Iniciei minha vida de montanha no morro mais clássico do Brasil, pelo menos para nós paranaenses, o Anhangava. Pelas suas paredes se aventurava, em 1990, um grupo reduzido de escaladores. Certamente, a figura mais emblemática desta época era o Edson “Du Bois” Struminski, não somente por escalar sem cordas, mas também por ter uma aparência muito pitoresca: super magro, barbudo, vestindo roupas remendadas, chapéu de palha, voz fina e língua afiada. Para mim, ele era o delegado do morro e nunca imaginaria que um dia dividiríamos um bivaque gelado na serra do mar, durante a conquista de uma via.
Meu primeiro contato com o Edson Struminski foi na via Escoteiros, eu subi com corda e ele sem. Já na parada da dita rota, ele nos abordou, perguntando que corda era aquela lilás com uns fios roxos. Ave, pensei, foi o boi com a corda (literalmente), agora ele vai descobrir que estamos usando um bacalhau (corda estática) que tingimos na fervura e ainda com fios de lã trançados a mão! Todavia, para a nossa sorte, o mestre, que sempre estava de olho na molecada que costumeiramente fazia fiasco, só disse que parecia um perlon (corda importada). Ufa, nos safamos.
Aprendi a escalar no granito técnico Morro do Anhangava, mas sempre fui tímido e mantinha uma certa distância do Du Bois, por respeito, pois era iniciante e ele um escalador respeitado no cenário da escalada nacional. Lembro-me de seu olhar tranquilo, sua fala mansa e seus conselhos diretos para as pessoas que visitavam aquela montanha. Conselhos que visavam sempre a segurança e o respeito à natureza.
E foi justamente pelo viés da conservação que nos aproximamos anos mais tarde, pois o Du Bois encabeçou vários projetos em prol da Serra da Baitaca e sempre discutimos muito sobre a questão da conservação, dos escaladores frequentarem os ambientes de montanha e do fato de buscarmos algo similar: a autonomia na montanha.
Neste ínterim, concordávamos que a coisa mais incrível do montanhismo era o fato de podermos encarar uma gigante montanha, nós, seres tão pequenos, munidos apenas de uma corda, equipamentos, comida e água. Aí estava a essência do montanhismo, o que realmente balançava nossas almas: estarmos mergulhados naquela natureza deslumbrante e tão poderosa.
Estes pensamentos sempre nos assaltavam e me lembro que quando escalamos a via Los Encardidos, no Marumbi, e à noite, depois do jantar, ficamos filosofando sobre como estes momentos na montanha eram intensos. Foi daí que veio a ideia de abrirmos uma via na maior das paredes do estado, o Ibitirati, em estilo alpino – este estilo prevê carregar tudo o que se vai necessitar e realizar a empreitada até o topo em apenas uma tentativa.
Isso foi há exatos dez anos. Um mês antes da investida fizemos o reconhecimento, e depois de aproximadamente 6 horas de caminhada conseguimos chegar a uma crista de onde víamos nosso objetivo: uma fenda que cortava toda a paredes leste do Ibitirati, montanha satélite do Pico Paraná, a mais alta do estado. O único problema é que nos separava da parede um trecho de bambus “nervosos”. Tardamos uma hora para vencer 200 metros, foi selvagem. Ao alcançar a base, esperava-nos uma surpresa - um tambor com equipamentos e uma corda abandonada. Como sabia que uns amigos haviam estado por lá, entramos em contato, estes nos cederam a vez e assim fizemos os preparativos.
Pela trilha íamos apreensivos como sempre se vai numa empreitada pelo desconhecido. Tínhamos uma preocupação extra, pois contávamos com uma pocinha para a captação de água que visualizáramos durante o reconhecimento. Por sorte, ainda estava lá e enchemos as garrafas, agora íamos pesados.
A escalada foi iniciada pelo Ermínio Gianatti, que nos depositou num platô, a uns 90 metros do chão - neste trecho foram colocadas duas chapeletas (proteções fixas) na parede. O platô não era assim “uma Brastemp”, mas conseguimos cochilar, depois de comer algo quente. Apesar do desconforto, conversamos sobre a gratidão aos deuses da montanha por estarmos ali naquele lugar, onde ninguém havia estado até aquele momento. No outro dia cedo, sob forte neblina, quase garoa, o parceiro “Diboá” encabeçou, aquele que para mim, é o tramo mais duro da via, uma chaminé esquisita e difícil de proteger. Depois me passou a ponta da corda e guiei mais dois esticões, também em móvel, o que fez com que nos sentíssemos uma equipe sagaz, pois a escalada rendia. Digo isso, porque nunca havíamos encarado, os três, como time, um objetivo desse porte.
O dia estava gelado e úmido, fomos nos revezando nas guiadas, e, em um momento mágico, passamos para cima das nuvens, era como flutuar sobre um dos trechos de mata atlântica mais intocados do Brasil. Íamos tão confiantes que até jogamos um pouco do excesso de água que carregávamos. De repente, quando a luz do sol já estava amarelando, o Du Bois assumiu a dianteira num trecho de fenda de corpo estranho, com rocha de qualidade duvidosa e, com sua experiência de montanha, percebeu que seria melhor uma “saída pela direita”. Ermínio assumiu a ponta e bateu a derradeira “chapa”, que nos levou até o final da parede e que deu o nome de 3 Chapas à via.
Uma hora mais de vara-mato do “djanho”, como diríamos aqui na República de Curitiba, levar-nos-ia ao topo do Ibitirati. Escondemo-nos do vento patagônico sob uns arbustos e aguentamos mais uma noite sem saco de dormir. Apesar do frio, estávamos empolgados, pois acabáramos de abrir uma via incrível, quase toda em móvel, numa das paisagens de montanha mais magníficas do nosso país. Amanheceu um dia lindo, muito ventoso, mas aos poucos o sol foi nos trazendo à vida. Contemplamos a paisagem que agora, depois da intensa aventura, parecia melancólica e encontramos pessoas no cume do Pico do Paraná que nem imaginavam de que buraco havíamos saído.
Os três “chapas” desceram a montanha e nunca mais tornarão a subir fazendo parte da mesma equipe, pois o Du Bois nos deixou neste ano de 2017. Quem vai fazer piadinhas sem graça em nossas caminhadas a partir de agora? Quem vai mostrar o pé de erva-mate na base do Ibitirati, ou a mirtácea na trilha de retorno, ou explicar o porque de se cortar as samambaias das trilhas das montanhas para que não virem combustível em caso de incêndio?
A vida é fugaz, parceiros. Num momento estamos aqui e no outro já não fazemos mais parte deste mundo. Isso demonstra algo incrível, pelo menos para mim, que é a necessidade de vivermos intensamente e agradecermos diariamente por esse milagre que é a vida. Eu me sinto grato por ter realizado boas escaladas com o genial parceiro Edson Struminski. A partida de um amigo também sempre nos mostra quão irrelevantes são as brigas ou discussões tão frequentes entre os montanhistas. No final, todos vamos partir, então que esqueçamos as diferenças e nos esforcemos em deixar um legado bonito como esse que a Velha Raposa nos deixou, de comprometimento irrestrito com a montanha. Good vibes ;)
Edemilson Padilha
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