A mudança foi realmente grande. Do escritório de advocacia, com uma rotina de prazos e a pressão que é inerente à profissão, porém sempre aliada aos esportes, que me davam o equilíbrio do qual precisava, decidi recomeçar. Há anos vinha buscando me reinventar, me redescobrir, me redesenhar, ainda que fosse, no início, apenas uma transformação interior.
Esse processo durou alguns anos, até que a vida me apresentou a oportunidade de mudar também meu cotidiano, meu estilo de vida, complementando a transformação na minha forma de encarar os desafios, que já vinha acontecendo.
“Com os pés no chão e a consciência de que talvez precisasse de um plano B, deixei o escritório, fechei minha casa, arrumei um novo lar para meus cachorros, me despedi de familiares e amigos e fui. O mundo me esperava. Um mundo de infinitas possibilidades acompanhando o Manoel Morgado que, há muitos anos, já não possui uma base fixa, um CEP, e que fez de seus duffles a morada de seus pertences.”
Após ir sozinha ao Nepal, há alguns anos, quando fiz um curto trekking na região do Annapurna, os roteiros de aventura passaram a ter prioridade em minha vida, dentro dos limites que a minha rotina permitia. Agora, nessa nova vida, essas viagens não são apenas uma forma de me realizar, mas são também meu trabalho, já que hoje estou vinculada à Morgado Expedições. Isso me permite compartilhar com tantas outras pessoas o muito que estou aprendendo, dia a dia, sobre trekkings e escaladas, sobre os avisos da natureza e o respeito que os mesmos devem receber de todos que se aventuram por seus lindos cenários, sobre os obstáculos físicos, psicológicos e emocionais que, em grande parte, nós mesmos criamos.
De cara, a missão era, a um só tempo, mágica e desafiadora – escalar o Kilimanjaro, esta montanha que, por alguma razão misteriosa, permeia os sonhos de muita gente. Encontramos o grupo em Moshi e, durante cerca de dez dias, trocamos experiências, rimos, choramos, brincamos e falamos de coisas sérias. É tão interessante perceber que, paradoxalmente, somos tão diferentes mas tão parecidos. Cada um com suas motivações, com seus limites internos, mas todos com o mesmo objetivo que se traduz em conseguir, se não ultrapassar esses limites, ao menos ampliá-los. Ainda mais interessante é ver que esses objetivos podem mudar no meio do caminho. A vontade inicial de atingir o cume pode dar lugar ao simples prazer de estar participando de uma expedição rumo à mais alta montanha da África, ou uma mera viagem de férias, com o intuito de estar com amigos e tirar a cabeça do trabalho, pode dar lugar a um sério compromisso interno de desafiar este ou aquele limite físico ou psicológico.
O mesmo pude observar nas pessoas que estiveram presentes na segunda missão dessa minha nova jornada, a escalada do Elbrus. Na verdade, foi uma dobradinha, já que acompanhamos dois grupos seguidos ao topo da Europa. As condições eram bem diferentes da escalada do Kilimanjaro. No Elbrus o frio é mais constante e exigente, há neve, gelo, necessidade de botas duplas, crampons e, algumas vezes, cordas e ice axes. Mas, lá no íntimo de cada um, a mola propulsora é a mesma, a vontade de superar os próprios limites. Ao escalar o Elbrus pela segunda vez senti na pele o poder do aspecto psicológico, seja para empurrar o escalador para cima, rumo ao seu objetivo, seja para fazê-lo desistir e voltar. Com muita dedicação, perseverança, força dos companheiros de jornada e uma boa contribuição da natureza, superei meus limites e atingi o ponto culminante da Europa duas vezes, em um intervalo de menos de 20 dias.
Mal sabia eu que o maior desafio desse meu início de vida nova ainda estava por vir. Eram férias, pois não estaríamos com clientes, e o destino era o Afeganistão. A viagem vinha sendo planejada há meses, criando um grau de expectativa bastante alto para, nas montanhas Pamirs, percorrermos o Corredor de Wakhan, na fronteira com o Tajiquistão. Fizemos um trekking de vinte dias em uma das regiões mais remotas do planeta, sem qualquer tipo de contato com “o mundo lá fora”.
Desde a entrada no Afeganistão, com a revista minuciosa de nossas mochilas, pude perceber a intensidade da experiência que teria nesse país tão conhecido pelos conflitos bélicos e pela tradição muçulmana vivida de uma das formas mais rígidas do mundo. No ponto de partida, a cidade de Ishkashim, confesso que me senti incomodada com os olhares que me cercavam não só com estranheza, mas também com um certo ar de reprovação, mesmo que eu estivesse vestida de acordo com seus costumes e com a cabeça coberta por um véu.
A falta de organização da operadora local que providenciaria uma certa estrutura para nossa viagem, já de início, nos deixou bastante apreensivos. Iniciamos o trekking sem mesmo saber ao certo se teríamos comida suficiente para todos os dias. E não deu outra. Tivemos que reduzir a viagem em alguns dias porque os alimentos – que se limitavam a macarrão, arroz e batata – não supririam as nossas necessidades pelo período inicialmente planejado. A ausência de uma alimentação adequada, por um lado, e um duríssimo e exigente trekking, de outro, abalou nossa força mental de forma impressionante. Mais uma vez, estávamos desafiando nossos limites.
Uma trilha que já seria bem difícil em condições físicas e psicológicas ideais, se tornou muito mais pesada. Caminhávamos cerca de oito a dez horas por dia, em terrenos extremamente acidentados, atravessando inúmeros rios , às vezes bem perigosos, em meio a uma paisagem que, se tivesse de ser descrita em uma palavra, eu diria “imensidão”. Para onde quer que olhássemos, o mundo demonstrava seu tamanho, sua grandeza, seu poder. Era como se as montanhas que nos cercavam possuíssem uma espécie de superpoder e, a qualquer momento, pudessem nos engolir.
Mais uma vez comprovando a dualidade de tudo o que existe, ao lado de tais dificuldades, medos, sensação de isolamento, desfrutamos de momentos mágicos pelo Corredor de Wakhan. Esta região, tão remota, é habitada basicamente por povos nômades, em sua maioria vindos do Quirguistão. Tivemos contato com muitos deles. Vivemos um pouco de seus costumes e de sua rotina. Acompanhamos o trabalho das mulheres na produção de pães e iogurte e dos homens na criação do rebanho de yaks e cabras. Muitos deles nos acompanharam também pelo caminho, já que, de acampamento em acampamento, íamos alugando seus animais para carregarem nossas barracas, utensílios de cozinha, tudo o que compunha a nossa estrutura.
Algumas das noites em que estávamos nesses acampamentos nômades também pudemos dormir em suas yurtas, no lugar de nossas barracas. As yurtas são a moradia dessas pessoas, com a estrutura feita de madeira, de forma abobadada, cobertas, normalmente, de feltro, contendo um só cômodo. Em seu interior, na maioria das vezes, são bem decoradas com tapetes e antigos baús. Esse povo também é muito conhecido por serem ótimos negociadores. Quanto maior o rebanho, mais rica e poderosa é a família. As crianças, por sua vez, nos proporcionaram um espetáculo à parte. Muito curiosas, brincalhonas, ficavam sempre encantadas com nossa presença, nos cercando e nos acompanhando a todo momento, ao menos até que uma das mães, lá de longe, as chamassem com um grito, e todas saíam correndo em disparada.
A riqueza cultural dessa viagem ao Afeganistão, não só adquirida do contato com as pessoas que conhecemos durante o trekking, mas também do que vimos em Ishkashim - a cidade afegã que foi nosso ponto de partida - é algo que não se pode descrever completamente em palavras. Sensações, olhares e gestos que trocamos com essas pessoas foram algo realmente muito forte, que permanecerão eternamente em nossa memória. E isso é o que fica de mais precioso dessa história, que vou levar comigo em todas as próximas viagens.
Antes mesmo da viagem ao Afeganistão, já imaginando que esse trekking seria algo especialmente duro - ainda que não pudéssemos mensurar a intensidade de tudo o que lá vivenciamos - planejamos uma ida a Bali. Eu ainda não conhecia a Indonésia e posso afirmar que fiquei simplesmente encantada! Isso não só pelas belezas naturais, mas também pela constante presença da arte, em todas as suas formas. Em balinês nem mesmo existe a palavra artista, já que todos os balineses são considerados, naturalmente, artistas, uma vez que possuem a arte dentro de si e a expressam de alguma maneira, seja em danças, na música, nos desenhos ou nas oferendas preparadas diariamente aos deuses e que são colocadas na frente das casas, dos templos, das lojas. Por um mês, vivemos Bali, desde o movimento das festas e noites agitadas de Kuta até os lindos e quietos cantinhos da cidade de Ubud, cercada e recheada de plantações de arroz. Não resistimos e alugamos uma casa por lá, para que pudéssemos usufruir ainda mais de sua deliciosa comida e dos lindos festivais. E para fecharmos com chave de ouro, passamos uma semana em Gili Trawangan, outra ilha da Indonésia onde, além de recarregarmos as baterias, trabalhamos bastante em novos roteiros que logo serão oferecidos pela Morgado Expedições, como o Japão, onde estamos agora, fazendo uma viagem de pesquisa.
Quando penso em tudo isso, em todas as experiências que já tive em tão pouco tempo, fico imaginando e sonhando com o que ainda está por vir... Sim, troquei o certo pela sabedoria da incerteza. E agora, olhando pela janela do trem que me leva até Kyoto, de frente para as florestas montanhosas do Japão que, ontem mesmo, foram o cenário de um duro dia de trekking, aquela minha voz interior – a mais sábia das vozes – se cala em um sorriso sereno.
“Quando penso em tudo isso, em todas as experiências que já tive em tão pouco tempo, fico imaginando e sonhando com o que ainda está por vir... Sim, troquei o certo pela sabedoria da incerteza. E agora, olhando pela janela do trem que me leva até Kyoto, de frente para as florestas montanhosas do Japão que, ontem mesmo, foram o cenário de um duro dia de trekking, aquela minha voz interior – a mais sábia das vozes – se cala em um sorriso sereno.”
Beijos e aguardo comentários,
Fabiana Atallah |