Extremos
 
COLUNISTA BETO PANDIANI
 
Lições do Mar
 
da redação, Texto: Beto Pandiani
26 de junho de 2015 - 10:00
 
Beto Pandiani e Felipe Whitaker durante a expedição Rota Boreal. Foto: Maristela Colucci
 
  Beto Pandiani  

No ano de 2005, Felipe Whitaker e eu navegamos de Nova York a Groenlândia. Foi uma linda, difícil e gelada viagem. Não imaginei que logo no final tínhamos marcado um encontro com uma calmaria que nos deixou estancados em pleno Mar do Labrador.

Sem conseguir tocar a costa da Groenlândia somente com o nosso próprio esforço fomos obrigados a receber a ajuda do Kotic, o nosso barco de apoio.

O mar me ensinou muita coisa, e naquelas águas tive que rever com humildade o meus limites.

Publico aqui um trecho final do meu diário naquele triste dia:

"Foi o dia que o mar adormeceu, foi o dia que o vento se esqueceu de mim, foi o dia que o tempo parou, foi o dia que o sonho escapou. Sem o vento o que posso conquistar, e por algum tempo a tristeza vai inundar o meu ser. Minha terra virou um deserto. Um mar liso e sem vento é como um território árido imutável.

Que ironia, e que surpresa. Nós somos como um pedaço de madeira a vagar pelo imenso e macio azul do Mar do Labrador. Estou aprendendo o sentido do que é ser um ser sem destino.

Tudo bem Vento, aceito sua decisão, não vieste tocar a sua música, mas não penses que vou me render, pois meu coração ainda guarda as lembranças de tudo que vi nesta imensa América, e que venha a Groenlândia, terra nova, ar novo, outra luz, e outra gente.

Como eu já disse, coração de quem vai ao mar tem que ser forte, pois tem que aguentar a solidão, a distância, a saudade, e a falta do seu amor. Não é um revés que vai me tornar amargo, ao contrário, chego aqui fortalecido como as mãos calejadas do pescador que ao longo da sua vida tem em cada cicatriz uma boa história para contar"

 

Alguns dias antes havia escrito uma carta ao Mar.

"Meu respeito por ti é tão imenso quanto a tua vastidão.

Naveguei por ti e te senti de perto como poucos. Com gosto de sal na boca, vi cada praia de todo esse imenso litoral americano, te vi em várias cores e tons, te vi bem-humorado e também senti tua ira. Algumas vezes sinistro; outras, calmo e sublime. Lembras-se daquela noite, a 50 milhas da costa da República Dominicana? Estavas tão quieto que pude enxergar todo o céu refletido nas tuas águas. No Drake, vi como tu podes ser gigantesco; na ilha Exumas, conheci tua cor verde-esmeralda e a tua transparência. Já na costa da Patagônia, percebi como podes ser furioso.

Na costa norte do Brasil, naveguei por tuas águas rasas com ondas
cavadas e rápidas; ao largo de Trinidad, te vi marrom como nunca; tuas
águas se misturaram com as do Orinoco, o mar de dentro. Também nunca
esquecerei que no dia 2 de fevereiro de 2001, ao cruzar o paralelo 50 graus sul, tu estavas muito grande e imponente, ainda assim permitiste que nós surfássemos ondas incríveis.

Por favor, dize ao vento que sopre suave e nos leve rapidamente para as
terras a nordeste; afinal, somos passageiros do vento. Sei que ele tem várias faces, mas dize-lhe que sopre nas nossas costas.

Muitas vezes tuas águas são turbulentas, tão imprevisíveis e difíceis de
serem navegadas, que essa tarefa se torna quase impossível, mas me parece que o teu segredo só será desvendado àqueles que ousarem te conhecer enfrentando teus caprichos.

Apesar de ter passado mais de 650 dias em tua companhia, só conheci
algumas de tuas faces, por isso te peço permissão para passar por tuas águas geladas do norte, pois quero ver de perto o mar de pedra, congelado.
Tu tens sido meu mestre por todos estes anos. Mais que isso, Mar, tu és
minha terra.

Até, sei que tenho marcado outro encontro no Pacífico Sul, e até lá vou ter que carregar esta frustração de não poder tê-lo navegado por completo. Adeus Mar do Labrador."

 

Em 2008 cheguei na Austrália depois de 17 mil quilômetros e 71 dias e noites de navegação a partir da costa chilena.

“Velejar é jogar xadrez com o vento.
Nesta estratégia temos que dosar a audácia com a cautela,
a ânsia de partir com a sabedoria de esperar”
Beto Pandiani
www.betopandiani.com.br

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