Mesmo sendo redondo, o mundo tem esquinas...
Não consigo imaginar metáfora melhor quando penso no Cabo Froward, na Patagônia chilena – uma importante esquina do mundo. Quem olha um mapa-múndi entende logo a comparação. O continente americano se estreita ao sul em forma de cunha, ou um rabicho, com dois gigantescos oceanos de cada lado. Atlântico a leste, Pacífico a oeste. Próximo de sua ponta final, onde todas as águas do globo se encontram e se misturam, aparece um corredor cortando a massa continental já esbelta, uma passagem nítida e tortuosa ligando os dois grandes mares. Esse é o famoso Estreito de Magalhães. Ao sul desse braço de água só existem ilhas, inclusive a renomada Ilha Grande da Terra do Fogo. No meio desse corredor aquático há uma curva de noventa graus – exatamente uma esquina! Esse ponto foi batizado de Cabo Froward.
Em 1913, os padres salesianos missionários da região ergueram uma monumental cruz de madeira, la cruz de los mares, destruída diversas vezes pelo famoso mal tempo da região, com ventos de furacão. Em 1987, o governo chileno ergueu uma gigantesca estrutura metálica, também em fora de cruz, para celebrar a visita do Papa João Paulo II ao país. Essa cruz é o ponto final de um roteiro de trekking ainda desconhecido, mas com enorme potencial de se tornar mais um “clássico patagônico”.
A primeira vez que ouvi falar desse roteiro de trekking selvagem, às margens do Estreito de Magalhães, foi talvez na minha segunda visita a Torres del Paine, em 2008, quando fiz o mapeamento desse circuito para o Guia de Trilhas Trekking (Vol. 1). Junto com o trekking Dentes de Navarino, que mapeei em 2009 e publiquei no Guia de Trilhas Trekking (Vol. 2), o trekking conhecido como Cabo Froward era classificado como “selvagem, tecnicamente difícil, isolado, deserto, sujeito a muita instabilidade climática e de extrema beleza natural”. Esse roteiro estava na minha lista há muitos anos!
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Punta Arenas, capital regional dessa provincia chilena. |
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PUNTA ARENAS
A cidade mais próxima e ponto de partida para a caminhada é Punta Arenas, capital regional dessa província chilena. A população ultrapassa um pouco os 150.000 habitantes (2008) e a cidade já foi um importantíssimo porto, até a construção do Canal do Panamá, em 1914, quando todo o fluxo de navios passou a usar esse prático atalho na América Central para ir do Atlântico ao Pacífico e ao contrário. Da noite para o dia toda a pujança e prosperidade de Punta Arenas se esvaiu e a região caiu no ostracismo.
Do ponto de vista turístico, essa estagnação teve resultados positivos... Edifícios antigos foram naturalmente preservados, a cidade cresceu de forma lenta e regular, a natureza da região foi preservada. Imensos palacetes dos “barões da lã e do carvão” – os dois principais produtos de exportação desse canto da Patagônia no começo do século XX – hoje são museus, bares, restaurantes, clubes e hotéis. Um aeroporto internacional e uma zona franca conseguem atrair turistas do mundo todo, especialmente porque Punta Arenas é a porta de entrada para o Parque Nacional de Torres del Paine, mais próximo da minúscula cidade vizinha de Puerto Natales, a cerca de 250 km de distância.
Minha intenção, cumprida, era o mapeamento desse roteiro de 90 km de extensão para o Guia de Trilhas Trekking (Vol. 3), que pretendo lançar no fim de 2012. Como sempre, minha companheira de trekking foi minha companheira de vida (nem consigo enxergar muita diferença entre uma coisa e outra), Adriana Braga. Chegamos em Punta Arenas, vindos de São Paulo com escala em Santiago, no dia 13 de fevereiro. Passamos o dia 14 percorrendo lojas de equipamento, a zona franca, supermercados e bazares da cidade para completar nossa lista de produto necessários para sete dias de trekking. O roteiro é originalmente indicado para ser feito em cinco dias, mas decidimos investir mais dois dias para explorar um pouco mais o percurso.
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O belo Faro San Isidro que marca o início da caminhada. |
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1º DIA DE TREKKING
No dia 15 começamos a caminhada. Seguíamos um rudimentar mapa de trekking de uma única folha, em escala 1:50.000 com curvas de nível e pouco texto informativo. Obviamente não contratamos nem procuramos guias locais, afinal de contas não se tratava de uma excursão de alto risco, apenas um roteiro de trekking selvagem.
Depois de caminhar mais de dez quilômetros por uma estrada de terra, conseguimos uma carona com um médico local, um ginecologista que depois acabou ficando nosso amigo, Dr. Walter Neracher. Ele nos levou até o fim da trilha de 4x4 a apenas quatro quilômetros do Faro San Isidro (www.hosteriafarosanisidro.cl) um farol inaugurado em 1904 e construído em belíssimo estilo inglês, ainda em uso, restaurado e transformado em museu em 2004. Eu sempre sonhei conhecer esse farol e a pousada construída nas imediações, acessível apenas de barco ao trekking, como chegamos até lá. Para comemorar o feito, tiramos as botas os pés cansados e pedimos um bule grande de chá. Sem nenhum pudor, abrimos nossas pesadas mochilas – a minha com 28 kg e a da Adriana com 16 kg – e tiramos sanduíches e pães doces que trouxemos do café da manhã do hotel. Nessa noite acampamos a menos de dois quilômetros do Faro San Isidro em uma confortável clareira no começo da Bahía del Águila.
Um grande osso de baleia, uma vértebra da coluna dorsal, nos servia de banquinho ou apoio para nosso fogareiro no acampamento. Essa baia foi estação de tratamento de uma indústria baleeira até os anos 20, local onde os animais eram arrastados até a praia, desossados e processados para comercialização. Hoje restam ruínas de paredes, um grande tanque de metal provavelmente parte de uma caldeira a vapor, alguns suportes de metal fixos ás rochas para ancoragem de barcos ou, mais possivelmente, de cetáceos. Vale a pena explorar o interior da baia, deve haver muitos resquícios da estação baleeira. Não é difícil imaginar, com um calafrio de horror, as águas da calma baia tingidas com o sangue das baleias.
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Atravessando o Rio Nodales. |
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2º DIA DE TREKKING
O segundo dia de trekking nos levou até as margens do Rio de Gennes, ou Rio San Nicholas, que devemos atravessar caminhando por suas águas geladas para seguir adiante no roteiro. O caminho foi difícil, com um longo trecho de rochas costeiras, algumas escorregadias de algas, outras irregulares, outras enormes que nos obrigavam a fazer escalaminhadas. Havia também alguns trechos de mata, quando a trilha pela praia se tornava impossível, especialmente na maré alta, mas esses trechos estavam razoavelmente sinalizados e bem pisados. As marcações do trajeto eram as esdrúxulas e ridículas, embora eficientes, como um jaqueta impermeável em farrapos pendurada em uma árvore, um pedaço de bóia de pescaria, uma bota velha de caminhada espetada em um pau. Uma marcação em particular, um gorro na beira do Rio Nodales, me pareceu uma óbvia alusão ao filme "Na Natureza Selvagem", para o qual inclusive escrevi uma resenha.
É essencial o uso de uma tábua de marés para esse trekking. Na maré cheia diversas praias desaparecem e tornam o progresso impossível, porque a mata nativa da costa é serrada e densa, quase sempre sem trilhas.
A maré estava cheia no Rio de Gennes, tornando a travessia imediata impossível ou muito arriscada, então decidimos acampar na margem norte mesmo, deixando a travessia para o dia seguinte, no meio da manhã, quando a maré estaria baixa. Já à noite ouvimos vozes e percebemos que alguém montava uma barraca ao nosso lado. Na manhã seguinte, de chuva fina e vento gelado, conhecemos dois israelenses e um polonês que viajava de bicicleta desde Belém, no Pará, além de uma família de chilenos – pai, filho adolescente e amigo da mesma idade. É muito raro encontrar tanta gente assim nessa trilha, em uma semana além desses aventureiros encontramos apenas um norte-americano sozinho, um casal de belgas e um casal de alemães, esses já no último dia de trekking.
As águas do Rio de Gennes chegavam à altura dos meus joelhos e na metade da coxa da Adriana. Gelada como se estivesse saído da geladeira, turva e avermelhada pelo excesso de folhas. Começamos a caminhar depois do grupo de chilenos e antes dos israelenses e do polaco, que nos alcançaram e ultrapassaram no meio do trajeto do dia.
Nosso próximo acampamento foi às margens do Rio Nodales, que também deve ser cruzado pela água, mas sem grandes dificuldades porque no verão suas águas nunca são muito altas, chegando no máximo à altura dos meus joelhos ou um pouquinho mais alto. Já no inverno, época de chuvas, é praticamente impossível realizar esse trekking, os rios passam de dois metros de profundidade.
Esse acampamento é conhecido por ser visitado por raposas grandes, que roubam comida de dentro de barracas e mochilas, rasgando os tecidos para roubar alimentos. Ciente disso eu amarrei nossas mochilas, com todos os alimentos dentro, a mais de 1,5 metro do chão. Levei um pouco de corda para isso e para ajudar em alguma eventual necessidade no percurso, como travessias de rios e afins. Mal chegamos, perto das 16h, e o trio de israelenses e o polonês saíram para chegar até a Cruz de los Mares e voltar. Eles pretendiam fazer todo o percurso em apenas quatro dias.
Mal informados, eles achavam que o caminho de 10 quilômetros só de ida, 20 quilômetros ida e volta, poderia ser feito em talvez cinco horas no total. Deixaram as barracas montadas com tudo dentro e partiram com a roupa do corpo. Adriana e eu deixamos essa correria toda para o dia seguinte, sem pressa e sem estresse. O dia estava incrivelmente ensolarado e limpo e os aventureiros inquietos não queriam perder a oportunidade. A família de chilenos não estava por perto, significando que devem ter acampado na margem oposta do Rio Nodales ou além.
No meio da noite Adriana acordou assustada, sem dizer nada. Eu acordei com ela e também fiquei calado. Na manhã seguinte ela disse ter ouvido passos à nossa volta e alguém mexendo na barraca. Levantei para preparar o café da manhã e encontro as barracas dos israelenses e do polaco rasgadas com rastros de comida para todos os lados. Imediatamente eles chegam, com caras de zumbi. Chegaram até a cruz e não conseguiram voltar para o acampamento porque já era noite e a maré estava muito alta. Eles tiveram a sorte de encontrar os chilenos e passaram a noite empilhados uns sobre os outros, espremidos em uma barraca para uma pessoa e com apenas um saco de dormir, emprestado, para os três. Não dormiram uma piscadela a noite toda. Mas também não morreram de frio, já que a temperatura havia caído para -5°C de madrugada.
Demos um pacote de arroz e outro de feijão liofilizados, da Liofoods (www.liofoods.com.br), para eles dividirem e chegarem até a cidade de volta. Enquanto eu buscava água para começarmos a caminhada, a raposa voltou a aparecer, em plena luz do dia, enorme! Rondou nossa barraca e tentou roubar uma sacola grande de comida dos pés da Adriana, que percebeu e saiu correndo atrás da ladra. Nosso pacote de granola ficou com as marcas dos dentes dela. Consegui fazer várias fotos da bichinha, linda! Completamente destemida e audaciosa, do tamanho de um cachorro médio. Por precaução desmontamos todo o acampamento, guardamos tudo dentro das mochilas cargueiras e penduramos em uma árvore.
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O trecho é o mais selvagem de todo o percurso, tecnicamente mais difícil. |
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3º E 4º DIAS DE TREKKING
Esse terceiro dia de trekking, com apenas mochilas de ataque, foi longo e extenuante. O trecho é o mais selvagem de todo o percurso, tecnicamente mais difícil. Mesmo os trechos de mata não são tão bem sinalizados, repletos de árvores tombadas e lamaçais. Com mochilas cargueiras seria uma tarefa extremamente árdua. O dia estava aberto e ensolarado, conseguimos chegar até a cruz sem grandes problemas em aproximadamente 4 horas de trekking, contando eventuais e rápidas paradas. Na cruz passamos meia hora e ficamos extasiados. A vista para a Cordilheira Darwin, a Ilha Dawson, o Monte Sarmiento, a curva de 90° do Estreito de Magalhães – tudo estava escancarado aos nossos olhos! Não resisti e escalei a cruz para sentir o vento em todo o corpo e conseguir enxergar ainda mais.
Na volta percebemos a maré crescendo com rapidez, trechos que havíamos ultrapassado sem dificuldades antes exigiam maior esforço. Restavam menos de cinco horas de luz natural e tínhamos pelo menos quatro horas de trekking pela frente. A conta era exata, um pequeno atraso e estaríamos em apuros, precisando talvez entrar na água do mar para seguir adiante. Não conversávamos, não fazíamos fotos, caminhávamos sem pressa e sem descanso, extremamente conscientes de cada passo.
Chegamos ao acampamento no lusco-fusco do fim do dia. Montamos a barraca novamente e preparei o jantar já no escuro, com os olhos vermelhos da raposa iluminados pela minha lanterna de testa. Adriana estava cansada demais para comer e simplesmente foi dormir. Fim do mapeamento, meia missão cumprida, agora era só curtir o conhecido caminho de volta, que decidimos fazer em três dias.
No topo do Cabo Froward, trepado em cima da cruz, vi que há um claro caminho interior adentro, na direção noroeste. Há anos venho analisando o mapa da Península Brunswick e imaginando se não seria possível caminhar até a Isla Carlos III, onde está o Whalesound (www.whalesound.com), uma estação científica e turística de acompanhamento de baleias jubarte. Explorar essa possibilidade é um projeto antigo e esse trekking me fez acreditar definitivamente em sua viabilidade.
Comigo é sempre assim... Uma aventura quando é boa nunca termina de verdade, apenas alimenta o desejo de mais aventura.
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Presente de despedida, uma orca bem pertinho de nós. |
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A VOLTA - 5º, 6º E 7º DIAS DE TREKKING
No trekking de volta vimos diversas baleias jubarte, acompanhadas de golfinhos magalhânicos, ao longe, no meio do Estreito de Magalhães. Logo depois do Faro San Isidro percebemos uma movimentação na água, muito próximo da praia onde caminhávamos. Pensei em golfinhos, mas logo percebi que eram animais bem maiores... Orcas!
Conseguimos nos aproximar uns 50 ou 60 metros do grupo, que calculei em cinco, um macho enorme, duas fêmeas de tamanho médio e dois filhotes pequenos. Eles caçavam algo no fundo do mar e mergulhavam verticalmente estendendo as caudas para o ar. As barbatanas dorsais eram longas e pontiagudas, o dorso negro lustroso e claramente dividido da barriga branca. Fiz algumas fotos enquanto Adriana olhava com os binóculos, os dois suspirando de emoção. Senti como se esse avistamento fosse um prêmio final, um troféu para coroar uma viagem tão especial. |