Escalei os primeiros metros, onde estão os lances mais difíceis de minha vida, com as proteções mais precárias nas quais jamais queria cair. Gritei de felicidade e desespero no descanso após esta seção extenuante. Sabia que teria problemas no teto final, pois esta era minha última tentativa do dia e estava terrivelmente cansado...
A história da Highway to Hell é muito rica. Começa num dia em que fomos destroçados pelas abelhas, no Setor Corpo Seco, em Piraí do Sul, PR. Abríamos uma via e algum desavisado matou uma abelha, num dia em que elas estavam agitadas. O resultado foi o esperado: um ataque em massa. No mesmo dia, após o Willian Lacerda, que é enfermeiro, dar-me uma boa dose de antialérgico, resolvemos abrir uma outra fenda, a uns 100 metros do local do ataque. Eu falei pra ele: vamos conquistar, mas eu estou mal e não posso guiar...sobrou pra você! Assim abrimos a Doce Veneno, uma fenda incrível graduada em 8a, com boas entaladas de mão e proteção à prova de bomba. Quando rapelamos os 25 metros de parede demos de cara com uma das fissuras mais alucinantes que já avistáramos, que viria a se chamar Highway to Hell. Pois o rapel da Doce Veneno é exatamente na linha da Highway to Hell, o que facilitou o top rope para trabalharmos a linha. Na verdade, ficamos meio assustados com o que vimos, pois não conseguíamos nem tirar os pés do chão. No início até cogitamos a possibilidade de bater alguma proteção, pois parecia impossível parar em meio a movimentos que nem vislumbrávamos isolar para entalar um friend ou um stopper!
Durante algum tempo não voltamos para Piraí e foi aí que apareceram outros amigos com coragem de entrar na via. Eram o Valdesir Machado, o Alessandro Haiduque e o Élcio Muliki, sendo que os dois primeiros foram corajosos o suficiente para levar as primeiras quedas nas peças precárias e encontrar novas possibilidades de proteção na fenda rasa no início da via. E eu achando que os perigos estavam somente na parede. Numa dessas investidas, estava dando segurança e fui picado por um escorpião; tive de sair às pressas para um hospital em Piraí do Sul, foram 24 horas de dor, mesmo tomando uma injeção que teoricamente me privaria da dela.
As tentativas continuavam, e era uma verdadeira batalha, pois passavam do primeiro crux e caíam no segundo. Parecia que ou o Val ou o Alessandro a iriam encadenar em breve, mas aí veio o final do ano, o Val foi pra praia e o Alessandro para a Patagônia. Eu e o Willian nos “internamos” na via. Ficamos 3 dias só isolando os movimentos, depois começamos a testar mais locais de proteção e decidimos eliminar as proteções dos primeiros metros para poupar energia. Mesmo assim, faltava força para parar colocar as proteções e continuar, pois eram colocações difíceis. Nesta busca por economizar peso e força, usamos uns velcros para não ter de “desclipar” as costuras da cadeirinha; assim, quando chegávamos ao crux, só puxávamos o friend e ele já estava na posição que entraria na fissura. Também levávamos as peças na ordem exata, do lado certo da cadeirinha. Trocamos alguns friends grandes do final por outros menores. Até que chegou o momento em que estávamos prontos para o combate final: encadenar a via! E não entendam isso como um combate contra a via, mas sim, contra as nossas próprias limitações.
O dia da cadena
Chegamos ao setor mais ou menos na hora do almoço, que é quando a luz do sol para de incidir sobre a parede. A temperatura era amena, apesar de estarmos em janeiro, devido ao vento que refrescava o Morro do Corpo Seco. Olhava para a via, enquanto me aprontava, e pensava: apenas uns 10 metros de concentração total, uma descansada e uma negociação com o tenebroso teto final me separam de um momento mágico. A emoção que me invadia não me permitia baixar minha pulsação. Entrei na via e caí no primeiro crux. Desci, retirei as peças da parede, pois cadena de via em móvel só vale se for sacando, e entrei novamente. Passei o primeiro crux, coloquei o camalot 0.75 e mais o stopper, respirei e quando estava com minha mão a 5 centímetros da agarra salvadora, meu pé escorregou. Não pude crer, perdi minha melhor condição, o ponto em que estava descansado e confiante. No decorrer do dia fiz mais algumas tentativas sem sucesso, parecia que a Highway to Hell não queria nos deixar passar. Resolvi relaxar, entrei de segundo na Doce Veneno pra limpá-la para um amigo que a havia escalado. No final do dia, com as últimas luzes o Willian me convenceu a dar mais um “pega”. A vibe estava incrível, senti que era a hora, meu parceiro falou: “escale à muerte”. Senti que teria que ser na raça, pois a bateria já estava no final.
Fiz cara de tigre (hehe) e passei os dois cruxes duros. Cheguei no descanso e comecei a gritar instintivamente, acho que foi a única vez que gritei daquele jeito, era um misto de emoção e de desespero, pois olhava o teto do fim da via e meu cérebro borbulhava. Descansei e segui muito concentrado pelos próximos metros, que não permitem proteger, até que cheguei embaixo do teto. Um camalot 5 numa fenda rasa e um 0.5 numa laca. Deveria descansar aí, mas não pude. Tive de partir para o crux final imediatamente, porque meu cérebro estava pensando demais. Movimento difícil, um dinâmico com o pé numa agarra abaulada. Fui, mas não alcancei a agarra, fiquei pendurado e tinha de tomar uma decisão- ou me jogava tentado acertar a queda ou ia “à muerte”.
Reuni minhas forças e me joguei na agarra final, com muito custo consegui juntar as mãos e olhar para baixo para ver a linha mágica de peças que me levaram até ali. Fiquei muito emocionado e muito feliz por tido a honra de ser o primeiro a juntar as peças deste quebra cabeça. Agradeço aos parceiros pela vibe e principalmente ao Willian pelo incentivo do dia da cadena. Para mim esta escalada foi de grande aprendizado, pois percebi que temos de ver os sonhos de trás pra frente, acreditando primeiramente na sua realização. Depois é só juntar as peças, ou melhor, descobrir onde colocar as peças e dar o sangue pela sua realização!
Edemilson Padilha
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