Nascido em 22 de Junho de 1930, de pais da classe trabalhadora em Bergamo na Itália, um talento precoce tornou Bonatti famoso já com seus 20 anos, apesar das privações da vida pós-guerra italiana. Segundo ele mesmo confessou, até os 18 anos tinha se limitado a andar: “Nessa idade realizei minha primeira escalada e não abandonei mais”. O batismo chegou, quase casualmente, no La Grigna, montanha localizada na região da Lombardia, província di Lecco, na Itália, a qual Bonatti superou utilizando sapatos herdados e que tinham sido utilizados na Segunda Guerra Mundial. Desde então, durante 17 anos ele conquistou alguns dos maiores êxitos do alpinismo.
O episódio do K2
Em 1954, Bonatti participou de uma grande expedição ao K2, segundo pico mais alto do mundo com 8.611 metros, expedição esta que procurava recuperar algum orgulho italiano perdido após as agonias da Segunda Guerra Mundial. Seu trabalho no ataque final ao cume no porteio de equipamentos de oxigênio para seus companheiros, os alpinistas Lino Lacedelli e Achille Compagnoni, teve papel fundamental nesta conquista.
Porém, Lacedelli e Compagnoni acreditavam que o alpinista jovem e brilhante, então com apenas 24 anos, não deveria tentar compartilhar sua glória no cume, e assim definiram seu acampamento superior mais elevado do que tinha sido combinado. Quando a noite caiu, Bonatti e um carregador paquistanês, Amir Mahdi, incapacitados de continuar subindo e alcançar a dupla mais alto do que esperavam, foram forçados a passar uma noite ao relento em condições terríveis a 8.100 metros. Bonatti já havia passado sete dias contínuos acima de 7.000 metros. Mahdi perdeu todos os dedos das mãos e dos pés devido ao congelamento.
Na manhã seguinte Bonatti e Mahdi desceram enquanto Compagnoni e Lacedelli recuperaram as garrafas de exigênio deixadas mais abaixo e alcançaram o topo. Toda a Itália comemorou a conquista, superando a humilhação da derrota na Segunda Guerra Mundial. Mas ao retornar para a base, Bonatti foi perturbado com as vibrações ruins que vieram de Ardito Desio, o líder da expedição, a dupla que chegou ao cume, e o oficial de ligação. A importância e a resistência de Bonatti foram pouco reconhecidas na versão final do filme sobre a conquista e nos livros que se seguiram.
Então Bonatti sofreu a vertente obscura do alpinismo, se vendo imerso em uma polêmica desacertada, sendo acusado por seus companheiros de colocar em perigo o êxito da expedição e a vida de um carregador. Sua vida aventurosa foi ofuscada pela controvérsia nesta primeira ascensão ao K2, em uma época que encapsulava o otimismo e de certa forma alguma hipocrisia do pós-guerra na Itália.
Compagnoni e Lacedelli rebateram a indignação de Bonatti acusando-o de roubar parte do oxigênio. "Os italianos queriam varrer tudo para debaixo do tapete", disse Chris Bonington, um dos mais renomados alpinistas britânicos em entrevista ao diário Guardian.
No 10º aniversário da ascensão ao K2, Compagnoni chegou a acusar Bonatti abertamente em uma história para um jornal, alegando que Bonatti tentou "agarrar" o cume para si e Mahdi, e que teria utilizado uma parte significativa do oxigênio nos tanques que levou para cima, os quais ficaram a disposição da dupla de cume. E ainda que tinha sido Bonatti o responsável pelas terríveis queimaduras e amputação subseqüente dos dedos de Mahdi.
Bonatti o processou por difamação e ganhou um julgamento, sendo o dinheiro ganho revertido para um orfanato. A decisão do tribunal não fez, no entanto, que começassem a desvendar o que havia acontecido no K2, ou como essas acusações vieram a ser feitas. Sobre a questão do oxigênio, o tribunal considerou que a acusação era falsa, porque a dupla de cume, e não Bonatti, tinha as máscaras e válvulas para os tanques de oxigênio. O poderoso CAI (Club Alpino Italiano) recusou o pedido de Bonatti que agora se sentia no direito de reivindicar a verdade dos fatos.
Em seu caminho em busca de demonstrar a verdade, ainda sofrera perseguições. Uma vez os pneus de seu carro foram cortados quando ele realizava uma apresentação de slides. Mas como ele tinha feito desde o início, lutou mostrando sempre a sua versão dos acontecimentos, mas com o tempo os eventos eram esquecidos na memória do público.
A cena mudou anos depois para Melbourne, na Austrália, quando um cirurgião de meia-idade, Robert Marshall, montanhista com um grande interesse nas primeiras ascensões italianas resolveu estudar mais sobre o caso de Bonatti. Ele aprendeu a língua italiana bem o suficiente para tentar realizar as melhores traduções dos primeiros dois livros de Bonatti, "Le Mie Montagne" (traduzido em inglês como On The Heights,
1961) e "I Giorni Grandi" (como Great Days, 1971). Logo depois que foi publicado na Itália em 1985, ele leu e também traduziu a luta de Bonatti nos tribunais em "Processo al K2" (Trial on K2).
Marshall apresentou fatos até então não percebidos até mesmo por Bonatti, o qual foi grato pelas opiniões apresentadas em sua defesa. Mas ele ficou ainda mais grato quando em meados de 1993 Marshall encontrou a evidência que derrubava a versão de Compagnoni dos eventos.
Bonatti entendia o montanhismo como uma escola, cujas assinaturas eram a honestidade, a fortaleza e a sensibilidade. No livro "K2-Storia di un Caso" (K2: história de um caso), o italiano recriou com o ritmo dos melhores thrillers tudo o que se sucedeu no K2 na noite de 30 de julho de 1954.
Uma vida de aventuras
De qualquer forma, as acusações feitas não tiveram efeito sobre a reputação de Bonatti como um alpinista, porque na década seguinte ao ocorrido no K2, ele realizou uma série de atividades que fizeram dele uma lenda da escalada: escalou em solitário o Pilar Sudoeste do Dru em 1955, o Gasherbrum IV (7.925 metros) em 1958, uma descida épica e salvamento no pilar central do Freney, uma nova rota na face norte do Grand Jorasses, a primeira ascensão invernal do esporão Walker, e em 1965 escalou em solitário e de noite, a face Norte do Cervino (Matterhorn). Suas escaladas no Grand Capucin e no Petit Dru são consideradas como pontos de referência no esporte.
Sua primeira ascensão do Gasherbrum IV no Karakoram com seu amigo Carlo Mauri, em 6 de agosto de 1958, foi um dos destaques das escaladas no Himalaia em sua época. "Ele estava entre os maiores de todos os tempos, sem sombra de dúvida", disse o montanhista britânico Chris Bonington.
Porém, para a surpresa de todos, Bonatti deixou o alpinismo na plenitude em 1965, aos 35 anos de idade, mas a fama de Bonatti se estendeu muito além do mundo de escalada. O editor Leonardo Mondadori o contratou então como colaborador da prestigiada revista italiana Época. Acabava de nascer assim um jornalista. O alpinista espanhol César Pérez de Tudela relacionou aquele novo desafio como uma continuação de seu espírito aventureiro: “Bonatti realizou durante vários anos uma original volta ao mundo que passava pelo cume das montanhas e das selvas da Terra. Esse foi também o ponto de partida de sua fértil obra como repórter e escritor, baseada principalmente em suas experiências e viagens. Foi até as nascentes do rio Amazonas, estudou os tigres de Sumatra, provou que o autor de ‘Moby Dick’, Herman Melville, esteve realmente preso pelos canibais nas ilhas Marquesas, e explorou solitariamente o cabo de Hornos”.
Mesmo Bonatti estando afastado do alpinismo, durante anos, a polêmica do K2 seguiu viva pelos detratores e seus seguidores. Mas hoje ninguém mais duvida de sua honestidade. Anos mais tarde, as provas e o CAI (Club Alpino Italiano) acabaram dando razão a Bonatti, justo quando visitava a cidade espanhola de Madrid para receber um prêmio da Sociedade Geográfica Espanhola. Passou o resto de sua vida tentando limpar seu nome, e finalmente foi inocentado quando Lacedelli confirmou a sua versão dos acontecimentos após a morte Compagnoni, em maio de 2009.
A última palavra foi dita pelo renomado alpinista tirolês Reinhold Messner, primeiro homem a realizar ascensões aos cumes da quatorze montanhas com mais de oito mil metros de altitude, e consequentemente mais elevadas do mundo, mais conhecidas como as "14 oito mil": “Bonatti foi o último grande alpinista tradicional”.
Bonatti faleceu no dia 13 de Setembro de 2011 em Roma, aos 81 anos, sempre defensor de sua concepção vitalista do montanhismo e da vida. “Vivi 17 anos o alpinismo extremo, confessou Bonatti, quero dizer, no limite, e assim, antes ou depois, terá algum problema. Sair vivo é uma demonstração de ter feito tudo na regra”.
Para saber mais
Quem se interessar pelas aventuras ou pela história de Walter Bonatti, fica a recomendação do excelente livro, "Montagne di Una Vita" (Montanhas de Uma Vida), escrito pelo próprio Bonatti em 1995. O livro originalmente em italiano, recebeu uma versão em espanhol (Montañas de Una Vida) no ano de 1999, publicado por Ediciones Desnivel e foi reeditado no ano passado pela mesma editora espanhola, como homenagem após seu falecimento. Possui ainda uma versão em inglês (The Mountains of My Life), traduzido e editado por Robert Marshall em 2001. É atualmente meu livro de cabeceira predileto.
Por Beto Joly
www.imontanha.com
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