A Ilha Navarino, na Terra do Fogo chilena, é a porção de terra permanentemente habitada mais ao sul do planeta. Sua capital, Puerto Williams, é a cidade mais austral do mundo. O Circuito DENTES DE NAVARINO – que mapeei e publiquei, em 2009, no Guia de Trilhas Trekking (Vol. 2) e que tenho a honra de ter apresentado ao público brasileiro – foi por muito tempo “o roteiro de trekking mais austral do mundo”… Mas perdeu o posto para o roteiro LAGO WINDHOND, que percorri agora, de 28 de dezembro de 2012 a 06 de janeiro de 2013, com minha esposa e companheira de vida e trekking, Adriana Braga… Mas, nessa pequena expedição que fizemos dentro da EXPEDIÇÃO TRANSPATAGÔNIA, conseguimos identificar e estabelecer um roteiro ainda mais ao sul, o verdadeiro “trekking mais autral do mudo”… BAÍA WINDHOND.
Cruzamos de Ushuaia (Argentina) para Puerto Williams (Chile) dia 27 de dezembro, depois de dois dias de comilança, amor e descanso (versão família de drogas, sexo e rock n’ roll). Nesse tempo, tivemos uma ceia de Natal besuntada de muita maionese… Patas de centolla (caranguejo gigante) com maionese, tomates recheados de maionese, salpicão de frango e maionese, rocambole de maionese, salada de batatas com maionese… E o que não tinha maionese tinha molho rose, que é uma espécie de maionese enrubescida. À meia-noite todos os clientes do restaurante ganharam um copo com espumante para um brinde. Mas não estava de todo ruim, de modo algum, passei o Natal com minha amada na Terra do Fogo, o ponto no sinal de exclamação que é a Patagônia… Sinceramente, não posso pedir nada melhor para o Natal ou qualquer outra data.
Em Puerto Williams nos preparamos calmamente, em dois dias, para essa pequena expedição de trekking de 118 quilômetros em dez dias, com três dias de descanso programado e muito bem aproveitados a intervalos estudados… Visitamos o sensacional Museu Martin Gusinde, o famoso Yacht Club Micalvi e meu amigo Luis Tiznado na Shila – a loja de aventura mais austral do mundo. Por aqui tudo é adjetivado e superlativo.
Nossa caminhada começou da praça central e seguiu por 20,5 quilômetros até as ruínas de um refúgio chamado Beaucheff, a caminho das margens do Lago Windhond. Existem dois caminhos até o Refúgio Charles, no Lago Windhond… Percorrendo o primeiro dia do Circuito DENTES DE NAVARINO e metade do segundo dia, para baixar pelo Cerro Betinelli até o Rio Windhond a dez quilômetros do refúgio… Ou seguindo o Vale do Rio Ukika até o Paso Alenghi e depois descendo o Vale do Rio Windhond, por um roteiro mais reto, mais curto, mais plano e muito, muito mais molhado! Optamos pelo segundo caminho, que era novidade para nós dois.
Confesso que subestimei o roteiro. Não sei bem por que, mas achava que seria moleza, um passeiozinho por uma trilha bem marcada utilizada por pescadores barrigudos de final de semana… Esqueci que estava na Terra do Fogo e que aqui tudo é épico. Pescadores barrigudos aqui têm pernas mais musculosas que ciclistas de velódromo.
A trilha que tomamos cruza bosques densos e repletos de enormes árvores caídas, que devem ser escaladas ou obrigam que a gente rasteje como uma minhoca por baixo delas… Entre um bosque e outro sempre existe um turbal, que é um tipo de vegetação esponjosa composta por 95% de água, que para caminhantes equivale a caminhar sobre milhares de colchões de espuma embebidos em água a ponto de jorrar a cada pisada… Aqui e ali sempre há uma represa de castores, que bloqueia o caminho e nos obriga a dar voltas gigantescas saltando de galho em galho meio roídos e meio submersos… Ou seja, muito raramente o caminho é fácil e desobstruído. Muito raramente é monótono e repetitivo.
O segundo dia nos levou por meio de bosques densos e sem nenhuma indicação de trilha, mas isso não é culpa do roteiro… Na minha arrogância em pensar que o roteiro era moleza não estudei a descrição disponível na cidade e simplesmente entendi a “lógica do roteiro”, simplesmente segui o Rio Windhond de sua nascente à foz, mas fiz isso pelo lado errado! Dos 13 quiômetros que caminhamos no segundo dia metade foi rasgando mato no peito e ouvindo a Adriana reclamar na minha orelha, com toda a razão (o que torna tudo ainda pior). Tudo debaixo de forte chuva, que caiu incessante por toda a noite. O Rio Windhond estava desfigurado e impossível de cruzar. Tivemos que montar acampamento e esperar a baixa das águas. Chegamos ao Refugio Charles, depois de quase 40 quilômetros de trekking ao meio dia o terceiro dia de caminhada, sendo que eu havia planejado fazer o trecho em apenas um dia!
Descansamos o resto do dia no refúgio e, quase à noite, recebemos a visita inesperada de um pescador francês de dois metros de altura e grande como uma árvore, pálido de cansaço, frio e fome. Alexis Gante é apaixonado por pesca com mosca (fly fishing, em inglês), pesca desde os cinco anos de idade e quando tira um peixe da água pede desculpas pelo incômodo, faz uma foto, chama o peixe de “bonito”, “muito bonito” ou “lindo” e o devolve à água delicadamente, como um pai banhando um filho recém-nascido. Isso tudo eu testemunhei pessoalmente. O dia seguinte, de descanso, era 31 de dezembro e Alexis trouxe do rio uma truta arco-íris de aproximadamente um quilo para a ceia. Adriana fez arroz com nozes e passas. Eu armei um belo fogo no tambor com chaminé que servia de fogão a lenha. Não estaria exagerando se dissesse que foi o melhor peixe que já comi na vida… Só teria sido melhor se eu mesmo o tivesse pescado, mas nem com todas as dicas e paciência do Alexis eu consegui fazer uma truta fueguina morder minha isca. Mas aprendi bastante sobre fly fishing e treinei exaustivamente, até quase ter câimbras no braço, um lançamento perfeito.
No quinto dia dessa pequena expedição, Adriana e eu fomos margeando o Lago Windhond por toda sua extensão leste, até chegar a uma pequena baía, justamente o ponto em que a margem do lago vira para oeste e fica paralelo ao oceano da Baía Windhond, ao sul. Nesse ponto procuramos e encontramos uma abertura nos bosques que nos levou, passando entre duas lagoas, até um rio. A idéia era cruzar esse rio e seguir em linha reta, caminhando ao lado de outras lagoas, até a praia. Mas o rio estava muito cheio, arriscado demais para cruzar pela água… E não havia outra opção de seguir rumo sul.
A solução que tirei da manga era simples é lógica – seguir o curso do rio, que corria no sentido sudeste, até o mar. Tudo sem trilha, desde o Refugio Charles. A mata ciliar, composta de densos bosques fueguinos, úmidos e espinhosos, logo se mostrou desconfortável demais. Adriana ficou nervosa. Ela tinha outra expectativa do percurso porque havia lido relatos no surrado e enrugado pela chuva no livro de visitantes do refúgio, mas depois ela identificou seu nervosismo como medo… Estávamos isolados demais, cercados por ambiente selvagem demais, desconectados e sem comunicação alguma com o resto do mundo.
Foram mais de dez horas e mais de 23 quilômetros praticamente ininterruptos de trekking selvagem, sem trilha, até chegar ao fim do vale do tal rio que seguimos, a menos de dois quilômetros do furioso mar austral, encontro de Atlântico e Pacífico. Montamos acampamento debaixo de uma árvore meio seca, meio morta, ao lado de uma curva de rio, semi-protegidos do vento por uma colina a oeste e uma crista de morro mais distante a leste. Montamos acampamentos cansados e um pouco irritados, sem perceber a extrema beleza do lugar. Havíamos escolhido instintivamente talvez o melhor lugar para acampar num raio de vinte quilômetros… Uma beleza que descongelaria nossos corações na manhã seguinte.
Quando o dia seguinte amanheceu ensolarado, percebemos onde estávamos. Um rio cristalino serpenteando ao alcance de nossas mãos e bocas, relva macia e perfumada debaixo de nossa barraca, pássaros patagônicos em euforia de verão, bosques retorcidos por vento e de aparência caótica que urravam vida aos quatro cantos e o mar do sul, temido e cobiçado, revelando no horizonte ilhas do arquipélago do Cabo Horn – Grévy e Wollaston – despudoradamente nítidas mesmo a quase 40 quilômetros de distância.
Passamos metade do dia caminhando pela praia, de pedras e areia escura, escolhendo conchas, encontrando ossos de baleias, identificando os vários pássaros, encantados com o mesmo isolamento que assustou no dia anterior. O ser humano mais próximo era um francês alucinado por peixes a mais de vinte quilômetros longe ao norte, ou os marinheiros chilenos no farol do Cabo Horn no além-mar ao sul.
No sétimo dia de expedição, voltamos ao Refugio Charles. O percurso que nos tomou mais de dez horas na ida foi transposto em sete horas e meia, com passos certos e ânimos restaurados. Descansamos mais um dia lá e passei horas pescando, ou melhor, treinando o lançamento de mosca, porque nenhum peixe sequer mordiscou minha isca novamente.
Programamos a volta em dois dias, mais experientes do roteiro e menos arrogantes (no meu caso). Acertamos a trilha, que era muito mais rápida e fácil na margem leste do Rio Windhond. Cruzamos o rio no lugar certo, sem pisar na água, saltando entre galhos e pedras.
A paisagem estava ainda mais bonita, mas limpa depois da chuva, a vegetação brilhante e reluzente. Próximo do refúgio em ruínas Beaucheff o tempo virou e começou a chover. Não pararia até nossa chegada a Puerto Williams, no dia seguinte. Encharcados, com um pouco de frio, decidimos montar acampamento. Dormimos sobre solo empapado de água com o termômetro marcando 4° C e a umidade doendo nos ossos.
Restavam ainda mais de 20 quilômetros até a cidade, que havíamos percorrido no primeiro dia em longas dez horas de trekking que haviam me deixado bastante cansado. O frio no Paso Alenghi, a chuva incessante que às vezes trazia pelotas de gelo, o vento que queimava mãos e rostos, as botas encharcadas pelos inúmeros turbais, mas principalmente o desejo de um banho quente depois de dez dias, uma refeição de verdade e uma cama, nos fizeram acelerar o passo e ignorar pequenos obstáculos.
Em determinados pontos a trilha virou riacho com um palmo de água gelada corrente. Nossas roupas de chuva, em tecido inteligente impermeável e respirável, não aguentaram o volume de água e abriram o bico. Estávamos ensopados da cintura para baixo nos braços. Se parássemos por mais de dois minutos sentíamos a hipotermia nos agarrando e apertando. Eu não tinha mais controle motor dos meus dedos, não conseguir apertar botões no GPS, fotografar ou abrir uma embalagem de barra de cereais. Seguimos caminhando e incentivando um ao outro, cuidando um do outro. Fizemos os mais de vinte quilômetros em pouco mais de cinco horas! Metade do tempo da ida!
Impossível não sentir orgulho de uma experiência dessas. Não o orgulho tolo do desempenho físico, que é passageiro e efêmero, que passa com a idade ou se vai com a saúde. Sentimos orgulho dos nossos espíritos leves, de nossas mentes calmas e, principalmente, do nosso controle emocional numa situação de desconforto limite. Não fizemos o caminho debaixo de chuva e frio, sem parar nem para fazer xixi, de forma mecânica e automática, simplesmente para chegar logo “em casa”. Caminhamos com consciência de nossos limites, do lugar onde estávamos, da presença um do outro, da grandiosidade da natureza.
A Adri me lembrou do que dizem nossos professores de Dharma, nossos professores de budismo… Que as adversidades na meditação e na vida são uma bênção, pois elas nos possibilitam uma atenção maior que, se alimentada e cultivada, pode levar à consciência plena, alerta, serena, de uma mente iluminada. Está aqui então o relato, muito resumido, do verdadeiro “trekking mais austral do mundo”… BAÍA WINDHOND, desde Puerto Williams. Mas já identifiquei e vou programar uma extensão ainda mais ao sul… PUNTA HARDY. Quem quiser me acompanhar nesse projeto, manifeste-se agora ou cale-se para sempre!
A EXPEDIÇÃO TRANSPATAGÔNIA continua, agora rumo norte, de volta a Bariloche… Próxima etapa será uma travessia inédita em bicicleta (no lombo de cavalos por cinco dias) de Yendegaia até o Lago Fagnano, no Chile… Mas isso é assunto para outro post…
Guilherme Cavallari e Adriana Braga
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