura. Antes do sol nascer a temperatura pode ser de até 20 graus negativos subindo rapidamente a 30 positivos em questão de minutos. Tiro minha sobre calça, minhas 3 camadas da parte superior e fico só de camiseta e calça de trekking, mas mesmo assim sinto toda minha energia se esvair. Estou descendo e parece que estou subindo. As 10 da manhã chegamos de volta ao campo 1 onde paramos por uma hora para rehidratar e comer um pouco. Já me sinto melhor e consigo comer e com isso me sentir mais forte, mas tudo o que desejo é poder dormir por algumas horas. No entanto este não é o plano e as 11 da manhã iniciamos a longa descida cheia de subidas rumo ao campo base. Mais tensão, mais ao redor de 30 escadas e finalmente as 3 da tarde estou chegando ao campo base. Antes de ir para o meu acampamento resolvi passar no da Andrea para avisá-la que já estou de volta. Ela diz que em breve vai fazer-me uma visita e volto ao acampamento. Estou tão exausto que me perco no caminho e acabo demorando o dobro para chegar. Só quando estou sentado na barraca refeitório tomando um copo de café com leite, já sem as horriveis botas duplas que sinto que posso relaxar. Em breve a Andrea chega e lhe conto das minhas aventuras e ela me conta que no dia seguinte subirá ao campo 1 e de lá ao 2 e só voltará a descer depois de 4 noites lá em cima. Como nosso plano é descansar 3 dias e voltar a subir percebemos que vamos nos ver muito pouco nessas proximas 2 semanas... Logo após o jantar vou para minha barraca e exausto adormeço.

19/04/10 – De volta ao Active Rest

Durmo por mais de 12 horas e acordo com um estrondo imenso e imediatamente meu coração dispara loucamente. Desorientado dentro da barraca acho que a avalanche vem da cascata. Olho no relógio e calculo que a Andrea deve estar no meio da subida ao campo 1. Abro afobadamente o ziper da barraca e com imenso alívio vejo que a maior avalanche da minha vida está descendo a encosta oeste do Nuptse, próximo da cascata, mas fora da rota de escalada. Hipnotizado, vejo milhares de toneladas de gelo pulverizado descer em direção ao campo base. Com esforço decido fechar a barraca e poucos segundos depois uma fina nuvem de neve e uma brisa sacodem as paredes de minha barraca. Volto a deitar para me acalmar. Ah, como essa expedição será muito mais dura com eu e a Andrea em lugares diferentes na montanha!

Após o café da manhã iniciamos o que já sei muito bem do Cho Oyu, o conceito de Active Rest, ou seja, dias de recuperação no campo base após termos subido aos campos de altitude, mas com atividade física para que fiquemos ainda mais fortes. Esse plano funcionou maravilhosamente bem no Cho Oyu e vamos aplicá-lo aqui também. Embora tendo um pouco de inveja de outros times que tem dias de verdadeiro descanso sei que esta forma é a melhor e que o esforço desses dias dará frutos mais adiante. Seguimos para o glaciar e buscamos uma parede de gelo quase vertical para treinar nossas habilidades em escalada em gelo. Colocamos os crampons, fixamos uma corda no topo de um penitente e subimos a encosta com o auxílio de dois piolets técnicos e depois descemos rapelando. Fazemos isso repetidamente até que nos damos por felizes e voltamos para o acampamento para um almoço tardio. Enquanto estou comendo Kenton, o guia da expedição ao lado da nossa vem trazer um cartão que o Jota, um dos donos da Venturas e Aventuras, tinha deixado com ele no dia anterior quando eu estava montanha acima. Ele está guiando um grupo de clientes de sua agência e tinha ficado de me visitar. Infelizmente eu não estava então deixou um cartão com palavras tocantes e um amuleto para me dar sorte. Mais uma vez me sinto previlegiado em saber que estou longe de estar sozinho nesta empreitada, que muitos amigos estão acompanhando e me enviam do bons fluidos onde quer que estejam.

No final da tarde fui para o acampamento do Angelo, um português que tinha conhecido no Cho Oyu. Ele é piloto da TAP e frequentemente voa para o Brasil e tem muitos amigos brasileiros. Quando cheguei lá vi que ele também tinha convidado a Karina, uma médica brasileira especializada em wilderness medicine e também apresentadora de um programa de telivisão no Brasil. Como menu tivemos presunto espanhol, bacalhoada, mexirica de sobremesa e, é claro, vinho do porto. Saí de lá com o coração e a barriga felizes.

 
 
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Guia e Alpinista
 
 
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- Este é o objetivo destes artigos e foi uma das motivações que me levou, 13 anos atrás, a começar a guiar pessoas em lugares que amo, para entrar em contato com culturas que admiro e realizar atividades que fazem com que enfrentemos desafios e ampliemos nossos limites. Sempre procurei direcionar minha carreira profissional para que estivesse em harmonia com o estilo de vida que almejo.

Para mim trabalho e prazer se combinam de forma quase indestingüível. Isso me permite viajar doze meses por ano, seis meses guiando grupos pelo mundo, principalmente na Ásia e o restante do ano viajando pelos lugares dos meus sonhos. Então, se assim como eu você é um viajante habitual ou apaixonado por relatos de viagens, poderá encontrar aqui informações, impressões, dicas, bibliografia e videografia, sobre os lugares por onde viajo.

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2009
Cho Oyu (China) com 8.201 metros