Sonhar. Planejar. Realizar. Creio que todos os projetos que temos em mente começam com o sonho. Depois passamos ao planejamento, para ver se é viável ou não. E só então vem a realização.
Desde o ano passado eu e o Manoel estamos planejando escalar uma montanha de 8.000 m. Coisa que, para mim , sempre foi um sonho – e admito dizer, acreditava ser impossível. Mas devagar, a idéia foi se tornando mais viva, comecei a pensar que realmente era viável. Escolhemos uma montanha “mais fácil” tecnicamente e o sonho começava a entrar na fase do planejamento.
Toda a parte de expedição ficou por conta do Manoel já que possui muita experiência nisso, além de duas montanhas de 8.000 m. Conversamos sobre a estrutura da expedição, mas eu acabo entrando mais como ouvinte que outra coisa... mas vou aprendendo como funciona. Para mim, ficou claro que eu preciso estar na minha melhor forma física para encarar um desafio desses. Comecei a planejar como faria esse preparo, afinal não temos academia por perto e outras coisas que normalmente nos passa pela cabeça.
Depois de alguns “módulos” de treinamento na Argentina e Chile, em janeiro e fevereiro, partimos para nossa agenda de viagens começando pelo Nepal. Minha idéia era usar todas as viagens como treinamento, carregando mochila pesada nos trekkings. Sempre estamos em altitude, o que ajuda pelo menos um pouco nessa questão. Assim, eu teria até setembro seis trekkings e cinco montanhas para estar fisicamente forte – ou, como diria um de nossos sherpas, “mentally and fisically fit”.
Mas, quando planejamos qualquer projeto, temos que estar abertos para eventuais mudanças de roteiro...
Eu estava sentindo algumas dores no meu joelho (que já passou por duas cirurgias), mas não estava achando que fosse nada sério. Mas claro, quando cheguei no Brasil fiz uma consulta com meu ortopedista que me pediu alguns exames. Enquanto não saiam os resultados, resolvi ficar sem treinar nesse período. Os resultados saíram 3 dias antes de embarcarmos para Katmandu e, para minha surpresa, eu estava com uma fratura por estres no joelho. A indicação era repouso, mas como já estávamos a viagem marcada e 19 clientes nos esperando para o trekking, o médico sugeriu que eu fosse fazer os 15 dias de caminhada (ida e volta) até o acampamento base do Everest, mas com a condição de que caminhasse sem peso e, se eu sentisse dor, voltasse a Katmandu.
Acreditando que eu daria conta do trekking, embarquei com todo o grupo para Lukla onde começa a caminhada. Levando apenas uma mochila leve, segui por quatro dias tomando o máximo de cuidado, indo devagar e pegando leve principalmente nas descidas. Mas comecei a sentir dor e me passou na cabeça que deveria voltar a Katmandu e repousar. Por outro lado, se eu fizesse isso, iria deixar o grupo e o Manoel acabaria com mais trabalho com os clientes. E desistir nunca é um sentimento muito bacana... O outro lado da moeda era a escalada do Manaslu e todo o treinamento que ainda estava por vir este ano. Se eu forçasse meu corpo no trek no Nepal, isso poderia me obrigar a um repouso obrigatório mais adiante e talvez fosse atrapalhar ainda mais meu planejamento. Assim, pensando na escalada resolvi voltar a Katmandu. Apesar de saber que estava fazendo a coisa certa, tantas emoções, na sua maioria negativas, passaram pelo meu coração. Fiquei realmente chateada.
No dia seguinte segui de helicóptero até Lukla e de avião até Katmandu, onde tive 10 dias para repousar e iniciar a recuperação da fratura, que levaria em torno de 30 dias. Enquanto estava em trânsito para Katmandu, o que mais me passava pela cabeça era se eu não tinha desistido cedo demais, se não deveria ter ido um pouco mais adiante, se esse trekking não teria me ajudado em meu treinamento. Enquanto isso, meu lado racional me dizia que eu havia tomado a decisão correta, que eu já havia feito esse trek várias vezes antes e que o melhor era seguir os conselhos médicos.
Quando cheguei em Katmandu e comecei a cuidar do joelhinho, senti que realmente havia tomado a decisão correta.
Tudo isso coincidiu com a estória de desistência de Russel Brice da escalada do Everest, o que implicou na volta de todos os clientes que estavam com ele e que haviam alimentado por tanto tempo o sonho de escalar o a maior montanha da Terra. Foi acertada, ou foi precipitada essa decisão? Creio que uma pessoa com tanta experiência quanto ele deve ter considerado mil coisas e obviamente o sonho e a confiança que os clientes haviam depositado nele. Mas se Russel estava desconfiado e desconfortável com as condições da montanha, se ele considerou que era o mais correto a se fazer, se apesar de tudo essa decisão trouxe a ele tranquilidade, imagino que foi o correto. Me passa pela cabeça que se ele tivesse se sentido pressionado por qualquer motivo a seguir em frente com a escalada e se realmente acontecesse uma fatalidade com algum cliente, ele jamais se perdoaria.
Por outro lado, as outras expedições seguiram em frente, acreditando em seu “feeling” de que tudo correria bem. Da mesma maneira, os chefes das expedições das grandes empresas eram pessoas extremamente experientes... mas que tiveram uma visão diferente da de Russel. Eles fizeram sua opção e creio que ficaram com a cabeça tranquila com a decisão tomada.
A montanha sempre ensina... coisas grandiosas, como auto-superação, confiança, comunhão com a Natureza e respeito a essas forças, nos faz perceber nosso real tamanho nesse mundo. Por outro lado, às vezes nos coloca de frente à sentimentos menos nobres (mas não menos importantes) como frustração, medo, limitações. E saber desistir é um dos grandes aprendizados na montanha. “Nunca desistir” e outras frases de efeito que ouvimos por ai é algo irreal e creio que traz um sentimento ainda maior de frustração, pois as pessoas começam a encarar que desistir seja algo “errado”, sendo que não há nada de errado com isso. Desistir é humano e saber desistir é algo difícil mas que pode ser aprendido...
Algumas vezes a desistência é algo obvio, como quando, em janeiro de 2011 estava escalando o Aconcagua e cheguei no campo 3 estava com congelamento de pés e começando uma hipotermia. A desistência foi a única opção a tomar naquele momento e naquelas condições. Mas pode também ser algo mais sutil, quando não estamos em uma situação tão extrema, como foi o caso no Everest. Lá, naquele momento, ninguém estava correndo risco de vida. Na visão de Russel, ele colocaria vidas em risco se continuasse com a escalada.
Ainda quando todas as condições indicam que deve-se desistir, às vezes isso não é ouvido e as pessoas seguem ultrapassando os limites. Por questões pessoais, pressão do grupo ou qualquer outro forte motivo, muitas vezes os escaladores entram no que chama-se summit fever, ou febre do cume. Na tragédia de 1996, na escalada ao Everest, o efeito do summit fever teve consequências desastrosas: 8 pessoas morreram no mesmo dia de ataque ao cume. Nessa ocasião, o tempo estipulado para o retorno ao campo 4 já havia estourado, uma tempestade estava entrando, o oxigênio suplementar acabando e, mesmo assim, as pessoas seguiram rumo ao cume. Mas não conseguiram voltar. Creio que, mais do que congestionamento nas cordas fixas, a principal questão nesse acidente foi que as pessoas não souberam desistir. Queriam o cume a todo custo, mas perderam a vida... não souberam desistir de um sonho. Não levaram em consideração que a montanha sempre estaria lá, mas que a vida é muito mais frágil e mais valiosa que o cume.
O que é “saber desistir”? A meu ver, não é parar no meio do caminho toda vez que encontramos alguma dificuldade. Mas sim colocar na balança prós e contras, físicos e emocionais, e tomar a decisão. Se o coração permanecer tranquilo com a decisão, a escolha foi acertada. Senão, ainda há o que se aprender com o desistir.
Lisete Florenzano |