Há muito tempo eu queria fazer de bicicleta a ligação entre El Chaltén e Villa O´Higgins, a famosa trillha de Candelario Mansilla. Finalmente fiz a trilha e tive duas surpresas. Primeiro, é muito mais bonita e fácil do que imaginava. Segundo, não sei porque todos passam por Candelario Mansilla e não exploram as trilhas em trekking da região, como eu fiz. O lugar é espetacular.
A estrada de terra que vai de El Chaltén à Laguna del Desierto tem pouco mais de 36 quilômetros de extensão e bordeia o maciço do Fitz Roy pelo lado leste, de onde se vê claramente a Supercanaleta, um rasgo estupendo na rocha em quase toda a altura da montanha e um ícone da escalada internacional. O caminho costea o Río de las Vueltas em toda sua extensão, até a ponte que o cruza, já bem próximo à Laguna del Desierto.
Chegando à Ponta Sul da Laguna existe a possibilidade de continuar por uma trilha, famosa por ser muito dura e difícil, de aproximadamente 15 quilômetros e com um belo Lodge no meio, até o posto de controle de passaporte argentino, na Ponta Norte da Laguna. Por sorte ou azar, quando cheguei à Ponta Sul faltava menos de meia hora para o barco que conecta os dois portos chegar e terminei por optar pelo caminho mais fácil.
Quarenta e cinco minutos de navegacao tranquila, beirando a monotonia, me levaram ao gramado dos Gendarmes argentinos. Como já era 14:30 decidi acampar e fazer os 20 quilômetros até Candelario Mansilla no dia seguinte, descansado e com tempo de sobra.
Partindo do posto de fronteira argentino, o caminho é uma trilha em singletrack para cavalos, que ciclistas teimosos como eu insistem em fazer com suas bikes. São 6,4 quilômetros de empurra-bike, sendo os primeiros dois quilômetros morro acima e bem íngremes. Em vários momentos eu tinha que agarrar a bike com uma mão e o bike trailer com a outra e levantá-los juntos, morro acima, um metro (e um gemido) por vez. Mas, o bosque à minha volta era tão bonito e a vista para a Laguna del Desierto e as montanhas do vale do Río de las Vueltas tão espetacular, que o suor que me escorria do rosto e banhava minha roupa passavam quase despercebidos.
Foram duas horas de luta-livre com a bike e o bosque, onde eu usei todos os músculos do meu corpo de forma equilibrada. Mas não precisei desconectar o bike trailer nem uma vez, o que era meu maior medo. Ter que carregar a bike e depois voltar para carregar o bike trailer significa que a trilha é um inferno digna de Dante Aligheri, algo assim parecido com festival de música Axé em festa de peão boiadeiro.
Uma vez passada fronteira termina o singletrack e comeca uma estrada de terra para veículos 4×4 em boas condições. São mais 14 quilômetros, sendo os dois ou três finais uma descida kamikaze de pedras soltas e areia repletos de curvas fechadas com penhascos de um lado e morro de pedra do outro. A beleza do Lago O´Higgins e suas águas de cor turqueza atrapalham mais do que ajudam, tiram a atenção da estrada e convidam a uma queda violenta… Como aconteceu comigo, sem maiores consequências.
Cinco dias depois, peguei mais um barco, de Candelario Mansilla à Villa O´Higgins, cruzando todo o Braço Norte do lago com forte vento contra. Foram 2:45 de viagem, bastante desconfortáveis pelo balanço da lancha. Depois, mais meia hora de bike por sete quilômetros em estrada de terra, sinuosa e costeando ainda o lago, até o centro da vila. Esse último trecho de pedal eu fiz num luscofusco patagônico brilhante e colorido, com nuvens refletindo o por-do-sol laranja e montanhas cinza, verde e marrom com manchas brancas de neve.
TREKKING À GELEIRA O´HIGGINS
Quando estava em El Chaltén comprei um mapa, recém-lançado, com as trilhas da região de Candelario Mansilla desenhadas, mas superficialmente explicadas. Descobri que havia uma possibilidade de visitar a Geleira O´Higgins, uma das maiores da região, por terra. Uma expedição exploratória de quatro ou cinco dias de duração.
Conheci a terceira geração da família de pioneiros Mansilla, netos do velho Candelario, que me formeceram não somente informações adicionais essenciais sobre as trilhas, mas também detalhes históricos e culturais da região. Senti que tinha material suficiente para arriscar a empreitada. Passei no posto de Carabineros de Chile para carimbar meu passaporte e também para avisar que faria trekking solo. Os policiais me fizeram preencher um fomulário e até tiraram uma foto minha, para uma eventual patrulha de busca… “Alguém viu esse barbudo com cara de louco passando por aqui?”
No dia seguinte comecei a caminhada. Fui pela costa do Lago O´Higgins em direção noroeste, contornando uma grande ponta de terra, recortada de penínsulas e lagoas, sempre bem acima da margem do lago. Toda a área é deserta. Precisei caminhar dez horas e 24 quilômetros, debaixo de chuva as primeiras horas, até chegar a uma casinha isolada e habitada por um ermitão chileno chamado Adelicio Lagos, mais conhecido como Licho, que ficou tão surpreso e feliz com minha visita que me cedeu uma cama de hóspedes para a noite, chuvosa e fria. Consegui secar minhas roupas e botas para a caminhada do dia seguinte.
O segundo dia me levou por 12 quilômetros e cinco horas de caminhada até o Rio Chico, que despeja as águas do Lago Chico no Lago O´Higgins. Do outro lado do rio de 50 metros de largura havia uma casa com fumaça saindo da chaminé. Era a Estancia La Carmela. A informação que tinha era de que bastava gritar ou assobiar que os residentes, pai e filho, viriam ao meu auxílio e me atravessariam em barco a remo. Foi o que fiz, gritei e assobiei por uma hora e quinze minutos. Choveu, ventou, fez frio, apareceu o sol, comi um sanduíche e caminhei de uma lado para outro para me manter aquecido, tudo enquanto gritava e assobiava. Finalmente apareceu alguém (que saiu da casa para ir ao banheiro) e, quinze minutos depois, me atravessou para a margem oposta.
No terceiro dia subi a montanha, com cerca de 600 metros de desnível vertical, até um paso que me levaria ao outro lado da península, para o braço de desague da Geleira O`Higgins. Ida e volta foram 20 quilômetros sem um centímetro de terreno horizontal. A paisagem era estonteante. Chegar até a montanha logo acima e em frente à geleira depois de três dias de caminhada sozinho não tem preço… Ou melhor, economizei 40.000 pesos chilenos, ou 80 dólares americanos, preço cobrado pelo barco que leva turistas para ver o mesmo bloco de gelo.
Coincidentemente, quando eu estava lá no topo e já me preparando para ir embora por que nuvens ameaçadoras fechavam a visibilidade da geleira, vi lá em baixo no lago a chegada do barco de turistas. Muito engraçado saber que estava desfrutando da mesma vista, mas com sensação tão distinta.
O quinto e último dia de trekking me levou de volta a Candelario Mansilla pela cordilheira. Fiz uma trilha bastante árdua, de 31 quilômetros em onze horas de caminhada, subindo de 200 metros a 1.050 metros acima do nível do mar, para descer novamente a 200 metros. O paso era um longo desfiladeiro açoitado pelo vento, deserto e assombroso. Do outro lado o sol apareceu e descortinou uma das paisagens mais belas da viagem… O Lago O´Higgins turqueza de uma lado e o vale do Rio Obstáculo, que leva até a Laguna del Desierto pelo lado chileno, do outro. À minha volta tudo o que eu via era natureza intocada, um emaranhado de bosques e picos nevados e rios serpenteando água cristalina montanha abaixo.
Foram ao final 85,5 quilômetros em cinco longos dias. Perdi a trilha diversas vezes. Caminhei pela estepe patagônica, rochas, bosques, atravessei rios sem ponte, venci pasos e entendi que foram necessárias três circunstâncias importantes para essa experiência tão rica…
Essa aventura só foi possível porque eu mudei meus planos iniciais, porque estava aberto e atento a possibilidades e novidades. Também estava disposto, física e emocionalmente, não me mantive na minha zona de conforto. O terceiro elemento essencial foi estar preparado, também física e psicologicamente, mas também bem equipado. Esses três fatores – permeabilidade a mudanças, disposição e preparo – vêm se tornando cada vez mais comuns no meu dia a dia nessa etapa final da viagem.
Comemoro essas circunstâncias como a “mudanca de DNA” que eu buscava quando decidi realizar essa expedição. A mudança do estado de espírito urbano – comodista e preguiçoso – para o verdadeiro espírito aventureiro… Aberto, atento, disposto e preparado.
Guilherme Cavallari
www.kalapalo.com.br
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