Você já se perguntou quantas vezes fez alguma trilha ou esteve outdoor com pessoas que você não conhecia, ou entrou em algum grupo de última hora para alguma atividade? Para mim a resposta seria “várias vezes”, já compartilhei momentos incríveis como a conquista de um cume de montanha com pessoas que nem sabia o primeiro nome!
Mas e com a sua mãe, você já viveu momentos assim? Planejou uma viagem juntos, ou a levou para fazer alguma atividade ao ar livre para uma vivência entre mãe e filho? Coisa bem diferente daqueles encontros familiares que se restringem à mesa do almoço de domingo, jantares, natais e aniversários.
Não vá para as próximas linhas sem antes fazer uma pequena reflexão, pense em como seria levar a sua mãe para um pequeno trekking, um camping, pescaria ou uma pequena remada de kayak só você e ela, por um dia ou vários, com muito ou pouco esforço, não precisa ser nada grandioso, apenas aquilo que você ama fazer em companhia da sua mãe. Pense também no jeito e nas manias dela e como você acha que ela se comportaria. Se você deu um sorrisinho de canto de boca fazendo essa reflexão, compartilhamos da mesma reação.
Eu pensei nisso enquanto planejava uma viagem aos Estados Unidos, parte da viagem seria de compromissos profissionais e a outra de diversão fazendo o que eu mais gosto, observando a vida selvagem e acampada! O local já estava escolhido: The Great Smoky Mountains National Park, ou se preferir o Parque Nacional das Grandes Montanhas Fumegantes, localizado entre o Tenesse e a Carolina do Norte.
Pensando na viagem e tendo minha mãe como convidada e parceira de uma pequena aventura comecei a planejar, pela primeira vez de forma séria – diga-se de passagem, questões relacionadas a logística, segurança, questão financeira, equipamentos necessários, e esbocei até um plano B, caso a nossa aventura fosse um desastre!
O maior medo que eu tive em levar a dona Sônia comigo foi como lidar com questões de saúde em caso de emergência, minha mãe é uma mulher de 57 anos, magra, em forma, bem disposta, foi atleta na juventude, porém periodicamente, sofre com inflamações do nervo ciático que a impossibilita, inclusive, de andar em casos de dores mais agudas. A viagem seria um grande pesadelo se eu não soubesse o que fazer caso a minha mãe sofresse dessa crise ou acontecesse algo que a colocasse em situação de risco ou de dor.
Além de contar um pouco com a sorte para que isso não acontecesse, fizemos um belo seguro saúde e condicionei a nossa viagem à ida dela ao médico ortopedista a fim de termos a receita médica e adquirir medicamentos mais fortes em caso de crise. Além disso, pedi meses antes da viagem que minha mãe se preparasse fisicamente.
Além da questão da saúde, outra coisa que me preocupava era os habitantes do Parque Nacional que havia escolhido. Além dos veados, dos esquilos, raposas e cervos, o Parque apresenta uma das maiores densidades populacionais de urso preto dos Estados Unidos! A viagem aconteceu no fim de setembro e é exatamente o período em que o Parque se encontra em alerta por conta da alta atividade dos ursos.
Após fazer o convite pra minha mãe sobre a viagem e ela ter aceitado, ainda teria que avisá-la sobre três coisas: 1) ficaríamos acampadas, 2) não poderíamos tomar banhos pela ausência de chuveiros no parque e 3) os ursos dominavam as florestas onde iríamos dormir.
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No calor de nossa fogueira no Smokymount, nosso segundo acampamento. |
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Algumas pessoas acharam loucura demais levar uma pessoa sem experiência para tal “passeio”, mas conhecendo as habilidades e dificuldades da pessoa que eu conheço a mais tempo no mundo julguei que ela daria conta!
Obviamente minha mãe perdeu algumas horas de sono dias antes da viagem pensando nos ursos, em como seria se durante a noite fôssemos surpreendidas por uma cheirada eventual do grande peludo na nossa barraca, algo que realmente poderia acontecer! Como toda mãe conhece o filho que tem e a minha sabia que eu estava indo naquele parque exatamente pra observar os ursos, tive que prometer, pelo menos umas três vezes, que eu não chegaria perto do animal. Obviamente, nunca faria isso, tanto pelo respeito pela fauna selvagem, mas principalmente por não colocar a minha vida e a da minha mãe em risco.
Nosso primeiro dia no Parque começou chuvoso, um teste inicial para a minha parceira que pediu pela jaqueta impermeável e deu uma banana pra chuva! Pronto, ela estava aprovada, o espirito aventureiro havia contaminado a minha mãe! Com chuva e tudo fizemos o circuito do Cades Cove, nossa maior chance de ver os animais e começamos com sorte! Avistamos os perus selvagens, um lindo coyote atravessando o campo, vimos diversos esquilos e um veado de cauda branca.
Já era muita felicidade para o primeiro dia, mas a persistência de continuar nossa atividade mesmo com o tempo úmido nos rendeu um presente! Observando por um tempo o veado de cauda branca, notei que o comportamento dele era de alerta, ficou empinado, com a cabeça um pouco mais levantada que o normal e imóvel, da mesma forma quando ficamos quando algo nos assusta e devemos prestar atenção a qualquer movimento, a qualquer ruído. As orelhas viravam pra dentro e pra fora e de repente saiu de cena à galope e a perder de vista.
O comportamento foi logo compreendido quando avançamos em uma curva duzentos metros daquele ponto, logo vi uma multidão de turistas com binóculos, máquinas fotográficas, todos apontando para uma árvore.
Fomos em direção do aglomerado de gente e logo vimos cinco ursos numa única árvore, duas fêmeas adultas e três filhotes. Acho que foi a melhor forma deste tão esperado encontro com os ursos para que a minha mãe perdesse o medo inicial. A cena dos lindos filhotes peludos comendo frutinhas na árvore substituiu a cena que ela imaginava das bestas feras negras com centenas de dentes destruindo o nosso acampamento a noite!
Ela viu a felicidade de crianças, adultos e idosos em poder observar aqueles animais, foram mais de sessenta minutos de observação, os filhotes fazendo graça na árvore e as mães sempre atentas, sempre próximas. Um dia de sucesso para observação da fauna, complementado pelo cessar da chuva no final do dia.
Fomos para nosso primeiro acampamento, o ElkMont, e fomos recebidas pelos guarda parques e, apesar da minha mãe não entender inglês ela entendeu muito bem os longos cinco minutos de recomendações sobre “acampamentos e ursos” – “não deixe comida fora da barraca”, “guarde toda a sua comida no porta malas ou pendure-a na árvore”, “a pasta de dente também atrai os ursos, mantenha fora da barraca”, e entre diversas outras recomendações, o aviso final foi que se eu provocasse algum incidente com o urso, eu ainda pagaria uma multa de 75 dólares.
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Racoon (guaxinim) atropelado. O mesmo problema de todos parques do mundo. |
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Não precisa entender inglês para reconhecer o tom da conversa. Apesar de ser incomparável os cuidados com relação aos ursos pardos em outros parques nacional dos EUA, o urso preto também pode arruinar o seu passeio. Mesmo com tantos avisos, todos os anos diversos turistas desavisados ou irresponsáveis sofrem ataques, são mordidos, arranhados, e alguns tem prejuízos financeiros com carros arrombados pelos ursos à procura de comida. Um dos guardas parques me perguntou se eu tinha um cooler, e disse que eu deveria ter cuidado redobrado caso tivesse um desses. Os ursos do parque apreenderam que cooler significa comida e caso avistem um, investem toda a energia em abrir a caixa para acessar o que tiver dentro!
O dia foi escurecendo, fizemos uma fogueira em local próprio, armei a minha barraca e minha mãe organizou os isolantes e sacos de dormir. Quando ela viu o local do acampamento e que os “vizinhos” estavam longe de nós, ela não ficou confortável, e a imagem do urso comedor de gente substituiu a memória recente do “urso fofinho comedor de fruta”. O que pra ela parecia o acampamento mais selvagem da terra pra mim era o shopping center da floresta. A menos de 100 metros os banheiros, dois vizinhos a menos de 50 metros e várias pessoas na área do camping com seu jeito americano de acampar – grandes trailers, mesas, cadeiras e churrasqueiras para hamburguers e marshmellows em pleno funcionamento.
A preparação do jantar distraiu um pouco a minha mãe que disse “estar brincando de casinha enquanto fazia a comida”! Macarrão com queijo, pão e guacamole foi a nossa janta. Colocamos as nossas lanternas de cabeças e fomos lavar a louça e escovar os dentes, já que os banhos viriam somente três dias depois. Enquanto escovava os dentes, vi minha mãe parada me observando e perguntei a ela se ela não iria fazer o mesmo. Ela disse que não queria escovar os dentes porque se era um perigo manter a pasta de dentes dentro da barraca o que a garantiria se o grande urso negro não seria atraído pelo seu hálito mentolado?
Dei muita risada e garanti a ela que isso seria um exagero e que ela poderia sim escovar os dentes. Convencida e com a higiene bucal feita, fomos para a barraca e quando apaguei a última luz ela se deu conta que realmente era somente um fino tecido que nos separava da floresta e dos seus habitantes. Antes que ela ficasse com medo, compartilhei com ela o quanto eu gostava de dormir daquela forma e quanto significava pra mim compartilhar aquela momento com ela. O som da floresta dominou a nossa noite, escutamos vários sons de insetos, das aves se acomodando dos seus ninhos e dos anfíbios.
Antes de dormir o meu sono pesado de sempre, fiz um pedido especial ao Sr. Urso do céu que ao menos naquela primeira noite não tivéssemos surpresas, acho que seria o fim para aquela viagem se o urso viesse dar a cheiradinha na nossa barraca.
No meio da noite, fui acordada por um estrondo e logo depois a minha mãe agarrou meu braço e com a voz aterrorizada sussurrou “É urso! É urso! É urso”, mas o barulho era inconfundível, alguma árvore caiu no meio da floresta! Acalmei a minha mãe dizendo que se tivesse sido algum urso, todos os campistas estariam gritando ou chamando pelos guarda parques. Nesta hora lembrei quantas noites quando criança tive medo dos monstros criados pela minha própria cabeça e fui acalmada pela minha mãe, então eu a abracei e disse que ficaria tudo bem.
Acordamos de manhã, descansadas e sem sinal de ursos no camping, fizemos nosso café da manhã e seguimos para a região do parque chamada Oconaluftee, fizemos uma pequena trilha no Chimney Tops, mas o grande objetivo do dia era ver os elks, os grandes cervos. Ficamos a procura dos bichos o dia todo e após o almoço, onde tivemos a nossa refeição na área de picnic Collins Creek com direito a arroz e feijão, seguimos para Catalochee, nossa maior chance de ver os cervos. Após duas horas dirigindo chegamos na área e avistamos um grupo com 12 indivíduos, um grande macho e suas fêmeas e filhotes.
No ano de 2001 a espécie foi reintroduzida no Parque, antes disso os cervos foram considerados extintos na área, esse é um dos programas de conservação de sucesso para parques nacionais nos Estados Unidos. Vários animais são monitorados com colares GPS, e a população de reproduz de forma saudável, retomando suas áreas naturais de ocorrência.
Além dos esquilos, aves silvestres e o lindo cervo, também vimos um guaxinim, infelizmente atropelado em uma das rodovias que margeiam o parque, um problema que assola unidades de conservação do mundo todo!
Nosso segundo camping foi no Smokymount, novamente fomos recebidos pelos guarda parques com direito aos cinco minutos de recomendações sobre os ursos. Além da informação adicional sobre a multa, neste camping fui informada que caso eu provoque qualquer incidente com os ursos, eu posso ser responsável pela sua morte. Dependendo do caso, e se houver ataque, os guarda parques atiram nos animais para que eles não se acostumem a atacar as pessoas. Fiquei refletindo em quantas consequências graves qualquer desatenção poderiam gerar. Novamente todo cuidado seria imprescindível para minha segurança, da minha mãe, e dos ursos.
Neste camping minha mãe se sentiu mais confortável, duas moças eram nossas vizinhas e as nossas barracas estavam mais próximas. Armamos o acampamento e fizemos o nosso jantar: Arroz, salmão em conserva e salada de grão de bico e guacamole. Uma iguaria para um acampamento, não? Durante a janta lembramos que salmão também seria uma iguaria para os ursos. A partir dessa hora, a comida mal descia para minha mãe, afinal o que fazer com todo aquele cheiro forte de peixe na área do camping?
Como minha mãe queria dormir tranquila sem ser incomodada pela visita noturna dos ursos, ela lavou de cima à baixo a mesa do jantar e lavou a panela e pratos como a coisa mais importante da vida dela para aquela noite.
Dormimos muito bem a noite toda, acordamos e nos preparamos para mais avistamentos de fauna para um dia ensolarado!
Seria nosso último dia no parque, vimos lindas paisagens, fomos a uma torre de observação chamada Clingmans Dome e passamos pela famosa Appalachian Trail, que ficará para uma próxima oportunidade no parque.
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A entrada do Parque Nacional das Grandes Montanhas Fumegantes, localizado entre o Tenesse e a Carolina do Norte. |
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Ao fim da nossa estadia no parque perguntei à minha mãe se ela havia gostado da nova experiência e logo vi nos olhos dela um brilho especial que eu conheço bem, afinal é o brilho que eu tenho nos olhos quando faço o que eu mais gosto, tendo momentos com a natureza e observando a vida selvagem sem grades, portões e cercas.
A genética é uma coisa incrível e sei bem a quem puxei!
Nas nossas memórias estarão para sempre os momentos que passamos juntas, em meio às imagens das florestas de outono da Carolina do Norte em que há um espetáculo das folhas amarelas, laranjas e vermelhas, dos bichos, das lindas montanhas e dos inúmeros rios e cachoeiras do parque, estará gravado momentos de relacionamentos únicos entre mãe e filha, troca de experiências, de carinho e a certeza que devemos planejar logo a nossa próxima viagem!
Compartilhe a vida selvagem com quem você ama!
Fernanda Abra |