Quem assistiu ao filme Na Natureza Selvagem, dirigido por Sean Penn e baseado na obra homônima de Jon Krakauer, talvez se lembre do protagonista lendo Jack London e afirmando: “Esse cara é bom! Muito bom!”.
Eu também acho. E praticamente toda a população dos Estados Unidos concorda.
Jack London é uma dessas marcas americanas – como Gilette ou Coca-Cola – que se tornaram sinônimos dos produtos que representam. No caso de London, isso significa “literatura juvenil masculina” – e uma tremenda injustiça!
Famoso pelas histórias que narram sua experiência como garimpeiro de ouro no Alasca: White Fangs e The Call of the Wild – traduzidas para o português como Caninos Brancos e O Chamado da Floresta –, London não merece ser lembrado apenas como um escritor de aventura.
Nascido na cidade de São Francisco, na Califórnia, em 1876, London escreveu várias dezenas de contos, duas dúzias de romances, três memórias autobiográficas, mais de 20 ensaios filosóficos, três peças de teatro e dezenas de poemas, além de incontáveis artigos para jornais e revistas. Apesar de ter vivido apenas 40 anos, rapidamente tornou-se o primeiro escritor – ou artista – a acumular mais de um milhão de dólares em direitos autorais.
E para muitos críticos, Martin Eden é seu mais importante trabalho.
A verdade é que poucas personalidades exemplificam tão bem o momento histórico que viveram como Jack London. Ele assistiu à virada do século 19 para o século 20 numa das maiores mudanças socioeconômicas da humanidade e sua vida é quase um testemunho completo dessa conturbada fase da sociedade.
Filho de uma família desestruturada, de classe média, sua mãe tentou suicídio quando soube que estava grávida e que o pai da criança não era seu marido. O pai biológico de London tampouco quis assumir a paternidade e o bebê foi largado nas mãos de uma negra ex-escrava que o criou como filho. Aos 21 anos, quando descobriu sobre esse passado pessoal obscuro, London abandonou a universidade e foi procurar por ouro no Alasca. Ele já havia trabalhado como “pirata de pérolas” – um tipo de contrabandista comum na Baía de San Francisco – e depois do Alasca trabalhou como marinheiro em escunas pesqueiras de alto mar.
Esses trabalhos braçais extremos, em contato com a natureza selvagem ao lado de gente fisicamente forte, mas culturalmente limitada, resultaram na formação de seu caráter e de sua visão única do mundo. London construiu valores pessoais sólidos baseados na apreciação da beleza livre da interferência moralista de seu tempo. Ele tornou-se um idealista.
De volta do gelo e do mar, sem um centavo no bolso, decidiu que seria escritor. A opção profissional foi prática e matemática, puramente empírica e objetiva: ele sabia que como trabalhador braçal viveria na miséria. Essa era a sina de toda a massa de mão de obra que erguia e sustentava a infância do capitalismo. Como escritor, ganharia a vida com mais liberdade sem sujar as mãos.
Assim, em apenas três anos, London saiu do anonimato de um aprendiz de escritor, tentando vender historietas para revistas e jornais de terceira classe, para tornar-se o escritor mais lido e apreciado de seu país. E essa é também a base do enredo do romance Martin Eden.
Assim como London, Martin Eden era marinheiro e decidiu, por razões meramente econômicas, virar escritor. E assim como London, Martin Eden se auto-educou e obteve sucesso. O livro narra os detalhes psicológicos e sociológicos, além de literários e filosóficos – indicando quais livros e autores mais influenciaram a jornada –, de toda a transição do personagem e, em paralelo, da sociedade.
Martin Eden foi escrito nos últimos anos de vida de London, a bordo de um iate numa viagem de volta ao mundo. Apesar do inegável caráter autobiográfico da obra – London dizia que para ele “era mais fácil a expressão que a imaginação” – autor e protagonista apresentam uma diferença básica: enquanto Jack London foi um ferrenho socialista, Martin Eden se autodenomina na obra como seguidor do “individualismo pregado pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche”. E anos depois de lançado o livro, London disse ao escritor norte-americano Upton Sinclair que “havia falhado na mensagem que tentara passar em Martin Eden”. A obra pretendia criticar o individualismo Nietzscheniano e, segundo o próprio London, “nenhum crítico notou”.
A obra de Jack London – e em especial Martin Eden – combina muito com o filme Na Natureza Selvagem, inclusive muito mais que Caninos Brancos ou O Chamado da Floresta – histórias que reli recentemente. London foi e sempre será uma forte oposição aos aspectos nocivos do capitalismo e seu infinito poder destrutivo da natureza e do natural no ser humano. Não coincidentemente, Tolstói e Thoreau são outras referências literárias que aparecem no filme.
Martin Eden tem um final trágico – calma! Não vou contar! – e a vida de Jack London também não terminou bem. Alcoólatra, morreu de uma overdose de morfina durante uma forte crise renal, que muita gente supôs ter sido suicídio. Poucos anos antes sua mansão, recém-terminada, fora misteriosamente incendiada e London apontado como o principal suspeito. Mas seu legado literário – inquieto, profundo e questionador – inspira e agita pessoas até hoje, como acontece em Na Natureza Selvagem.
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Abraços,
Guilherme Cavallari
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