Antes de abandonar a vida na cidade de São Paulo, passei mais de cinco anos sem carro. Tanto eu quanto minha esposa trabalhávamos em casa e o carro acabou por tornar-se obsoleto em nossas vidas: um luxo de valor infinitamente desproporcional a seus benefícios – o que, aliás, é uma boa definição de qualquer luxo.
Mas, do dia para a noite, eu me vi numa enrascada. Sou mountain biker e poucas coisas na vida me dão mais prazer do que pedalar por trilhas e, sem carro em São Paulo, as trilhas de repente ficaram longe demais...
Foi quando descobri que o carro ocupava o lugar da amizade...
Assim que fiquei desmotorizado, um grande amigo e companheiro de trilhas se prontificou a me apanhar e deixar em casa todo fim de semana para podermos pedalar juntos. No começo fiquei até um pouco constrangido em receber tanta gentileza de forma tão regular. Todo sexta ele me mandava uma mensagem no celular dizendo: “amanhã às 8h te pego”. E no horário marcado (às vezes um pouco atrasado) ele estacionava na frente de casa e nós íamos para o mato. Mais ou menos às 11h ele me deixava de volta em casa. Antes, nós apenas nos encontrávamos no ponto de encontro – um posto de gasolina nos primeiros quilômetros de uma importante rodovia paulista.
O transporte individual, o carro, funcionava como uma fonte de isolamento.
Ir de bike até a trilha? Impossível! Eu teria que pedalar cerca mais de 50 quilômetros cortando a cidade, transitar pela Marginal Tietê e pegar uma rodovia para, então, encontrar os amigos e a natureza. E depois voltar para casa! Cada treino de fim de semana seria o equivalente a uma pequena corrida de aventura.
Nesse longo período, passei a valorizar cada trilha que fazia como se fosse a última. Cada carona era um presente recebido que merecia o devido agradecimento e enchia meu coração de alegria e esperança. Numa sociedade individualista como a nossa, havia ainda resquícios de humanidade, pequenos gestos de carinho que iluminavam os céus tanto quando o sol.
Todo o tempo sonhando com lugares no planeta onde a bike – e só a bike – poderia me levar.
Eu lembrava então da época em que ainda não tinha bicicleta e tampouco tinha dinheiro para comprar uma. Depois relembrei o tempo em que quase todo o dinheiro que sobrava era investido para melhorar a magrela, instalar peças mais leves e eficientes, comprar aquela suspensão dianteira que me permitiria passar mais horas no selim, um capacete mais ventilado, um par de óculos melhores... Todo o tempo sonhando com lugares no planeta onde a bike – e só a bike – poderia me levar.
Bicicleta e liberdade pareciam sinônimos, gêmeos siameses unidos pela alma.
Mas quase sem perceber fui me deixando envenenar. Consegui comprar a primeira mountain bike e antes que ela ficasse irremediavelmente suja – como toda boa mountain bike deve ser – eu já cobiçava outra bicicleta. Não me bastava duas camisetas de ciclismo, era preciso uma coleção. Pedalar sem GPS? Impossível! Sem a última suspensão do mercado? Impensável! Não tomar complementos e suplementos alimentares soava como lento suicídio! E o mountain bike deixou de ser liberdade para se tornar “estilo de vida”... E como todo estilo é sinônimo de moda e consumo... Fodeu!
Com o passar do tempo, o hobby se tornou profissão e me tornei autor e editor de guias e manuais de esportes de aventura. Passei a ganhar a vida nos pedais – e no teclado do computador, claro! – criando e publicando roteiros impressos que pudessem levar outros ciclistas a viver as experiências que eu vivia. O negócio deu certo, ao seu modo, e logo eu tinha a bike dos meus sonhos, o carro dos meus sonhos, a casa dos meus sonhos e todo tempo do mundo para pedalar... E foi quando percebi que estava pedalando cada vez menos.
Esses sonhos materiais custam caro e exigem esforço para alcançar e manter. Nada muito diferente da escola particular para os filhos, o plano de saúde ilimitado, roupas e calçados de grife, jóias, viagens internacionais e o ingresse ao “mundo gourmet”.
Internet rápida? Custa caro. Seguro do carro? Custa caro. Televisão a cabo? Custa caro. Creme antirrugas? Celular de última geração? Aparelho de TV 3D? Notebook com maçãzinha? Tudo custa muito caro porque, no final, pagamos em tempo e não em dinheiro!
E a bicicleta, que simbolizava tão bem a liberdade, foi também aos poucos perdendo sua conexão com o livre... A tecnologia espacial e do milionário mundo do automobilismo competitivo chegaram às magrelas e as bikes ficaram tão caras quanto os carros. Ligas leves e sofisticadas de metal nos quadros e componentes, cada vez mais marchas, freios a disco hidráulicos, pneus sem câmeras, suspensões inteligentes acionadas a partir de impactos vindos de baixo para cima, e assim por diante. Os quadros de alumínio – que vinham com garantia vitalícia: enquanto o primeiro proprietário vivesse, qualquer defeito estrutural não decorrente de acidentes resultava em um quadro novo – foram gradativamente sendo substituídos por quadros de fibra de carbono com apenas três anos de garantia. Três anos em vez da vida toda! E a obsolescência programada finalmente chegou às bicicletas porque, depois de três ou quatro anos, miraculosamente, o quadro desintegra...
Parece que hoje em dia para ser mountain biker o sujeito tem que ser manager, businessman ou consultant – ícones corporativos para designar “gente bem-sucedida”...
E onde fica a bicicleta nisso tudo?
Depende...
Se a bike for mais um símbolo de sucesso, poder e realização individual, vai ficar recostada na estante perto do Rolex, na garagem ao lado da BMW ou passar mais tempo na oficina do que na trilha... Porque quando mais limpa, brilhante e nova, melhor!
Se for o grito de liberdade para o qual ela foi criada, estará sempre suja, simples, corroída pelo uso e deliciosamente destruída pelo abuso, largada no gramado ao pé de uma árvore às margens de um córrego limpo. Afinal, bicicleta sempre combinou com rebeldia e, hoje em dia, ser rebelde é simplesmente ser simples...
Um delicado equilíbrio mais difícil de manter do que andar de bicicleta.
Guilherme Cavallari,
autor de 18 livros sobre esportes e turismo de aventura, entre eles o recém-lançado “Transpatagônia, Pumas Não Comem Ciclistas”, tenta levar uma vida simples nas montanhas da Mantiqueira. Também colabora como colunista do Extremos desde 2010. |