Vigésimo quarto dia de viagem, 1.030 km percorridos, nenhum problema grave, nenhum mal-estar, dois dias de chuva apenas, dias quentes, noites frias, às vezes o vento morde... Realmente não tenho do que reclamar. Mas, de verdade, pedalando pela Patagônia quem pode reclamar de qualquer coisa?
Vamos ao resumo dos últimos dias...
COYHAIQUE - LAGUNA CHIGAY (19/10/2012)
Desde meu último post, muita coisa aconteceu e muita estrada passou por baixo das rodas da minha bicicleta. Saindo de Coyhaique, seis dias atrás, parei na sede da NOLS (National Outdoor Leadership School), a apenas dez quilômetros da cidade. Essa instituição ensina técnicas de esportes de contato com a natureza, ética e liderança desde 1965 e está presente em dezenas de países. Eu já havia visitado a sede em 2009, quando estava mapeando o Guia de Trilhas Carretera Austral, que lancei em 2010.
Exatamente como aconteceu em 2009, cheguei na NOLS e encontrei todo o pessoal extremamente ocupado, correndo de um lado e para outro, eletricidade no ar. Expliquei que passei para uma visita e queria algumas informações. Fui informado que todos estavam atarefadíssimos e que, provavelmente, não poderiam me dar muita atenção e, igual aconteceu na minha primeira visita, não faltou gente ou tempo para me ajudar. Eles gastaram cerca de duas horas comigo... Gentileza que não tem preço.
Entrevistei em vídeo um instrutor brasileiro, Caio Romano, que me mostrou as instalações; conversei brevemente com uma coordenadora de cursos, Rachel; e quando estava me preparando para partir, depois de alugar o pessoal por uma hora e meia, conheci Maggie O'Brien, também coordenadora e que conhecia bem a região da Reserva Lago Jeinimeni, Valle Chacabuco e Reserva Tamango (link para fotos... Roteiro mapeado e publicado no meu livro Guia de Trilhas Trekking Vol. 2) e que se dispôs a dividir informações a respeito da trilha, do percurso, clima e tudo mais... No final, ela simplesmente copiou todo o percurso, em um pendrive que forneci, traçado no Google Earth, de Chile Chico a Cochrane, exatamente por onde um grupo de alunos da NOLS estava cruzando naquele momento... Esse roteiro é o grande desafio de trekking dessa minha viagem, por ser longo, inédito, selvagem, desafiante, ainda em estudo e construção pelo pessoal da Conservación Patagonia, responsável pelo Parque Pumalín e pelo projeto do Parque Patagonia, que pretende englobar exatamente a área que quero cruzar em trekking, solo, começando depois de amanhã... Para mim, foi como ganhar sozinho na Mega-Sena.
Muita subida, em asfalto de ótima qualidade, algum vento contra e gelo velho do inverno passado no acostamento, acompanharam o pedal de Coyhaique à Laguna Chigay - um camping oficial da CONAF (Corporación Nacional Forestal), órgão que administra os parques e reservas nacionais chilenas. Nenhum guarda-parque presente, entramos na área de acampamento, Becky Church e eu, montei minha barraca e ela seu bivaque para passar a noite. Foram "apenas" 60 quilômetros de pedal no dia.
LAGUNA CHIGAY - PUERTO INGENIERO IBAÑEZ (20/10/2012)
Dia de subir a serra até o sensacional mirante do Vale do Rio Ibañez e do Cerro Castillo. A foto dos caracóis que descem até a Villa Cerro Castillo, pela Carretera Austral, é material obrigatório de infinitos folhetos e cartões postais. Dia também de me despedir da Becky, companheira de pedal desde Chaitén. Ela seguiria pela Ruta 7 até Villa O'Higgins e eu daria a volta ao Lago General Carrera/Lago Buenos Aires, para chegar a Chile Chico vindo da Argentina. Boa viagem Becky, se cuide! A gente se vê por aí... Caminhos que se cruzam numa estrada tão especial não merecem que se descruzem.
Na bifurcação para Puerto Ingeniero Ibañez disse adeus a Becky e baixei a serra até às margens do Lago General Carrera, para acampar no quintal de um restaurante humilde com banho frio (leia-se, gelado!) e a cozinha à minha disposição para o tradicional prato de Miojo e sopa instantânea.
PUERTO INGENIERO IBAÑEZ - acampamento selvagem (21/10/2012)
O policial carabinero chileno do posto internacional do Paso Pallavicini, meu caminho para a Argentina, fez uma baita confusão e me disse que eu precisava voltar para Coyhaique para pegar uma autorização especial para cruzar a fronteira, um salvo conducto. Gelei. Só de imaginar a viagem de volta meu coração pulou algumas batidas. No final era só confusão da cabeça dele. Meus documentos estava em ordem. Mas ele ainda me presenteou com mais uma informação falsa... "Es todo bajada desde aquí hasta Perito Moreno".
Os primeiros 20 quilômetros foram de subidas sem fim, impiedosas, íngremes, por sorte parcialmente pavimentadas com pequenos blocos de concreto em mosaico. Bufei, suei, grunhi, trinquei os dentes, fiz saltar as veias da testa e empurrei poucas vezes o comboio bike e bike trailer morro acima. Cheguei ao posto de fronteira argentino com a baba seca nos cantos da boca e olhar de bicho empalhado. Ainda bem que os policiais argentinos se apaixonaram pela minha bike, fizeram poses e fotos ao lado dela, não prestaram muita atenção em mim e carimbaram displicentes a entrada no meu passaporte, mesmo com minha aparência demente e imunda.
Novamente sou informado que o caminho é todo e descida e, novamente, acredito. Ingenuidade. Minha intenção era pedalar ao menos 55 quilômetros o dia todo, então me restavam 30 e poucos. Pouco menos de 10 quilômetros depois de passar pelo posto de fronteira, percebi que havia cometido um erro grave, potencialmente fatal para minha programação e até para minha saúde... Não me informei com relação à disponibilidade de água no trajeto, de 90 quilômetros da fronteira até Perito Moreno e simplesmente não havia água! Em lugar nenhum! Voltar estava fora de questão, preferia morrer de sede ou pedalar até virar uva-passa. Decido seguir adiante e acampar no mato à beira da estrada e pedir água, que fosse do radiador, do primeiro carro que passasse. Mas já era perto das 18:00 e eu não havia visto um carro sequer desde às 10:00... Foi quando um santo me salvou, literalmente.
Quem já viajou pela Patagônia, especialmente na Argentina, notou com certeza bandeiras vermelhas tremulando em altares de todos os tamanhos na beira das estradas. Homenagens ao Gauchito Gil, um santo extra-oficial argentino da região de Corrientes. Seus inúmeros altares são repletos de oferendas, mais típicas de um gaucho que de um santo... Cigarros, aguardente, perfume, flores vermelhas de plástico, moedas, velas e... Água! Litros e litros de água de origem duvidosa em garrafas PET. Esperei alguns minutos na esperança que alguém passasse e resolvesse meu dilema... Pedir emprestado ao santo ou não. Na verdade, minha dúvida era se o líquido transparente e inodoro nas garrafas era apenas água ou "água batizada" com sei lá o que.
Terminei por tomar emprestado 4 litros de água do Gauchito Gil, com todo o respeito e humildade, crente de que o santo não se importaria e que minhas intenções eram as mais puras possíveis. Pura necessidade. Pouco depois cruzei caminho com um pequeno grupo de gauchos de verdade, de boinas, lenços vermelhos no pescoço, bigodes, costeletas, forte cheiro de tabaco e facas na cintura. Todos em um carro vermelho caindo aos pedaços e com um adesivo gigante no vidro traseiro... Uma imagem do Gauchito Gil.
Fiquei com medo da reação deles se eu dissesse o que acabara de fazer e omiti o ato, mas fui informado que havia um córrego a sete quilômetros de distância (que na verdade eram onze quilômetros). Pedalei rápido, animado com a perspectiva de água e um local de acampamento para a noite. Terminei por não beber a água do santo, mas fica minha eterna gratidão.
Acampamento selvagem - PERITO MORENO (22/10/2012)
Vento a favor razoavelmente forte, semi-árido por todos os lados, estrada de pedras soltas e areia muito complicada de pedalar. Minha grande, talvez única, preocupação o dia todo foi escolher a pista mais limpa do caminho e cuidar para não derrapar e me estatelar no chão. A bicicleta ia de 30 km/h a 9 km/h em segundos, bastava pegar um trecho de areia fofa. Atenção plena na roda da frente da bike, beirando a obsessão psicótica. O sol fazia os tatus terem pressa de ir para a sombra.
Perito Moreno é uma cidade de beira de estrada, da Ruta 40, bem arrumada e limpa, mas que vive das sobras que os viajantes deixam. Sem muita personalidade, os hotéis e restaurantes operam com preços iguais aos de Bariloche e, como aconteceu comigo, erram no troco ou triplicam o preço indicado no cardápio na hora de cobrar. A salvação foi o Mini Camping Raúl, no centro da cidade, com um tanque de metal com porta, janela e uma lareira para abrigar os turistas. O dono, Raúl, é a figura mais rara da região sem dúvida, poeta, escritor, repentista, artista, construtor, fumante compulsivo e, segundo ele, primo do atual presidente de Israel, mesmo sem ser judeu ou descendente de judeus.
PERITO MORENO, ARGENTINA - CHILE CHICO, CHILE (23/10/2012)
Vento contra por 72 quilômetros, constante, forte, desses de dar dor de ouvido e arrancar etiquetas de roupas (aconteceu comigo, juro!). A estrada tinha excelente asfalto e subidas suaves, que eu sofria para galgar a míseros 10 km/h, praticamente deitado sobre o guidão da bike. A paisagem era espetacular, com o Lago Buenos Aires/General Carrera ao lado, repleto de ondas como carneirinhos brancos, as montanhas chilenas ainda nevadas ao fundo, os pampas com seus arbustos ressequidos mas pintados de tons pastéis em ocre, amarelo, verde sujo, roxo e mais uma infinidade de cores sutis e suaves. Fiz um grande esforço físico, claro, mas o maior esforço foi mental, para suportar com alegria e bom-humor o cansaço, a dor muscular, o desespero de progredir tão lentamente e com tanto sacrifício. Acho que logrei algum sucesso porque cheguei em Chile Chico com sorriso no rosto... Meio plastificado e imóvel, é verdade, talvez resultado de quase um tubo inteiro de protetor labial que passei.
REFLEXÕES E MEDITAÇÕES DO PERÍODO...
Lutando bravamente contra o vento impiedoso e a exaustão de cinco dias consecutivos de pedal, quatro noites de acampamento, nenhum banho, alta quilometragem, serras e meu quinquagésimo aniversário que se aproxima rapidamente, parei pela enésima vez no acostamento da estrada para tomar fôlego e esperar, um ou dois minutos apenas, que minhas pernas e bunda parassem de doer e queimar o suficiente para voltar a pedalar. Olhava fixo o acostamento diante dos meus olhos, ombros meio curvados, de costas para o vento. De repente um passarinho vem voando em minha direção, pequeno e vestido de preto como eu. Ele luta também bravamente contra o vento, às vezes bate as asas parado no ar. Ele pousa a menos de três metros de mim, senta-se no chão e se encolhe também, obviamente esperando que suas asinhas parassem de doer e arder para que ele pudesse, rapidamente, seguir seu caminho. Senti grande identificação com o passarinho, uma enorme conexão, talvez compaixão. Algo difícil de explicar mas nem tão duro de entender. Eu e ele lutávamos, cada um ao seu modo, contra as mesmas dificuldades e sentíamos as mesmas dores. Concluí que é preciso expor-se aos elementos, ao vento, à chuva, ao frio, ao sol, para realmente encontrarmos nosso lugar correto junto aos demais seres vivos na natureza...
Passa um caminhão ao meu lado, um pouco próximo demais de mim, e seu vento faz minha bicicleta chacoalhar toda, causando grande desequilíbrio. Alguns metros adiante vejo um grande tatu morto no acostamento ao meu lado, esmagado com certeza por algum veículo da estrada. Seu sangue ainda fresco. Sinto muita tristeza e novamente identificação pessoal. Mais compaixão, acho. Podia facilmente ser eu morto no acostamento ao invés dele, somos os dois os "elos mais frágeis" da estrada, expostos e vulneráveis a acidentes e morte. Concluo que viver demanda uma dose constante de apreciação e pressa. Apreciação pelo momento, pela imensa oportunidade que é estar vivo. Pressa porque nosso tempo é limitado e devemos aproveitá-lo da forma mais harmoniosa e consciente possível...
Hoje descanso. Amanhã me preparo para o grande desafio em trekking da viagem... A travessia de Chile Chico a Cochrane, sozinho.
Guilherme Cavallari
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