Em geral quando alguém escreve para contar a trajetória de vida de outra pessoa, mesmo que referente a um curto espaço de tempo, é porque o protagonista da história morreu. Falar bem de alguém parece ser sempre uma atividade póstuma. Pois bem, quero mudar isso. Quero escrever um pouco sobre “mein Freund Hendrik” – meu amigo Hendrik –, que está bem vivo, saudável e cada dia mais feliz.
Em 2004, quando eu trabalhava como editor da falecida revista Aventura & Ação, um casal muito simpático quis conversar comigo durante a Adventure Sports Fair – a feira de esportes e turismo de aventura que acontece anualmente em São Paulo. A revista manteve por anos um dos stands mais festivo e concorridos da feira, com cerveja e sushi a vontade.
– Sou responsável pela comunicação da Secretaria de Turismo de Blumenau, em Santa Catarina, – se apresentou a mulher.
Segundo eles, no interior de Santa Catarina havia um grande potencial de formatação de um roteiro de cicloturismo visitando pequenas cidades de forte influência europeia. O nome do roteiro proposto era CIRCUITO VALE EUROPEU.
– Gostaríamos que você visitasse nossa região e dissesse se existe mesmo esse potencial e, quem sabe, produzisse uma matéria para a revista.
Negócio fechado, marcamos minha ida a Blumenau.
Fomos recebidos – viajei com minha esposa, Adriana Braga – como realeza. Ficamos hospedados num bom hotel, tínhamos uma van com motorista à nossa disposição e uma programação completa de aventura já agendada. Para pedalar a região de Pomerode e Rio dos Cedros o pessoal da Secretaria de Turismo de Blumenau convocou a ajuda de dois mountain bikers locais, um deles era o jovem Hendrik Fendel, então com 22 anos, recém-retornado de um ano de residência e estágio profissional na Alemanha, prestes a se formar em engenharia de produção.
Pedalamos um bocado juntos pelas serras, visitando bairros inteiros construídos no estilo “enxaimel”, conhecido como Fachwerk em alemão, onde as pessoas ainda falam a língua de seus antepassados germânicos entre si; tomamos cerveja artesanal na fábrica da cervejaria Eisenbahn; a Adriana desceu um rio em rafting e quase se afogou num rodamoinho de contra fluxo; conhecemos um pedaço do Brasil de personalidade forte, pouca brincadeira e muito trabalho, cidades de ruas impecavelmente limpas, olhos claros e cabelos loiros, que me inspirou em escrever um artigo intitulado “A Europa é Nossa”, a primeira menção na grande mídia sobre o CIRCUITO VALE EUROPEU, antes mesmo dele existir. E fizemos pelo menos um grande amigo.
Não se pode esperar muito mais de qualquer viagem.
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Hendrik Fendel no CURSO DE GPS PARA AVENTURA, no Refúgio Kalapalo, em Gonçalve (MG), na Serra da Mantiqueira. Foto: Guilherme Cavallari |
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Hendrik e eu mantivemos contato. Alguns anos depois, quando eu questionava se seria realmente possível viver de aventura, como eu gostaria, ele me convidou para pedalar por alguns dias por uma região remota de Santa Catarina onde ele explorava trilhas e roteiros. Eu não tinha dinheiro nem para pegar um ônibus até lá.
– Venha do mesmo jeito, é por minha conta!
E fui. Pedalamos sob muita chuva e teve um dia que tivemos que pedalar à noite debaixo d’água. Era tanta água e tanta lama que não demorou muito e as marchas e os freios das mountain bikes não funcionavam mais. Todos sorriam com os rostos cobertos de barro. Todos os músculos do corpo doíam pelo esforço. Tudo parecia ruim, mas era difícil encontrar algo melhor.
Eu já dava aulas de trekking, mountain bike e cicloturismo para completar o orçamento doméstico, que a venda dos meus livros às vezes não alcançava. Sugeri ao Hendrik que montássemos juntos um CURSO DE GPS PARA AVENTURA, onde ele pudesse ensinar o uso dessa tecnologia. Eu tinha a dinâmica do curso na cabeça e o canal de contato com o potencial público interessado, o Hendrik domina essa tecnologia e é o único cara que conheço que consegue tirar cafezinho de um aparelho de GPS… Nem preciso dizer que o curso foi e continua sendo um sucesso absoluto. Mas o melhor de tudo é que duas vezes ao ano eu e Adriana podíamos receber nosso amigo Hendrik em nossa casa, quando ainda morávamos em São Paulo. Acho inclusive que essa foi uma das principais razões por trás de querer montar um curso com ele.
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GUIA DE TRILHAS SERRA GERAL (BLUGRAMA) |
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Em 2009, depois de lançar o GUIA DE TRILHAS CICLOMANTIQUEIRA, com o mapeamento completo que fiz de mountain bike por toda a crista da Serra da Mantiqueira, decidi criar um roteiro nas serras gaúchas e catarinense, que batizei de GUIA DE TRILHAS SERRA GERAL (BLUGRAMA). Convidei o Hendrik para me orientar e ajudar no mapeamento. Eu sabia que não havia ninguém nos estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul com mais informação de campo que ele. O subtítulo BLUGRAMA era a união de Blumenau e Gramado, as duas cidades nas extremidades desse imenso roteiro de 1.611 quilômetros de extensão.
Enquanto eu realizava a EXPEDIÇÃO TRANSPATAGÔNIA, a longa travessia solo em bicicleta de seis meses de duração e 6.000 quilômetros de extensão que fiz entre 2013 e 2014, Hendrik foi me visitar nas semanas finais. Fizemos juntos o último dos seis roteiros de trekking do projeto. Ele aparece no filme-documentário TRANSPATAGÔNIA que produzi, dirigido por Cauê Steinberg.
Em 2014, depois que voltei da EXPEDIÇÃO TRANSPATAGÔNIA, decidi levar um pequeno grupo de aventureiros para explorar comigo a região do Vale Chacabuco, na Patagônia chilena. Hendrik imediatamente se ofereceu para ir junto, como uma espécie de ajudante de campo. Na verdade ele dividiu comigo a responsabilidade de guiar e orientar um seleto grupo de cinco aventureiros, entusiasmados e bem-dispostos, que completaram 170 quilômetros de trekking selvagem e exploratório em 11 dias inesquecíveis na EXPEDIÇÃO PARQUE PATAGÔNIA 2014.
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Hendrik, Juliano, Guilherme, Douglas Tompkins, Dudu, Alessandro, Alessandra e Antonio no Parque Patagônia, Vale Chacabuco, Chile, durante a EXPEDIÇÃO PARQUE PATAGÔNIA 2014. |
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Na sequência, terminei de escrever o livro TRANSPATAGÔNIA, PUMAS NÃO COMEM CICLISTAS e Hendrik foi um dos meus 12 amigos a ler o manuscrito antes do texto ir para a gráfica.
Ano passado, em 2015, Hendrik foi demitido da multinacional onde trabalhou por 13 anos como engenheiro de produção. Que ele não saiba disso, mas eu comemorei o episódio. Imediatamente, ele começou a produzir móveis rústicos construídos de dormentes de linhas férreas, bancos, mesas, balcões, abajures e claviculários cortados na motosserra e sem verniz. Imediatamente, ele começou a guiar grupos de cicloturistas pelo CIRCUITO VALE EUROPEU, que ele conhece como poucos, e desenhar novos roteiros na Serra Catarinense em torno da cidade de Urubici. Imediatamente, ele começou a viver daquilo que ele chamava de “hobbies”, mas que de fato compunham o trabalho que ele gostaria de fazer. Em outras palavras, ele começou a ser leal a si mesmo e a colocar a felicidade acima da segurança – e nenhum investimento paga tantos dividendos.
Esse texto é para comemorar uma mudança de direção, um novo azimute na vida de alguém, meu aplauso à coragem e meu voto de sucesso – que não resumo em dinheiro no banco e carro novo na garagem.
Meu amigo Hendrik – mein Freund Hendrik – é muito mais do que a descrição que fiz dele no livro TRANSPATAGÔNIA, PUMAS NÃO COMEM CICLISTAS: “Dezoito anos mais jovem que eu, filho de pai alemão, também engenheiro, Hendrik é dessas pessoas organizadas, trabalhadoras, competentes, incansáveis e divertidas. Certeza de boa companhia em qualquer situação e em especial se tiver chuva forte, frio intenso, falta de comida, mar de lama e infinitos problemas mecânicos nas bicicletas”… Mas isso só vai descobrir quem tiver o prazer de conhece-lo pessoalmente.
Para falar com Hendrik Fendel, incentiva-lo em sua nova trajetória, parabeniza-lo, contrata-lo como guia ou adquirir alguma de suas peças, escreva para: hendrikfendel@hotmail.com.
Guilherme Cavallari,
autor de 18 livros sobre esportes e turismo de aventura, entre eles o recém-lançado “Transpatagônia, Pumas Não Comem Ciclistas”, tenta levar uma vida simples nas montanhas da Mantiqueira. Também colabora como colunista do Extremos desde 2010. |