Extremos
 
COLUNISTA DANIELA SILVESTRE
 
Celebrando o centenário da Expedição do Endurance
 
texto: Daniela Silvestre
27 de outubro de 2015 - 11:00
 


Daniela Silvestre celebrando o centenário da Expedição do Endurance no Museu Polar "Scott Polar Research Institute" em Cambridge, Reino Unido.

 
  Daniela Silvestre  

“O dia 27 de outubro amanheceu claro e luminoso. O gelo não parava de rugir. O Endurance foi atirado de polpa para cima, enquanto uma banquisa em movimento arrancava-lhe o leme. A água entrava no navio com violência. Às cinco da tarde Shackleton deu a ordem de abandonar o navio. Estava tudo acabado.”

 

Há exatos 100 anos, em 27 de Outubro de 1915, o navio HMS Endurance selava o destino fatídico da sua tripulação. A embarcação jazia presa no gelo havia 9 meses. Esmagado pela força e pressão contante da barreira de gelo do mar de Wedell, foi adernando e com a quebra do leme, a tripulação se viu obrigada a abandonar o navio e montar acampamentos sobre grandes pedaços de gelo, arrastando os botes salva-vidas, sem terra alguma sob seus pés. Somente depois de 6 meses, quando finalmente os três botes foram lançados no mar aberto, a esperança resurgiu.

O Endurance zarpou de Londres em 1 de Agosto de 1914, em meio à primeira guerra mundial. Era novo e especialmente construído para enfrentar as regiões polares. Sob o comando de Ernest Shackleton, levava 28 homens para o que seria uma das maiores epopéias de sobrevivência em condições extremas de todos os tempos. A Expedição Imperial Trans-Antártica, tinha como objetivo cruzar a pé o continente antártico do mar de Wedell para o mar de Ross cruzando o poló Sul. Porém, Shackleton e seus homens nem imaginavam que jamais pisariam no continente gelado.

Shackleton

Ernest Henry Shackleton, nasceu em 15 de Fevereiro de 1874 no condado de Kildare, Irlanda. Sua família mudou-se para Dublin e depois para Londres, onde ele atendeu na marinha mercante. Antes da Expedição do Endurance, participou de duas expedições à Antártica. Primeiro com o Capitão britânico Robert Falcon Scott a bordo do Discovery 1901-1903 e depois liderando a sua primeira expedição a bordo do Nimrod 1907-1909. Com Scott, se viu forçado à retornar da empreitada ao Pólo Sul por estar gravemente doente. Com o Nimrod, Shackleton realizou a maior investida aos dois pólos. Sua expedição foi a primeira a atingir o Pólo Sul Magnético e avançou até 88º23S rumo ao Pólo Sul Geográfico, latitude jamais alcançada até então. Voltou do Pólo faltando apenas 150 km , sem comida com seu último pônei caindo em uma cravasse, o que o impediu de ter sido o primeiro homem a pisar no Pólo Sul, o primeiro homem a estar em um dos pólos geográficos da terra.

     
     

A conquista do Polo Sul

O Pólo Sul geográfico, foi conquistado em 14 de dezembro de 1911 pelo Norueguês Roald Amundsen na Expedição do Fram, 1910-1912. No entanto, sua glória foi abafada pela tragédia que se sucedeu ao seu oponente na então chamada corrida ao Pólo. Scott, na expedição do Terra Nova, 1910-1913, atingiu o Pólo Sul 34 dias depois de Amundsen. Abalados com o tremular da bandeira norueguesa fincada no lugar da Inglesa, Scott e mais dois de seus companheiros foram encontrados mortos no caminho de volta, dentro da barraca que os abrigava a poucos metros do depósito que provavelmente salvaria suas vidas. A comoção que se seguiu em torno da tragédia, transformou Scott no verdadeiro herói da conquista do Pólo Sul.

“É uma pena, mas acho que não consigo escrever mais”

última entrada do diário de Scott em Março de 1912.

A corrida ao Pólo Sul é assunto mais que debatido, relido e sem fim para os amantes da história polar. Mas sempre cabem considerações.

Robert Falcon Scott

Scott, era 4 anos mais velho que Amundsen. Nascido em Davenport, Inglaterra, aos 13 anos se tornou cadete da marinha britânica chegando logo à tenente e capitão. Quase 10 anos depois encontrou com o então presidente da Royal Geografic Society e ficou acertado que Scott lideraria uma expedição à Antártica. Nascia a era heróica da exploração antártica. A expedição do Discovery, 1901-1903, tinha propósitos científicos, com estudos sobre zoologia, mineralogia, geologia e com o objetivo de chegar ao pólo como um segundo plano. Fracassando após atingir a latitude 82º17S, Scott sentiu que podia mais e assim em 1910 zarpou da Nova Zelândia com o navio Terra Nova com a pompa do que todos acreditavam que traria toda a glória para a Inglaterra e os Ingleses. Ainda em Melborne, na Austrália, Scott recebeu um telegrama onde se lia: “Fram parte para a Antártica”. Esse telegrama se perdeu e alguns sugerem uma versão diferente. Ao ler a mensagem, Scott se sentiu traído por Amundsen, com que tentou conversar três meses antes na Noruega. Fora evitado. Afinal, até então, estavam indo para pólos distintos.

Scott era tido como indeciso. Em biografias póstumas chegou a ser chamado de “o Herói trapalhão”. Levou cães e pôneis comprados por membros da expedição que não entendiam nada sobre esses animais. Nos primeiros dias da expedição, perdeu 10 toneladas de carvão e óleo em uma tempestade, que ainda causou a morte de alguns animais. Dos dois trenós motorizados que transportava, perdeu um afundado logo no desembarque e o outro mal funcionou. Com obstinação por ciência, Scott designou um grupo de três homens para capturar ovos de pinguim Imperador em uma jornada de 5 semanas cobrindo 105 km, com temperaturas de -57ºC. Essa parte da viagem está bem retratada no livro “A Pior Viagem do Mundo” de Aspley Cherry Garrard e corroborou para o desgaste físico e para a falha estratégica da expedição. Entretanto, a maior causa apontada para a derrota e consequentemente a morte de Scott, mais do que o despreparo no comando, teria sido o clima. Mesmo no adiantar da temporada, Scott e seus homens enfrentaram um clima ruim, um frio não habitual para aquela época e isso o obrigou a deixar seu último depósito de provisões 60 km ao norte do projeto inicial, o que depois se mostrou ter consequências desastrosas.

Roald Amundsen

Amundsen, desde os 15 anos de idade queria ser um explorador. Aprendeu lendo que os skis noruegueses eram melhores que cães (mesmo assim levou 52 cães treinados). Pupilo de um outro grande explorador norueguês, Fridjof Nansen, tinha experiência com as vestimentas e o modo de vida Inuit. Participou da primeira expedição à invernar na Antártica, em 1898. Em 1906, conquistou a bordo do veleiro Gjoa a então desejada e perseguida por seus antecessores: a passagem noroeste, a travessia do Atlântico para o Pacífico no Oceano Àrtico. Quando o Fram aportou na Baia das Baleias no mar de Ross, Amundsen estava 3 semanas mais adiantado que Scott e também 110 km mais próximo do pólo. Levou no seu time, Sverre Honel, especialista em cães e Olav Bjaaland, campeão de Ski. Claro em seus objetivos, se preparou durante o inverno. Não era contra a natureza, mas a usava a seu favor. Estava bem melhor preparado que Scott.

A Trans-Antártica

Com a conquista do Pólo Sul, por Amundsen, e a do Pólo Norte, controversa e aclamada por Robert Peary em 1909 (Frederick Cook reivindica a conquista em 1908), Shackleton via na Expedição Trans-Antártica sua última tentativa de brilhar entre os grandes nomes da considerada Era de Ouro da exploração polar.

Desconhecida e imaginada como uma grande massa de terra no Sul para compensar o equilíbrio dos continentes conhecidos ao norte, a Antártica chegou a ser chamada de Terra Australis Incógnita. James Cook foi o primeiro à navegar abaixo do circulo polar antártico na sua segunda viagem de circunavegação em 1773 mas, Terra mesmo só foi avistada em 1819. Primeiro, o navio americano Williams do capitão William Smith avistou as ilhas Shetland do Sul e pouco tempo depois, em janeiro de 1820, o continente se descortinava aos dois navios dos russos Bellinghaussen, O Vostok e o Myrnyi. Com o continente descoberto, cada nova embarcação de reconhecimento batizava um pedaço de terra, e foi assim que a Antártica foi sendo mapeada e nomeada.

Quando partiu da Geórgia do Sul, em 5 de dezembro de 1914, o Endurance já enfrentava condições difíceis de gelo. Depois de percorrer mais de 1500 km, a menos de 200 km de seu destino, na baia Vahsel, a plataforma de gelo deteve o Endurance. Em 18 de Janeiro de 1915, o navio ficou aprisionado em meio à massa de gelo e assim foi sendo levado cada vez mais para longe da terra firme pelas correntes lentas do mar de Wedell.

Um mês depois, com o término do verão, esgotados pelas tentativas infrutíferas de libertar seu navio, não restava à Shackleton e seus homens senão a contemplação da incerteza. Passariam juntos um longo inverno polar. A responsabilidade de Shackleton era manter o grupo com saúde e moral alto ao longo do tempo. Ele deu ordens para que a rotina do navio cessasse, transformando o Endurance praticamente em uma estação de inverno. Distribuiu roupas quentes e garantiu o alojamento em setores confortáveis do navio. Pelo menos a sua tripulação teria a sensação de familiaridade e aconchego.

O sol desapareceu por completo no mês de Maio e só tornaria a ser visto quatro meses mais tarde. Com a escuridão, as atividades ficaram ainda mais restritas. Apesar disso, os diários de todos refletem um grupo realmente satisfeito.

“Shackleton não acreditava em disciplina desnecessária, mas por outro lado, quase nada acontecia sem seu consentimento”.

 

Depois que o navio ficou preso, Frank Hurley, o fotógrafo do navio apontou as lentes para a nova rotina. Apesar das condições muito distantes das ideais a qualidade das suas fotos e filmagens são excepcionais e foram felizmente salvas ajudando a eternizar o Endurance e seus homens.

Em meados de Agosto, 7 meses depois de sofrer lenta e ininterruptamente com a pressão do gelo, inclinando-se para frente e para trás, jogado de um lado para o outro o Endurance tombou. A primavera estava próxima, e os homens começavam a se perguntar se depois de libertos do gelo deveriam seguir para a travessia do continente ou voltar à civilização.

Chegamos a Outubro de 1915. Com o aumento da temperatura, o gelo ao redor do Endurance se partiu e o navio voltou a flutuar em água aberta pela primeira vez em 9 meses. Ao longo dos dias seguintes, o gelo ia se abrindo e fechando repetidamente até que um impacto terrível, sacudiu o navio fazendo-o estremecer e inclinar. O Endurance foi muito afetado e começava a fazer água por um abertura em seu casco.

“O dia 27 de outubro amanheceu claro e luminoso. O gelo não parava de rugir. O Endurance foi atirado de polpa para cima, enquanto uma banquisa em movimento arrancava-lhe o leme. A água entrava no navio com violência. Às cinco da tarde Shackleton deu ordem de abandonar o navio. Estava tudo acabado”.

 

Em 21 de Novembro nada mais restava. O navio afundara de todo.

O que se sucedeu daí por diante foi uma grande luta de sobrevivência. Liderados por Shackleton, os homens foram montando acampamentos no gelo, dormiam sem saber se acordariam em segurança no dia seguinte. Fendas abriam em baixo das suas tendas. Os acampamentos tinham que ser mudados com desesperada rapidez, enquanto baleias assassinas cruzavam os trechos de águas abertas.

Finalmente em 21 de janeiro de 1916, o pedaço de gelo em que se encontravam foi empurrado fazendo-os atravessar o Círculo Polar Antártico e entrar em águas conhecidas. Permaneceram no “acampamento oceânico” até 09 de Abril, quando finalmente os três botes zarparam em mar aberto. O James Caird, o Stacomb Wills e o Dudley Docker, foram assim nomeados em homenagem aos principais investidores da expedição.

Sete dias se passaram. Num mar traiçoeiro em meio à placas de gelo, passaram as últimos dois dias e duas noites sem água e sem comida. Em 15 de Abril, avistaram as falésias da Ilha Elefante. Os Homens desceram em terra com passos cambaleantes. Alguns caminhavam sem rumo pela praia deserta, tremendo, como se estivessem alcoolizados. Fazia 497 dias que não punham os pés em terra firme.

A ilha Elefente podia representar a salvação, mas era difícil imaginar algum lugar mais inóspito e hostil. Então, Shackleton reuniu seus homens e comunicou que um grupo menor sob o seu comando iria partir dentro de poucos dias a bordo do James Caird com o objetivo de tentar chegar à estação baleeira da Geórgia do Sul.

A ilha Geórgia do Sul distava 1300 km, mais de dez vezes a distância que acabaram de percorrer. Para alcançá-la, o bote precisaria atravessar o mais temível trecho oceânico do planeta, o Cabo Horn, em pleno inverno. Teriam que achar a ilha usando apenas um sextante e um cronômetro, e se eles a perdessem de vista seria o fim de todos. Os 22 homens permaneceram na Ilha Elefante. Outros seis, partiram para o impossível.

24 de Abril a 10 de maio de 1916

“A história dos dezesseis dias seguintes é uma luta suprema em meio às aguas agitadas”

_escreveu Shackleton em seu diário.

A viagem do James Caird, é um capítulo e também um livro à parte no relato da expedição do Endurance. Mais tarde, viria a ser classificada como uma das maiores empreitadas por mar jamais realizadas.

Naquilo que era dado como impossível, Shackleton e seus companheiros desembarcaram na Ilha Geórgia do Sul em 10 de maio de 1916. Explorando ao redor do ponto onde tinham atracado, logo perceberam que a estação baleeira ficava do outro lado. Com o barco imprestável para navegar, teriam que cruzar as montanhas do interior da ilha caminhando.

Com a lua cheia brilhando em um céu claro e calmo, Shackleton, Frank Worsley e Tom Crean, começaram uma longa jornada. Amarrados por uma corda, escalavam entre penhascos procurando um local onde pudessem descer encosta abaixo. Quando vislumbraram o que poderia ser uma rota, começaram uma lenta e penosa descida, avançavam centímetros a cada passo. Shackleton ficou em silêncio por alguns minutos, pensando. “Vamos escorregar”, finalmente decidiu. Era tudo ou nada. Precisavam arriscar. Os três se juntaram um por trás do outro, cada um prendendo com as pernas e os braços o homem a sua frente. Com Shackleton na dianteira e Crean na retaguarda, deslizaram com a sensação de estarem se atirando no vazio. Então, começaram a gritar como uma exacerbação da alegria que estavam sentindo. Quando a velocidade diminuiu, foram freados por um monte de neve. Em poucos minutos tinham percorrido mais de 500 metros. Postos de pé, caminharam mais 36 horas sem descanso e por fim chegaram à Estação Baleeira de Stromness em 20 de maio de 1916, quase 7 meses depois de abandonarem o Endurance.

Estavam imundos, suas roupas em farrapos. Um homen os avistou. Shackleton pediu que o levassem ao gerente da estação. Um velho baleeiro norueguês que estava presente fez um relato daquele encontro.

“O gerente disse: ‘Mas quem diabos é você?’, e aquele homem com aspecto horrível e barbado no meio dos três balbuciou: ‘Meu nome é Shackleton’. Eu virei de costas e chorei”.

Eles tinham conseguido. Todos os homens seriam resgatados.

Os pensamentos de Shackleton se voltaram aos homens na Ilha Elefante. As três primeiras tentativas de resgate não tiveram sucesso. Mas em 30 de Agosto de 1916, Shackleton apareceu, encontrou os 22 homens e se consagrou como “o maior Líder que já apareceu na face da terra”.

A travessia realizada

A travessia da Antártica foi creditada ao geólogo e explorador inglês Vivian Fuchs mais de 40 anos depois, em 1957 na expedição Trans-Antártica da Commonwealth e tinha como companheiro ninguém mais que Edmund Hillary, o neozelandês que 4 anos antes conquistara pela primeira vez o cume do monte Everest.

Para sempre na História

O Endurance continua a sua saga 100 anos depois. Vários livros foram escritos, diários foram revistos, documentários e filmes com atores estrelados de hollywood foram exibidos. Museus permanecem guardando e cultivando a memória daqueles que fizeram essa história. Exploradores do século XX e XXI refizeram a expedição do Endurance, a Viagem do James Caird, e o “ trekking” nas montanhas e geleiras da Georgia do Sul. Foi lá que Shackleton morreu em 1922, supostamente de ataque cardíaco enquanto se preparava para mais uma expedição à Antártica. Seus restos mortais repousam no cemitério de Grytviken. Quanto ao Endurance, este não deixou vestígios. Apenas uma grande história para ser contada.

Há 25 anos, eu era uma garota que gostava de ler histórias de grandes façanhas. Em uma estante de um hotel na Bahia, em 1989, achei uma edição de “Volta ao mundo em solitário” de Aleixo Belov. Depois, descobri Josua Slocum; ainda que fora de qualquer ordem cronológica. Amyr Klink e Os Schurmann forneceram ótimas referências e seus livros foram devorados. Thor Heyerdahl se tornou um ídolo. Até que no final da década de 90, começaram a ser lançados no Brasil relatos sobre as expedições antárticas, árticas e eu descobri Scott, Amundsen, Shackleton, Nansen, Mawson, Franklin e tantos outros. Não parei mais. Até passei pela América do Norte com Lewis e Clark, Coronado, Cabeza de Vaca e Ponce de Leon. Rumei para a América do Sul atrás de Pizarro, Orelana, Fawcett, Langsdorf, Humbold e Darwin. Circunaveguei o mundo com Magalhães, e Cook. Na África, presumo que conheci o Dr. Livingstone. Na Ásia, Voltei a Marco Polo, conheci a frota do tesouro dos chineses , o motin do Bounty e Subi o Himalaia com Maurice Herzog, Mallory, Irvine, Hillary, Tenzing e Messner. Mas decidi me perder na Antártica. É para lá que eu gosto de ir. É lá que habitam os meus sonhos mais remotos e esquecidos.
Que as histórias desses homens continuem nos inspirando. Que através da leitura o mundo se descortine como uma janela, uma janela para a vida.

Daniela Silvestre

 
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