Extremos
 
135º dia da Expedição Transpatagônia - El Chaltén
 
da redação, Texto e fotos: Guilherme Cavallari
11 de fevereiro de 2013 - 13:15
 
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Guilherme Cavallari próximo a El Chaltén.
 

A maior viagem é a viagem interior, a paisagem que muda diante dos nossos olhos, às vezes, dá boas fotos… Já escrevi isso antes aqui no blog, mais de uma vez. Nesse trecho que acabei de fazer, de Río Gallegos a El Chaltén, cruzando uma grande extensão de pampa – deserto, caatinga patagônica – temendo ou enfrentando a todo instante o famigerado vento, serviu como nada para comprovar para mim que a frase é verdadeira.

Viajar de bicicleta por toda a Patagônia, como estou fazendo, nem sempre é divertido. Muitas vezes trata-se simplesmente de sair de um ponto e chegar a outro, sem grandes mudanças de cenário entre eles. A quilometragem vai se acumulando como areia na corrente da bike – que eventualmente não resiste e quebra. Determinados trechos, particularmente desertos e áridos, ficam gravados na memória como cicatrizes e não como paisagens idílicas. Algumas subidas, retas sem fim, parecem ganhar personalidade e existirem unicamente para me torturar. O perigo maior é permitir que minutos virem horas, horas virem dias, e dias se misturem e se confundam como em um sonho sem sentido. É assim que o tempo voa. A solução é encontrar alegria também na rotina, na monotonia, no deserto.

Río Gallegos… Las Horquetas… Esperanza… El Cerrito… Río Santa Cruz… La Leona… El Chaltén… Somaram 465,12 quilômetros, exatamente. Cruzei apenas um pequeno grupo de três ciclistas argentinos, pedalando “para conhecer seu próprio país” pelo asfalto mais reto e enfadonho possível – a Ruta 3. Eu estava completamente fora do circuito cicloturístico internacional.

Desde que desenhei esse roteiro, ainda no Brasil, já temia esse trecho entre Río Gallegos e El Chaltén. Pensei inúmeras vezes em abortá-lo, trocá-lo por uma rota mais colorida, divertida e próxima à Cordilheira dos Andes. O problema seria repetir trechos já percorridos no caminho de ida, rumo sul. Mas o problema maior era o apego ao “divertido” e ao “colorido”. Dirigir uma viagem, ou a vida, nesse rumo é certeza de sofrimento.

Hoje fico feliz por ter mantido o plano inicial. Além da satisfação óbvia e superficial de vitória pessoal, de resistência física e psicológica, fico com a felicidade de haver encontrado alegria na monotonia, na rotina de pedalar, na paisagem impessoal do deserto. Lutei muito, mentalmente, para não percorrer esse trecho de forma automática, sem atenção. Quem medita sabe o que estou dizendo…

Usei meu tempo em cima da bike para meditar, minhas horas dentro da barraca para relaxar, as noites de sono para descansar, tudo sem grandes expectativas. A satisfação foi cumulativa. Só quando deixamos de buscar a felicidade é que ela pode aparecer, naturalmente. Muitas vezes um tufo de mato seco na beira da estrada, iluminado pelo sol de forma a parecer uma pequena e perfeita labareda de fogo, era suficiente para me encher de alegria. Lavar o rosto na água gelada de um rio ou riacho era prazer infinito. Sentir o vento, meu grande inimigo, secar o suor que escorria pelo meu rosto e me fazia arder os olhos, era uma benção. Saber que eu podia parar e acampar em qualquer lugar, que tinha sempre tudo o que necessitava para meu conforto básico junto comigo, me trazia paz e tranquilidade únicas.

Nesses seis dias de pedal, que computaram mais de 77 quilômetros diários em média, meus maiores inimigos foram o vento, o sol, a secura do deserto e a dor na bunda. Meus ísquios tinham hora marcada para começar a doer muito – duas horas de pedal. Depois disso era só agonia. Eu tinha que levantar a bunda do selim por dois segundos a cada dois minutos – eu cronometrei.

Passei a usar a técnica que se utiliza em meditação, quando nos sentamos imóveis no chão às vezes por uma hora ou mais. É preciso olhar a dor sem identificação pessoal. A dor não sou eu. Ela existe, mas não sou eu. Buscamos outro foco de atenção, em geral a respiração. Sem atenção, a ordem premente da mente, viciada em prazer, pedindo para interromper o desconforto perde força. A dor persiste, mas isolada e esquecida em um canto escuro. Mas tudo isso dura segundos, imediatamente a dor volta a gritar por atenção e o processo recomeça do zero… O segredo vital está em persistir e não perder o foco, a atenção na respiração.

Acampei todas as noites nesse trecho e, quando cheguei a El Chaltén, resisti à tentação de buscar o conforto desnecessário, quase luxuoso, de um hostel ou hotel, de uma cama limpa, banheiro privativo, café da manhã servido na mesa e lavanderia. Procurei um camping. Encontrei um espaço para minha bike e barraca quase à margem do Rio de las Vueltas, entre duas árvores e os restos de uma cerca de tábuas, com grama seca servindo de colchão. Meu feito, de haver cruzado pampa e mais pampa, não merecia recompensa externa, muito menos auto-paparicação. Bastava o reconhecimento pessoal de haver me esforçado em manter um bom nível de atenção e consciência, com equilíbrio emocional e alegria, por algum tempo, em uma situação desconfortável.

Também resisti à tentação de entrar no primeiro café, padaria ou supermercado que vi e comer tudo o que pintasse na minha frente. Já me arrependi e me envergonhei disso várias vezes, além de assustar outros fregueses e atendentes. Guardei apetite para um jantar simples, quase frugal, de raviólis de cordeiro com molho de tomate com dois copos de cerveja escura artesanal… Mas, antes de ir para a barraca, matei uma enorme barra de chocolate.


Ainda não atingi a iluminação.

 



Guilherme Cavallari
www.kalapalo.com.br