Extremos
 
COLUNISTA AYESHA ZANGARO
 
Aconcágua: No topo das Américas
 
da redação, Texto: Ayesha Zangaro
9 de junho de 2012 - 23:23
 
Ayesha Zangaro no cume do Cerro Bonete, em aclimatação para o Aconcágua.
 
  Ayesha Zangaro  

É difícil lembrar os perrengues da montanha quando ainda estamos arrumando as malas para sair, no conforto de casa. Check list feito: três malas e três mochilas cheias, muitas blusas dry-fit, calças de trekking, meias e luvas finas e grossas, as camadas corta vento, os casacos de pluma, botas e os sleeping bags, com uma camada de embalagens de comida liofilizada cobrindo tudo isso. A caminho do aeroporto ainda não tinha caído a ficha que eu estava indo para outra expedição.

No fim do dia 3 de Fevereiro chegamos a Mendoza, a capital dos vinhos na Argentina. Depois de colocar as bagagens em dois taxis, fomos para o hotel NH Cordillera, no centro da cidade. Fomos super bem recebidos pelo pessoal do hotel e depois de deixar tudo no quarto descemos para encontrar com os guias, o Carlos e o Eduardo. Conversamos um pouco sobre a expedição e combinamos de ir alugar os equipamentos que ainda faltavam no dia seguinte.

Dia 4 acordamos relativamente cedo para ir tirar os permits para entrar no Parque Provincial do Aconcágua e depois alugar as botas duplas e comprar os isolantes térmicos para colocar embaixo dos sleeping bags. A manhã toda ficou em função disso e andamos por quase todo o centrinho da cidade, que é super agradável e arborizado. Fomos almoçar no restaurante La Florencia, na esquina da rua mais turistada de lá, junto com o Capy, que seria nosso guia na parte alta da montanha. A tarde foi tranquila e deu para conhecer algumas das muitas praças que tem por lá. Os dois próximos dias foram para checar se estava tudo lá, conhecer os companheiros de viagem, comer bem e tomar muito helado.

Na segunda-feira, dia 7, saímos depois do almoço para Puente Del Inca, à 2800m. Foram três horas de van até o pequeno povoado andino, mundialmente conhecido pela sua formação natural sobre o rio das Vacas no nordeste da província. Esse povoado é visitado principalmente no inverno, onde as hospedagens recebem esquiadores de todo o mundo. Ficamos inclusive em uma dessas hospedagens, com quartos coletivos. Foram os primeiros ares de montanha que respiramos.

Aproveitei o fim de tarde para tirar foto com os logos dos patrocinadores, rearrumar minha mochila, conhecer o povoadinho e tomar meu último banho decente. De noite jantamos juntos e jogamos um pouco de pebolim antes de dormir.

     
     

Primeiro dia oficial de expedição! Saímos perto das 10h para a entrada do Parque Provincial. Fomos de van até a entrada de Horcones e mochila nas costas! Descemos da van, tiramos fotos do grupo e resolvemos fazer um cumprimento à montanha antes de entrar em seu território. Andamos mais ou menos 4h até o primeiro acampamento, Confluência à 3400. De hora em hora, o grupo todo parava para descansar e tomar água. Logo no começo da trilha comecei a sentir minha bota pegando no calcanhar. Tinha comprado ela há pouco tempo, mas não tinha tido problemas nas caminhadas anteriores. Talvez por causa do terreno mais irregular, a costura mal feita da bota formou uma bolha razoavelmente grande no calcanhar. Por volta das 16h fomos recepcionados no primeiro acampamento do parque pela equipe muito simpática da Aymara, a empresa responsável pela nossa expedição. Nos serviram frutas, bolachas e suco de lanche, foi ótimo comer um pouco depois do dia quente de caminhada. Cheguei lá muito irritada com a bolha e sem perspectiva nenhuma de melhora, mas como chegamos cedo tive tempo de descansar um pouco e esquecer do incomodo.

O acampamento de Confluência serve de base inicial para grande parte dos passeios dentro do parque; saindo de lá é possível fazer o trekking até Plaza de Mulas, o acampamento base da rota tradicional do Aconcágua e o trekking até Plaza Francia, a base de alguns poucos que querem encarar a temida face sul. É um acampamento temporário e pode ter diferentes localizações dependendo da temporada, desta vez estava antes ponte Bridge.

Nesse dia ainda consegui escrever um pouco no meu diário e até consegui tomar banho! Tive um fim de tarde bem agradável conversando com a Mari e a Tainah do lado de fora da barraca refeitório. Antes de jantar ainda tivemos que passar no serviço médico para receber o aval de continuar ou não. Ninguém no grupo teve problema, mas preciso dizer que não simpatizei nem um pouco com o médico de lá, principalmente depois que ele disse que menores de 18 anos têm grandes chances de desenvolver edemas pulmonares, hunf! Depois de saber que todos nós estávamos em excelentes condições físicas para ir até Plaza de Mulas, voltamos para a barraca refeitório para jantar. Primeira noite de temperaturas mais amenas e já recorri ao meu casaco de plumas.

Duas más notícias pela manhã! Segundo a programação, neste dia (09/02) sairíamos para caminhar até o Mirador da Face Sul, à 4000m, como parte do processo de aclimatação. Indo tomar café, ouvimos que tinham dois argentinos presos na parede sul há uns três dias e que o resgate estava tendo dificuldade em chegar até eles. Sendo assim a administração do parque proibiu qualquer grupo de seguir pela trilha que levava à Plaza Francia, provavelmente para evitar olhares curiosos. Ou seja, mission aborted! A segunda má noticia foi que tivemos a primeira baixa do grupo, a Mari teve alguns problemas durante a noite e resolveu descer...

Me preparei então para um delicioso dia de ócio no acampamento, mas minha alegria durou pouquíssimo. Em meia hora a Aymara recebeu um rádio que o resgate tinha conseguido ajudar os dois a sair da parede e a via estava liberada. Ouvimos tantas versões desse resgate, que no fim essa história virou até piada! Ainda vimos e ouvimos muitos barulhos de helicópteros andando para lá e para cá por causa desse acidente, mas ninguém soube uma versão concreta dos fatos. Arrumamos as mochilas correndo e pé na estrada.

O dia estava muito bonito e até que bem quente para a altitude em que estávamos. Como no primeiro dia fomos parando de hora em hora para hidratar e reforçar a camada de protetor solar. Quanto mais subíamos mais a paisagem ficava parecida com Marte, aqueles campos enooooormes, vermelhos e com muitas pedras no meio do nada. A diferença realmente era só aquele bicho enorme de pedra e gelo lá no fundo, contrastando com todo o resto em volta.

A última parte do caminho que levava até o Mirador foi bem chatinha, muito desnível e aquele sol chapado em cima da gente drenou muita energia. Chegamos lá mais ou menos às três da tarde e paramos para contemplar a Face Sul da Sentinela de Pedra. Impossível imaginar aqueles dois caras presos lá em cima por tanto tempo! Uma das paredes de gelo mais desafiadoras do mundo impõe ainda mais respeito quando vista de perto! Parei um pouco antes do grupo para gravar um videozinho e aproveitar um pouco o sentimento de insignificância perto dessa natureza avassaladora. Filosófico né? Acho que quando se começa a andar pelas partes altas do planeta, nossa cabeça entra na maior faculdade de filosofia existente, nós mesmos!

Não passamos muito tempo lá porque o caminho de volta para Confluência era bem comprido. Tirei foto com os logos dos patrocinadores, deitei um pouco para descansar e logo veio o Carlos com: “Partimos em 5!” (juro que ele falou isso até o último dia, haha!). Sem a motivação da ida, a volta pareceu mais longa e meu pé voltou a me incomodar. Cheguei ao acampamento e não tive a menor vontade de tomar outro banho como o do dia anterior. Mas ali perto tinha uma fontezinha de água, que vinha do rio e deu para dar uma refrescada. O dia seguinte seria bem longo e fomos dormir cedo mais uma vez. Até tive vontade de ficar acordada para ver a lua, mas o frio ganhou e fiquei bem quentinha dentro do saco de dormir.

No outro dia, já saí da barraca cansada. Como era dia de mudar de acampamento, todos tinham que fechar as marinheiras para as mulas levarem e rearrumar as mochilas. Dentro das marinheiras tinham que ir os isolantes térmicos e o saco de dormir, que dá muito trabalho para guardar! Vimos as mulas serem carregadas e saímos antes delas. Estava muito frio ainda, já que o sol não tinha chego até Confluência. Andei a primeira meia hora tremendo de frio e me animei muito quando senti o sol batendo no meu rosto. Fomos caminhando em um ritmo bem tranquilo e vários grupos passaram como foguetes por nós.

Chegamos em mais ou menos uma hora até o começo da famosa Playa Ancha, um planalto muito comprido e largo, um pesadelo para os andinistas, principalmente se o clima não estiver bom. Paramos em uma grande pedra para comer, beber e descansar antes da parte mais entediante do dia. Voltei a sentir minha bota e fiquei realmente preocupada, mas como não vi muitas opções senão continuar, nem tentei arrumar. Devagar fui ficando para trás e não demorou muito para que eu tivesse que fazer um curativo no lugar que a bota estava pegando. A Tainah me ajudou e continuei andando, mas não estava funcionando. Se não fosse os tênis de um dos meninos da expedição eu teria ficado por ali mesmo. Paramos para almoçar uma hora depois, na Pedra Ibañez, o fim da interminável Playa Ancha, à mais ou menos 4000 metros de altitude.

Dali pra frente nos disseram que era mais sossegado e logo se chegava no Campo Base. HAHAHA! A tal da Playa Chica deu tanto trabalho quanto a Ancha. Um sobe e desce interminável, que acabou separando nosso grupo. Segui mais na frente, achando que assim chegaria logo, ledo engano. Fui conversando com a Tainah, que tinha assumido a função de guia já que o Carlos precisou ir ajudar um dos outros clientes.

Certo tempo depois avistamos de longe a Plaza de Mulas e ainda parecia muito longe. Enfim, passamos por um dos refúgios abandonados e encontramos um dos guias da Aymará, o Pedro, que veio ajudar no último trecho. Subimos a Cuesta Brava (realmente bravíssima, muito inclinada e com pedras soltas) em mais de uma hora. Só para constar, antes da subida o Pedro tinha dito que em vinte minutos já estávamos no acampamento. Já tinham vários clientes passando mal e o resto, como eu a beira de uma crise de estafa. A última meia hora demorou um século para passar e finalmente vi a bandeirinha da Argentina, mostrando que chegamos no acampamento base do Aconcágua!

Comemoramos bastante ali mesmo, até reunir as últimas forças para chegar às barracas da expedição (as expedições da Aymara, que era a nossa empresa local, estavam montadas do oooutrooo lado do acampamento). Dois dos nossos colegas de expedição que andavam mais rápido tinham chego umas duas horas antes e já tinham montado elas. Fomos direto para a barraca refeitório e foi uma delícia tirar aqueles tênis super largos! Antes do jantar nos serviram melancias e bolachinhas e tomei meu primeiro banho de gato da viagem.

Dia seguinte foi de descanso. Também, ninguém estava com disposição nem de sair da barraca, não dava para ser diferente. Na noite anterior um dos nossos companheiros de expedição passou mal e estava com a saturação bem baixa para aquela altitude, aí os médicos o mandaram descer. Torradas, bolachas, chá, leite em pó e ovos nos esperando na mesa às 9h. Depois disso saí para conhecer o resto do acampamento; lá na entrada estavam montadas as barracas da Inka Expeditions, uma das maiores empresas que vende pacotes para o Aconcágua, eles estavam com uma estrutura enorme. Por todo o acampamento tinham barracas de montanhistas que eram adeptos do estilo alpino e, portanto não tinham vinculo com nenhuma das empresas de lá. Mais para cima as barracas da Grajales e a barraquinha em que fui acessar a internet. Já perto da nossa expedição: a galeria de arte mais alta do mundo! Essa galeria tem até uma prainha na frente, com coqueiros, cadeirinhas para tomar sol e uma câmera que transmite imagens de cinco em cinco minutos para um site. Feita e cuidada pelo simpático Miguel, um artista plástico argentino sem residência fixa, a maioria das obras lá dentro são quadros retratando a própria montanha.

Durante meu passeio matinal notei a presença constante de helicópteros amarelinhos. Eles paravam em cima dos inúmeros “banheiros” para retirar os dejetos e leva-los não sei para onde. Os tais banheiros eram caixas de metal com um buraco no meio e um barril em baixo, e era esse barril que os cococópteros levavam, haha!

Fiquei um tempão na prainha tomando sol e descansando e depois chamaram para o almoço. Nota: tomar sol aqui significa estar com no mínimo um fleece e o casaco de plumas embaixo de sol bem tímido. Tentei tomar banho nesse dia, mas o acampamento estava com problemas de água e alguns dos canos tinham congelado. Bom, seis dias sem banho, mais um não ia matar ninguém certo? De tarde o quem ia para a parte alta da montanha foi treinar com as botas duplas em uma encosta do lado das nossas barracas, no caminho que sobe para o primeiro acampamento. Peguei a bota alugada da extinta Koflach, meus crampons e encontrei com o pessoal ali por perto. Os blocos de gelo que íamos usar para testar os crampons tinham derretido e no lugar só tinham alguns penitentes, aí o Carlos resolveu só andar com as botas, subindo e descendo. Até que foi rápido, mas não achei muito simples não, afinal você perde muita mobilidade dos pés. Depois só tivemos que aprender a colocar e tirar os crampons e fim, lição aprendida. No próximo dia íamos subir pelo mesmo lugar de novo para ir deixar alguns mantimentos na Plaza Canadá, à 5000m. O fim do dia foi tranquilo ficamos na barraca refeitório, e foi ótimo para conversar com as pessoas do grupo.

Acordar antes do sol chegar na barraca é cruel! Nesse dia dois meninos que tinham ido só para o trekking e mais um que resolveu que já tinha alcançado seu cume iam descer de volta para Mendoza. Arrumei a mochila mas não estava com a mínima vontade de sair nesse dia, estava nublado e ventando e o sol não deu nem pinta que ia aparecer. Começamos a subir eee começou a nevar. A primeira hora andando foi com floquinhos brancos caindo do céu. Quando olhava para baixo dava para ver todo o acampamento e a Playa Chica branquinhos.

Caminhamos em um ritmo bem tranquilo e levamos mais ou menos 5 horas para chegar a Plaza Canadá. O dia sem sol fez com que a temperatura caísse mais do que imaginávamos e acabei passando frio lá em cima. Deixamos a comida liofilizada em Canadá e depois de um lanchinho rápido descemos correndo a encosta de volta para o acampamento base. Pegamos neve de novo na descida e foi um alívio chegar na barraca quentinha lá embaixo. Tenho que dizer é impressionante como o tempo muda na montanha, quando chegamos o céu estava todo em tons de cinza e a montanha estava todo coberta de nuvens; quase uma hora depois o céu estava super limpo e o Aconcágua parecia pegar fogo com o sol se pondo.

Dia 13/02 foi nosso segundo dia de descanso. Se o roteiro fosse seguido à risca, esse dia seria o dia de ir até o Cerro Bonete, à 5000m, para ajudar no processo de aclimatação, e depois teríamos dois dias consecutivos para descansar antes de subir para o ataque, mas depois de algumas conversar concluímos que era melhor intercalar os dias de descanso. Além de levar em conta o desgaste físico, não tínhamos uma boa previsão de tempo para os dias que se seguiam, e ficar em alta altitude só seria pior.

Consegui tomar banho finalmente e achei ótimo! Desci com minha mãe até a barraca de baños e lá dentro tinham duas cabines, com lugar para pendurar roupa e até para colocar sabonete. Achei um luxo. A água bem quente tirou só a crosta de terra dos primeiros dias do trekking, mas já foi mais que suficiente. Dentro da barraca o saco de roupa suja nem estava tão grande, mas já dava para notar que ele estava lá. Eu e meus pais passamos a manhã na prainha do Miguel, e o dia foi todo sem muitas outras emoções. Nessa noite ainda tivemos a visita de um nordestino que tinha tentado chegar ao cume pela segunda vez, e dessa última tentando pela rota dos Falsos Polacos, outra trilha na montanha. Ele falava muito e era muito engraçado, não sei de que lugar saía tanta energia, ele tinha acabado de chegar do ataque ao cume! Fiquei rindo a noite toda das besteiras que ele falou na hora do jantar, haha!

Mais uma vez tivemos que sair antes do sol nos alcançar, mas não sofri tanto com as extremidades formigando de frio, acho que acostumou, sei lá. Logo chegamos ao famoso refúgio desativado e fiquei muito curiosa para ver como é lá dentro. Durante a expedição ouvimos várias histórias que aconteceram lá dentro e parece que têm muitas fotos, bandeiras e notinhas de antigos montanhistas que visitaram o Sentinela de Pedra. Mas enfim, estava desativado e não é aberto para visitação, então seguimos nosso caminho. Saindo de lá a subida era bem complicadinha, muitas pedras soltas e grandes e uma inclinação razoável. Um passo para cima e três para baixo deslizando junto com as pedras. Eu estava mais a frente, mas conseguia ouvir minha mãe respirando lá embaixo e eu só pensava nisso; tomara que ela consiga, tomara que ela consiga. O Cerro Bonete não é daquelas montanhas lindas, até porque tudo naquela parte dos Andes se resume a pedra em cima de pedra, e eu estava bem pouco motivada para subir. O que ainda me puxava para cima era pensar que seria uma prova de fogo, se não desse ali, provavelmente não daria para continuar montanha acima, e queria demais conhecer um pouco mais dos meus limites.

Nesse dia tive que sair de bota dupla, já que minhas bolhas ainda estavam borbulhando e era impossível calçar a porcaria da bota de trekking. Resultado: além da mochila, carreguei mais alguns quilos de bota morro acima. Quando paramos por um tempo maior, passou por nós um cara muito rápido e em 20 minutos ele tinha chego na base das pedras do Bonete, passando pelos zigue-zagues que depois, eu demorei quase duas horas para subir! Aliás nesses zigue-zagues minha energia estava low profile e comecei a cantar e contar meus passos para distrair. Até que funcionou bem! Eram mais ou menos 200 passos e uma paradinha curta. Quando chegamos às pedras já dava para ter uma visão de grande parte da cordilheira para o outro lado. É realmente incrível a extensão dos Andes!

Paramos para descansar do lado de um bloco de penitentes e logo voltamos a subir. Parecia que já estávamos super perto, doce ilusão! Andamos mais de uma hora ainda em uns lugares que exigiam certa concentração (juro que nessas horas me sinto em filmes de ação) e finalmente chegamos no cume do Cerro Bonete! Uhul, parte um do desafio estava vencida! Estava tão exaurida que não pensava nem em tirar foto, nem em comer, nem em nada. Meus pais chegaram um pouco depois e comemoramos juntos em silêncio. A perspectiva de voltar tudo aquilo ainda não era das mais animadoras. Depois de comer um pouco e recuperar um pouco das forças, tiramos fotos individuais e do grupo todo e começamos o caminho de volta. Enquanto estávamos lá em cima, o tempo virou, e o vento que chegou esfriou completamente o tempo.

Não digo que descer é mais fácil, mas com certeza é mais rápido. De bota dupla (que tem a sola mais lisa do que as outras botas) é ainda mais fácil deslizar sobre as pedras, e se não fosse o tremendo esforço muscular para segurar o corpo em pé, em uma hora eu chegava lá embaixo. Mas a fadiga de todos os músculos inferiores falou mais alto e eu caí muitas vezes. Sua cabeça já está lá no acampamento, e você esquece que seu corpo ainda tem um grande caminho para percorrer, as respostas ficam mais lentas e o perigo de um acidente sério aumenta muito. Cheguei no fim do zigue-zague e desabei a chorar. Acho que foi de estafa, porque na hora não achei nenhuma explicação plausível. Meus pais chegaram onde eu estava e choramos juntos, haha, quero dizer, não tenho certeza se meu pai chorou literalmente, mas... Foi um momento bem intenso, uma cena a recordar.

Desci o resto do caminho até o refúgio bem devagarzinho com medo de cair de novo. Minha mente já estava meio nebulosa e foquei na minha barraca no acampamento, faltava pouco! Fui conversando com a Tainah e acabou passando rápido. Encontramos com o Capy assim que chegamos, fiquei feliz em ver ele lá, já que em Mendoza ele não nos deu certeza que nos acompanharia. Chegando às barracas só tive forças para comer e dormir.

Como eu AMO não ter hora para levantar! Só acordei com o calorzinho do sol batendo na barraca e só saí dela quando meu sleeping bag para -40 graus, começou a me sufocar lá dentro. Comi o que tinha sobrado do café da manhã e fui para a prainha. Nesse dia o acampamento estava cheio de gente andando para lá e para cá, a maioria desmontando acampamento e indo cumprimentar os colegas de expedição. Tinha também uma equipe de russos, se não me engano era o pessoal do Seven Summits, que de vez em quando parava na frente da câmera do Miguel e fazia pose.

Todos os dias o Carlos e o Capy checavam as previsões do tempo para os próximos dias e a última que recebemos previa as janelas de bom tempo para os dias 20 e 21, o que atrasaria um dia o nosso programa, mas sem maiores problemas. Depois do almoço acessei a internet para divulgar as possíveis datas de cume e consegui até postar uma foto no Facebook. E essa variação climática na montanha é coisa de doido mesmo, quando entramos no Parque Provincial, uma semana antes, os dias estavam lindos, sem vento e com céu azul! No dia em que chegamos a Plaza de Mulas, todos os carregadores estavam em Cólera descansando do bem sucedido ataque ao cume, feito em um dia mais que perfeito, com vento de 5km/h (nos próximos dias esse vento estaria beirando os 40...).

A tarde foi toda consumida pelas arrumações para os próximos dias. Passaríamos entre cinco e oito dias nos campos altos, e nada podia ficar para trás. A comida já estava toda no Campo 1, então na mochila ia só sleeping bag, os dois isolantes térmicos, os crampons, casaco de pena, snacks para comer durante as caminhadas e anorak. Como três dos oitos clientes que iam subir, desistiram, o peso que os carregadores carregariam referente a essas pessoas ficou para a gente, e cada um levou bem pouca coisa nas costas no primeiro dia. Levamos para a barraca refeitório todo o equipamento para o Carlos revisar e depois voltamos para as barracas para já deixar as marinheiras organizadas com o que ia ficar em Plaza de Mulas. Com tudo mais ou menos organizado, fui tomar banho de novo. Dessa vez foi pior que da primeira, a água não estava saindo direito, aí quando mexi nos registros a água esfriou de vez. Como estava um solzinho lá fora, terminei de me lavar mesmo com a água fria, me vesti correndo e fui tomar sol na frente das barracas.

A janta não foi muito tranquila, estavam todos bem ansiosos. Nessa altura, nosso grupo de quinze pessoas, estava reduzido a nove; eu, meu pai, o Celestino, o German, o Ivan e o Carlos, fechávamos o grupo que ia subir, a Tainah e a Silvia que voltariam para Mendoza pela manhã, e minha mãe que ia ficar no campo base até a gente voltar. Não faltaram perguntas sobre o que estava por vir, sobre a logística lá de cima, a divisão de barracas, o horário de saída para o dia de cume, o horário máximo para estar lá em cima, as possíveis complicações. Até pareceu que nunca conversamos sobre essas coisas! Mas a ansiedade reinava naquela hora e cada um queria ter certeza das possibilidades e impossibilidades para os próximos dias.

Até que dormi bem, considerando o turbilhão de coisas passando pela minha cabeça. Acordei cedo, fechei a marinheira e levei-a lá para fora. Saí com o casaco de pena e coloquei o que ainda ia usar nos bolsos. Carreguei a mochila para a barraca refeitório e sentei para tomar café. Comi o máximo que pude, lembrando de ter ouvido de muitas pessoas que é complicado se alimentar bem depois de certa altitude.

Me despedi das duas que iam descer e fiquei conversando com a minha mãe até a hora de sair. Ainda não conseguia acreditar que minha mãe ia ficar lá sozinha todo esse tempo esperando a gente! Mãe é simplesmente... mãe né? Não sei de onde sai tanto amor e tanta força! Sabendo que ela não se adapta muito bem à altitude, preferi não pensar em problemas que poderiam acontecer, sabia que ela estaria muito bem assistida por todos da Aymará enquanto eu e meu pai estivéssemos longe.

Tiramos fotos de todos antes de sair e pé na trilha! Mais uma vez subimos pelas pedrinhas rolantes daquela parte da montanha. Paramos nas mesmas pedras que da outra vez para descansar e comer um pouco. Dessa vez o ritmo estava um pouco mais forte, a cada hora um dos guias, o Carlos ou o Capy assumia a frente e impunha um ritmo. Quem ia fechando a fila era o Berne, um guia/carregador que vinha nos acompanhando desde a primeira caminhada de aclimatação, quando fomos deixar a comida em Canadá. Todos os nossos guias eram extremamente simpáticos e profissionais.

Levamos mais ou menos quatro horas para chegar ao primeiro acampamento, uma hora a menos do que levamos da primeira vez. As barracas já estavam montadas e só precisamos abrir os isolantes e o sleeping lá dentro quando chegamos. O Parque exigia que cada montanhista se responsabilizasse por seus dejetos, não sendo permitido deixar nada na montanha. No entanto, todas as expedições da Aymará tinham as barracas banheiro (e dentro delas jornais e um saco preto que era levado para baixo pelos carregadores com tudo que “ficasse”), o que facilitou muuuuito a nossa vida. Apesar de eu ter tido meus problemas com essa barraca, era como um banheiro normal e com esse esquema tivemos uma preocupação a menos lá em cima.

Diferente da primeira visita a Plaza Canadá, dessa vez o tempo estava limpo e deu até para conversar um pouco lá fora. Eu e meu pai voltamos para a barraca e fomos experimentar a famosa comida liofilizada e caraca, que coisa ruim! O sol começou a se esconder e o frio chegou rapidinho. Li um pouco do livro que levei, sobre uma jornalista iraniana, juntei um pouco de coragem para escovar os dentes e fui dormir. Dormi bem a noite inteira, só acordei de madrugada com muita vontade de fazer xixi, mas como ainda estava frio demais, voltei a dormir. Aliás, acabei de me dar conta, foi minha primeira noite à 5000m! O acampamento mais alto do Kili era à 4700m! Uhul, primeiro recorde de altitude da viagem! :D

Assim que o céu clareou um pouco levantei e fui lá fora. Dava para ver o acampamento base lá em baixo e o sol iluminando as montanhas mais altas. Comi pouco no café da manhã, em parte porque já tinha começado a perder o apetite, mas também porque o pacotinho escrito breakfest de comida liofilizada é tristemente deplorável.

No dia anterior tinha aprendido a desmontar barracas com o Capy e hoje ajudamos o pessoal a fazer isso. O único problema é que não dá para manusear as peças da barraca com luvas e a temperatura ainda não estava das mais agradáveis.

Enfim, saímos perto de 10h e começamos a caminhar em direção ao segundo acampamento, Nido de Condores, a 5400m. Pegamos muito vento durante toda a subida, e na primeira parada que fizemos eu já estava morrendo de frio e ofegando. O sol dava o ar da graça só de vez em quando por causa da grande quantidade de nuvens. Atrás de nós vinha um grupo grande de russos, acho que os mesmos que estavam em Plaza de Mulas outro dia, vinham em um ritmo bem tranquilo. Voltei a minha brincadeira imbecil de ficar contando os passos em línguas diferentes e até que isso ajudou a passar o tempo e esquecer que o vento estava quase me puxando montanha a baixo. A cada parada que a gente fazia, eu enfiava duas barrinhas de cereais e algumas balas para dentro e pensava: que inveja de quem consegue se alimentar bem aqui em cima (e olha, que nem chegamos aos 6000m ainda).

A última parada foi logo depois de um pouco usado acampamento. Enquanto a gente descansava, passaram por nós um grupo pequeno de médicos, que iam passar as próximas semanas em Nido, de plantão. Pelo que fiquei sabendo, as equipes médicas em todo o parque se revezam em cada acampamento de tempos em tempos. Eles pararam um pouco para conversar com o Capy, o Berne e o Carlos e os ouvimos falando sobre a previsão do tempo para os próximos dias. Segundo a informação que eles tinham, a janela de bom tempo seria nos dias 21 e 22, o que nos faria passar dois ou três dias parados no acampamento 3!

Apesar de terem tido poucos dias de tempo fechado desde que entramos no Parque Provincial, é impossível prever a velocidade do vento nas partes mais altas da montanha e mesmo com dias lindos e ensolarados, o vento lá em cima pode estar a quase 100km/h. Sendo assim ficamos à mercê da boa vontade da montanha para decidir o dia de ataque ao cume. Grande parte dos montanhistas que não chega ao cume do Aconcágua, não chega por causa de problemas com vento e/ou neve; é uma montanha com variações climáticas extremamente complicadas.

Chegamos à Nido de Condores mais ou menos seis horas depois de sair de Canadá. Larguei tudo na barraca e saí para tirar umas fotos. A vista lá em cima é impressionante! Estamos na linha das nuvens e é simplesmente fantástico poder ver grandes montanhas da Cordilheira dos Andes dessa perspectiva. Localizei o Bonete, que dali parecia um montinho de terra e o Cume Brasil, que fica ao norte do acampamento base. Voltei para a barraca para me trocar e tomar o banho de paninhos umedecidos de todos os dias e saí de novo para tirar fotos com meu pai. Me arrependi profundamente de não ter levado outro sapato além das botas duplas lá para cima! Toda vez que tinha que sair da barraca, para qualquer coisa que fosse, eu gastava cinco minutos congelantes para conseguir colocar e amarrar a bota. Nota mental: SEMPRE levar meu Crocs para alta montanha!

Mais tarde os meninos saíram para pegar neve para derreter e logo tinha água quente para cozinhar e se esquentar. O plano para o próximo dia estava bem incerto: se a noite fosse tranquila e estivesse um tempo bom de manhã, sairíamos para Cólera, nosso último acampamento, para de lá atacar o cume no dia 19, que algumas previsões diziam que teria bom tempo; caso contrário, passaríamos o dia onde estávamos e esse mesmo plano seria repetido para o dia seguinte. Sendo assim, comi minha janta com muita pouca vontade e fui dormir.

Acordei muitas vezes de noite com um vento fortíssimo balançando a barraca. Quando acordei o Capy falou que chegou a mais ou menos 80km/h! Coloquei a cabeça para fora da barraca e vi que nosso dia seria de descanso, o famoso cogumelo (um amontoado de nuvens em forma espiralada) estava pairando sobre a maior montanha das Américas, e apenas uns poucos grupos resolveram ir até Cólera.

Me preparei psicologicamente para o longo dia que estava por vir. O tempo não estava tão feio, mas o vento castigava qualquer coisa em posição vertical e né... à 5400m de altitude, a temperatura não te faz ficar com vontade de apreciar a paisagem. Passei a manhã em um eterno dorme e acorda dentro do meu sleeping bag e levantei só na hora de almoçar. Até que comi bastante, mas ô comidinha ruim! Terminei de ler meu livro logo depois disso e voltei a dormir. Dormi duas horas seguidas sem acordar e quando olhei o relógio, ainda eram quatro da tarde. Liguei pelo rádio para minha mãe (como vínhamos fazendo todos os dias, às 16h e às 20h) e voltei para a barraca. Escrevi um pouco no meu diário, mas como acontece em todas as expedições, nunca consigo escrever algo realmente relevante. Em uma hora teríamos o tão falado por do sol em Nido. Não estava tudo branquinho como nas fotos que eu vi, mas mesmo assim foi um espetáculo! Já estava bem frio lá fora, e só saí para tirar umas fotos. Meu pai estava em uma animação que só vendo, cantando marchinha de Carnaval e tudo! Tirei a filmadora do bolso para filmar e não consegui filmar nada, o frio congelou o sistema. Bom, sendo assim, fiquei dentro da barraca bem quentinha olhando o sol sumir no horizonte, em uma das cenas mais poéticas da minha vida.

Essa noite foi bem menos turbulenta que a última e acordei de manhã com mais esperança. Os meninos ligaram lá para baixo para saber da previsão e ouviram que o dia seguinte, dia 20/02, seria um dia razoavelmente bom para tentar cume. Sendo assim, tocamos arriba! Tomar café rapidinho (sem muita coisa para comer, não foi difícil), arrumar a mochila e desmontar as barracas. Em uma hora partimos rumo ao nosso último acampamento!

Saímos de Nido às 11:30 e assim que chegamos na trilha emparelhamos com um grupo russo enorme na nossa frente. Dessa vez não era o mesmo grupo que encontrei lá embaixo e eles estavam mantendo um ritmo incrivelmente lento. Normalmente caminhar devagar não me incomoda, mas neste dia em especial, eu acordei com muito frio e até essa hora ainda não tinha conseguido me esquentar, então queria aumentar o ritmo um pouco para ver meus pés paravam de formigar. Além disso, super estava pensando em chegar o mais rápido possível em Cólera para descansar. Mas, como fôlego lá em cima é para poucos, ficamos por um bom tempo andando atrás desse grupo. Quase uma hora depois, ultrapassamos eles pela direita e fiquei uma meia hora ofegando por causa do esforço.

Não sabia se ficava feliz ou triste cada vez que o Carlos anunciava que íamos parar. Minhas pernas e minhas costas pediam descanso, mas ao mesmo tempo não queria sentir frio de novo e ficar parada muito tempo não ia ser legal. Não consegui comer muito durante o trajeto todo e meio confusa com a falta de oxigênio nem me dei conta que tinha chego passado da altitude do Kilimanjaro! 5895m! Tínhamos parado em Berlim, outro acampamento na mesma altitude de Cólera, mas bem mais sujo. Comi três barrinhas de cereais e comecei a sentir uma pontada de dor nas costas, até agora não sei se era por causa de altitude ou por causa da mochila, mas me tirou completamente as forças. Nessa hora ouvi o Carlos gritando: “Parabéns! Chegamos à 6000m!”. Tirei energia do pâncreas e continuei andando. Até que não foi um dia longo, em 4 horas chegamos ao nosso objetivo, mas acho que a altitude começou a pesar.

Nossas barracas estavam montadas do lado da Cappana Elena, que foi construída pela família de uma moça que morreu lá. Meio mórbido né? Mas é legal, é uma estrutura que serve para emergências e tudo.

Depois de deixar minha mochila na barraca, senti uma nova energia tomar conta de mim e esqueci todos os incômodos. Fui de um lado ao outro do acampamento para conhecer e depois parei para tirar fotos e falar com a minha mãe. Foi ótimo esse novo estímulo, me senti muito motivada para dar o máximo de mim no próximo dia.

Chegamos perto das 17h e logo já era hora de jantar e ir dormir, tentar descansar o máximo possível antes do grande dia. Antes de jantar, desde o primeiro dia em Plaza Canadá, cada um ganhava um prato de sopa de aspargos, e as primeiras vezes que comi, estava ótima. Porém, depois de três dias comendo isso, só o cheiro do saquinho de sopa aberta já me causava um revertério no estômago. Meu pai adorou e até falou que vai adotar essa sopinha para as próximas viagens! Não consegui fazer nem a comida liofilizada porque o cheiro também me fez mal e continuei na base de barras energéticas e balas. Deixei minha mochila pronta, com o mínimo de coisas possíveis e coloquei o conjunto limpo de roupas. Dormi até que bem demais para a altitude em que estávamos e quando acordei na madrugada do dia seguinte, a vontade de sair da barraca era igual à temperatura: negativa.

Tinha separado algumas fotos, cartões e enfeitinhos para levar comigo, mas na correria e no escuro da manhã não achei quase nada. Acordamos às três horas da manhã e o plano era sair às cinco. Pegamos mais água quente para encher as garrafas e tomar café. Comi pouquíssimo e tomei duas canecas de água quente. Coloquei a calça de fleece, as duas camadas médias de cima, a calça de Gore-Tex e meu casaco de penas. Mochila pronta, roupas colocadas, só faltava colocar a bota dupla e as mittens. Fiquei deitada até cinco minutos antes de sair e acabei me afobando muito para sair da barraca; coloquei os esquentadores de mãos dentro das luvas, enfiei o cartão que a Andrea me deu no Kilimanjaro no bolso e amarrei as botas.

Saí lá fora com tanta roupa e tão agitada que não senti nada de frio, apesar dos 10º negativos que estava fazendo. Coloquei meus Googles para proteger os olhos do vento e saí catando cavaco atrás do pessoal.

A saída de Cólera é razoavelmente inclinada, mas fomos devagar e deu para acompanhar bem o ritmo. Tinham uns cinco grupos saindo naquela hora, e enfrentamos um pouco de congestionamento (nada que atrapalhasse). Meia hora depois da saída, o Ivan teve algum problema e resolveu desistir. Não sei bem o que aconteceu, ele estava aparentemente muito bem e muito forte, mas, resolveu descer.

Comecei a sentir aquela pontada nas costas muito forte e por mais que ajustasse a mochila para todos os lados, não resolvia nada. Continuar daquele jeito seria bem complicado, e pedi ajuda para o Carlos. Ele perguntou se dava para seguir até Piedras Blancas, nosso primeiro ponto de parada e respondi que sim. Andei mais um pouco e tive que parar de novo. Passei a maioria das coisas para a mochila dele e continuei. Uma hora e pouco depois chegamos nesse primeiro ponto de descanso e o sol estava nascendo! Sempre ligo o sol nascendo à um recomeçar, e foi isso mesmo que aconteceu. O Carlos achou melhor eu deixar minha mochila lá mesmo, sem nada dentro e com algumas pedras em cima para pegar na volta. Eu estaria mais leve e com menos dor nas costas, minha autoconfiança aumentou muito!

Subimos apenas 100m desde que saímos do acampamento, e ainda tínhamos quase 800m pela frente. Achei a parte entre Piedras Blancas e Independência bem cansativa, alguns lugares com bastante neve e lugares escorregadios. 100% do tempo eu ia pensando qual seria a hora que o meu bom senso me mandaria voltar. Eu ainda estava bem, sem dores de cabeça e sentindo um frio suportável, mas meu corpo estava cansado, muito cansado. Paramos mais uma vez antes de chegar à Independência (6400m), e me espantei em ver que já tinham se passado quase duas horas!

Perto das 9h da manhã paramos para comer e hidratar no acampamento pouco usado à 6400m. Era o horário previsto para chegar ali e o próximo desafio seria uma encosta comprida de neve, que nos levaria até o Portezuelo del Viento, em que, como o próprio nome diz, venta muuuuuuito! Parada ali tentando abrir um pacotinho de alfajor com três luvas, eu me perguntava mais uma vez o que eu estava fazendo ali e qual seria o propósito de tudo aquilo. Com a porcaria da hipóxia fazendo muito efeito, não cheguei a uma conclusão clara, mas tinha certeza que estava buscando um dos meus grandes sonhos, e independente de qualquer outra coisa, estar ali bastava.

Coloquei os crampons com ajuda do Carlos e do Berne e saí contornando a cabinha abandonada de Independência rumo à encosta nevada. Que loucura né? Me senti de novo em um filme de aventura+ação. Este último acampamento é o ponto de desistência de muitas pessoas e fiquei feliz em ver que todo o nosso grupo vinha bem. Queria ter conversado com meu pai nessa hora, para a gente considerar os próximos passos juntos, mas não deu. Demorei meia hora para chegar em cima da encosta e começar a sentir o (nada) agradável ventinho da Travessia (Portezuelo Del Viento). Esse vento, sopra pelo Gran Acarreo, que estava bem abaixo de nós, e fez a temperatura parecer ainda mais baixa. Na ultima parada passamos mais tempo sentados, e foi suficiente para sentir meus dedos dos pés e das mãos esfriarem. Comecei a sentir dor de frio e passei a mexer incansavelmente meus pés dentro das botas.

A Travessia foi dura. Andei atrás do Carlos e do German durante todo o tempo enquanto meu pai e o Celestino vinham mais atrás com o Capy e o Berne. O vento parecia um chicote na pequena parte exposta do meu rosto e voltei a contar meus passos. Passei a coordenar melhor os passos com a respiração e assim voltei a acompanhar os meninos. No meio do caminho fiquei com muita vontade de fazer xixi, mas sem muitas opções de lugar, continuei assim mesmo.

No finzinho da Travessia já dava para ver as Cuevas e a Canaleta, os próximos objetivos e a vontade de chegar logo em qualquer um dos dois lugares só atrapalhou minha vida. Aumentava o ritmo para tentar ir mais rápido e 10 segundos depois tinha que parar para recuperar o fôlego por dois minutos. Nós três nos distanciamos bastante dos outros quatro e, mais tarde conversando por rádio ficamos sabendo que o Celestino tinha descido.

Duas longas horas depois de ter começado a caminhas pelo Portezuelo Del Viento, eu, o Carlos e o German chegamos nas Cuevas, à 6650m. Ah, que ótimo que foi sentar um pouco e esquecer o peso das botas duplas e dos crampons! Só lembrei que precisava ir ao banheiro uns dez minutos depois. Comi mais uma barrinha e bebi um pouco de água. Além de já ser difícil beber muita água em alta montanha, ainda tem o agravante que a água é de degelo e tem um gosto bem diferente, que depois de um tempo fica meio enjoativo. Sem mais reclamações, depois de conversar com um guia amigo do Carlos que tinha subido pelo Glaciar dos Polacos, começamos a subir a famosa Canaleta. Olhando para trás dava para ver uma grande fila subindo pela Travessia. Esperava que meu pai estivesse ali e estivesse bem! Lá embaixo dava para ver alguma coisa de Nido e uma infinidade de montanhas nos rodeando.

A Canaleta é um grande corredor inclinado de pedra, neve e gelo; um lugar em que acontecem muitos acidentes por simples falta de atenção. Até vínhamos brincando durante a viagem, que se alguém escorregasse na Canaleta chegava rapidinho de volta ao Campo Base. Começamos a subir por ela devagarzinho: dez passos e uma parada, dez passos e uma parada. Apesar de mais inclinada, achei essa passagem mais tranquila do que a chegada às Cuevas. Levamos aproximadamente uma hora e vinte minutos para chegar ao fim dela. A transição da Canaleta para o “Ombro” tinha muitas pedras e pelo menos eu achei, que não tinha um caminho muito bem marcado. O esforço de levantar a perna e se alçar para cima nas pedras maiores, me fazia respirar fundo por pelo menos um minuto depois. Do nosso lado esquerdo vinham dois escaladores subindo pela neve, com crampons e piolets, e vinham bem mais rápido do que nós. Impressionante ver do que o corpo humano é capaz quando bem condicionado!

No Ombro, estávamos à poucos metros verticais do cume, mas ainda tínhamos pelo menos uma hora para chegar de fato. O céu estava revoltoso (apesar de o vento estar suportável) e as nuvens passavam por cima das nossas cabeças em uma velocidade absurda. Olhando para trásm de vez em quando dava para enxergar o Cume Sul do Aconcágua, e dei sorte de ter olhado em um momento que ele estava totalmente descoberto.

Minha respiração desregulou mais uma vez e cada vez mais eu me sentia tonta. Comecei em um mantra de quatro passos e uma parada, mas no meio do caminho tive que sentar. Senti que estava chegando perto do meu limite emocional (porque o físico já tinha ido embora há muito tempo, haha), mas perto não quer dizer que chegou, então foquei no meu grande objetivo, que afinal estava tão perto e finquei os crampons na neve com a certeza de que ia dar certo. Os níveis de adrenalina no meu corpo estavam bem altos e minha cabeça quase explodiu de alegria quando eu vi que chegamos nas últimas “pedrinhas” antes do cume.

15h10’, dia 20 de Fevereiro de 2012, pisei pela primeira vez no topo da montanha mais alta das Américas, a maior montanha do mundo fora da Ásia, o colosso de pedra que vinha tomando conta dos meus pensamentos já havia algum tempo. Quantas vezes durante a expedição me peguei pensando nesse momento? Ah são tantas emoções, essa viagem realmente estava sendo incrível! Desde o começo vinha pensando sobre o cume, como seria quando eu chegasse e principalmente, SE eu ia chegar, e agora eu estava lá! Acima de nós, apenas algumas nuvens que passavam correndo, ao nosso redor a imensidão da Cordilheira dos Andes e dentro de cada um uma sensação única e inexplicável.

Tiramos muitas fotos, gravei um vídeo e logo meu pai chegou. Comemoramos juntos e tiramos mais fotos. Pedimos para ligarem para Plaza de Mulas, para a gente avisar minha mãe. A ligação estava horrível, mas vi que ela estava comemorando lá embaixo. De verdade, não consigo imaginar um incentivo maior para correr atrás do que eu quero, do que ter a mãe que eu tenho. Enquanto estávamos lá em cima, ela ficou no acampamento base sozinha esperando por nós. Todos os dias nós pensamos nela e pelo rádio ficávamos sabendo se estava tudo bem lá por baixo e contávamos as novidades. Saber que tem uma pessoa torcendo e mandando boas energias para você é tudo nesse tipo de viagem.

Ficamos no cume mais ou menos 50 minutos e o tempo começou a virar. Antes de o grupo russo chegar começamos a descer. A neve começou a cair e as nuvens pareciam pincéis pintando um quadro na nossa frente em uma velocidade impressionante. Pouco antes de chegar no começo da Canaleta, já não sei via mais o Cume Sul e realmente tínhamos chego lá em cima na hora certa.

Já estava me sentindo bem mais segura com os crampons e vinha descendo bem. O Capy ia na frente, segurando um pouco o ritmo depois de muitas paradas chegamos de volta nas Cuevas( os meninos todos tinham deixado as mochilas lá e carregado para cima apenas o necessário). Passamos um bom tempo sentados ali, por pedido do pessoal. A energia e a adrenalina do cume ainda estavam correndo soltas no meu corpo e eu só queria chegar de volta à Cólera para descansar direito. Não aguentava mais ficar ali sentada, mas tampouco tinha outra opção. Finalmente resolvemos continuar e a neve tinha já coberto toda a trilha marcada. Ainda estávamos em cima das nuvens e no caminho até Independência, o sol começou a se por. Chegando de volta à 6400, resolvemos tirar os crampons, já que supostamente a quantidade de gelo tinha diminuído. Não deu muito certo porque a nevasca no fim da tarde tinha coberto tudo com neve fofa e gelo, ou seja, depois de uns 5 tombos, paramos de novo para colocar os crampons.

Não muito tempo depois, reencontrei minha mochila e continuamos a descer até Cólera. Chegamos no acampamento quase às 20h, com um restinho de sol no horizonte. O céu estava esplendorosamente bonito; além da sombra do Aconcágua se projetando sobre a imensidão ao nosso redor, as nuvens estavam em vários tons de vermelho e laranja, que refletiam na neve embaixo dos nossos pés. Ah como essa noite foi boa! A entrada na barraca ainda foi sofrida, tirar as botas os crampons, trocar de roupa... Mas depois o sleeping bag paraceu um colchão de plumas, e em cinco minutos dormi um dos sonos mais profundos da viagem toda.

Querer é poder? Às vezes acredito que sim. Me impressiona muito a força que existe dentro de cada pessoa. É tão sem precedentes, tão instintiva e tão pouco acessível... Será que apenas em situações extremas é que conseguimos estar em contato com ela? Talvez por isso algumas pessoas tenham necessidade de sair atrás do impossível, de desafiar a própria existência, buscando uma razão para toda essa vida.

Com minha pequena experiência em montanhas, já notei que a sensação gratificante de estar no cume, na verdade acontece quando você chega de volta em casa. Estar lá, na cima mais alta das Américas é impactante e já exaurida emocionalmente e fisicamente, é uma sensação realmente de “Eu consegui!!!”. E então você lembra de tudo que passou para chegar lá, de todas as pessoas que passaram pelo seu caminho e te ajudaram, ou simplesmente te cumprimentaram durante a trilha, de todos os seus amigos e família e da força incrível que saiu de dentro de você e te levou até essa remota parte do nosso planeta. Como da outra vez, me dei conta que o cume de cada um é diferente, apesar de ser o mesmo ponto à 6962m, na Cordilheira dos Andes, cada aventureiro que chegou ali, veio tracionado pelos seus próprios sonhos e ideais.

Foi duro acordar e lembrar o grande caminho até Plaza de Mulas, mas com o “good feeling” do dia anterior, arrumar tudo foi mais fácil. Foram mais ou menos 6h de descida com algumas paradas, escorregadas e claro com direito a dor de barriga pós-tensão. Ver o acampamento lá embaixo se aproximando foi tão boooom!

Minha mãe estava nos esperando com o casaquinho azul dela. Atravessei o riozinho e finalmente estava de volta ao acampamento base, 5 dias depois de ter saído do seu conforto. Ver minha mãe foi emocionante, tão bonitinha! Na barraca tinham Cocas e PIZZAAAA! Comemos melancia enquanto abaixava a adrenalina toda e depois comemos a pizza deliciosa. Acho que se eu comesse essa pizza agora não ia estar nem de longe tão boa quanto estava lá, depois de três dias na base de barrinhas. Fui para minha barraca me limpar, trocar de roupa e deixar as coisas mais ou menos prontas para o dia seguinte e sai para tirar as últimas fotos no acampamento. Tirei foto até com o Miguel! A janta foi cedo e animada, no outro dia já estaríamos de volta ao hotel!

7h, time to wake up! Marinheiras fechadas e já em cima das mulas, mochilas arrumadas e café tomado, 9h nos despedimos do lugar que foi nossa casa nos últimos dez dias. Não tínhamos pressa nem força para chegar a lugar algum rápido, então fomos em um ritmo bem tranquilo até a Pedra Ibañez, onde paramos para almoçar. As conversar estavam sendo animadas e divertidas, falando sobre qual seriam as próximas viagens, sobre as respectivas famílias e claro tirando sarro de todo mundo.

Na Playa Ancha cada um assumiu seu ritmo e nos distanciamos um pouco. Meu pai vinha cantando atrás de mim, e com o meu limitado bom humor disparei lá na frente para ficar no silêncio. No fim isso acabou me custando uma hora a mais de caminhada depois, já que minhas bolhas voltaram com força total. A parada em Confluência foi boa e ruim; as frutas estavam deliciosas e deu para tirar um pouco do pó na bica ali perto, maaaas, ter parado esfriou meu corpo e voltar a andar de novo com os pés naquele estado foi duro. Coloquei o Croc’s no pé que estava mais machucado e fui com o tênis no outro. O trajeto de 2’30’’ demorou mais de 3, e chegamos na entrada do parque já escurecendo. Meu humor estava lá no chão e minha estrutura emocional tinha me deixado na mão mais uma vez.

Comemoramos todos juntos ali mesmo e entramos na van para volta até Puente Del Inca, onde nossas coisas estariam nos esperando. Chegando lá, arrumamos um lanche para comer e o pessoal tomou uma cerveja. Tinha mentalizado dormir na van de volta para Mendoza, mas não rolou. Sabe aquele estado de cansaço que te deixa extremamente desconfortável? Pois é. Chegamos quase meia noite no hotel e só quando entramos lá que notamos que estávamos imundos! Voltamos ao mundo civilizado trazendo a essência da montanha na pele, na roupa, nas malas, haha! Pegamos as coisas que deixamos na recepção e fomos para os quartos, combinando de nos encontrar nos próximos dias. Bom, três pessoas em um quarto em uma hora como essa não foi muito legal. Já que nenhum dos dois se decidia eu entrei logo no banho, e que água PRETA que saiu! Desliguei o chuveiro e quando passei a toalha no meu braço, a toalha ficou marrom! Liguei de novo e tomei outro banho, mas tinha a impressão que só ia estar limpa mesmo uns dois dias depois, rs. Meu estomago começou a doer e não dormi tão bem quanto esperava, mas mesmo assim, dormir em uma cama de verdade depois de quase vinte dias foi sensacional!

Os últimos dias em Mendoza foram para curtir a simpática cidade, visitar as vinícolas, passear pela enorme feira de vinho e voltar a comer direito. No começo da viagem fiquei sabendo que passei no vestibular da Unicamp, e em menos de uma semana estaria voltando para o Brasil para começar uma nova fase da minha vida.

Mais uma viagem incrível na minha vida, com muitos momentos para recordar e muitas novas razões para sorrir. Obrigada Aconcágua, obrigada Grade 6, obrigada Aymará, obrigada Carlos, Capy e Berne, obrigada companheiros de viagem, obrigada amigos, obrigada novos amigos, obrigada mãe e pai, minha segunda expedição de alta montanha foi melhor do que eu poderia imaginar! E mais um sincero agradecimento aos parceiros que vêm apoiando meu sonho; obrigada equipe Pró-Ativa, Deuter, Sea to Summit, Lorpen, Princeton Tec, obrigada Escola Monteiro Lobato! Cada dia passado foi um desafio vencido e uma lição aprendida. Agora bora treinar que em Agosto tem mais!

“Try to believe that if you dream, it is more than half way to get what you want. Give a chance to life, get closer to the stars!”

Obrigado a todos e aguardo comentários
Ayesha Zangaro

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