Após cerca de três meses na Índia, um país onde qualquer pedalada, por mais curta que fosse, nunca saía como o planejado, eu estava ansioso para deixar aquele território. Não importava para onde fosse, o importante era apenas sair de lá. E em meu roteiro, o Paquistão era o próximo destino.
O Paquistão é um daqueles países cujas informações reais você não conhece até entrar nele. Mesmo na Índia, a poucos quilômetros da única fronteira entre os dois países, as poucas informações que eu conseguia eram tendenciosas, parciais e não ajudavam muito. Tudo o que eu ouvia era sobre catástrofes, mortes, atentados, homens bomba, sobre como os paquistaneses eram perigosos, sobre o Talibã, a al Qaeda, sequestros e mais mortes. Se eu formasse uma imagem com tudo o que eu ouvia, o resultado seria bem parecido com o inferno, só que decorado com algumas montanhas ao norte.
Àquela altura da minha viagem, eu já não me deixava influenciar tanto pelo o que eu escutava, exceto de algumas fontes mais confiáveis, como viajantes que haviam acabado de sair do país. Quase todos os países têm uma imagem péssima de seus vizinhos e a Índia não era exceção. No Brasil havia escutado o mesmo sobre o Paraguai. No Chile sobre a Bolívia. Na Bolívia sobre o Peru. Na Malásia, a Tailândia era o perigo. Na Tailândia o Camboja era infernal. E por aí ia. Segundo essas referências, cruzar a fronteira era quase um salto para a morte. No entanto, a realidade não era bem assim.
Por isso, ponderava muito sobre o que escutava, mas nem sempre isso era fácil de se fazer. Poucos dias antes de entrar no Paquistão, a revista Newsweek publicou em sua capa uma foto de paquistaneses enfurecidos, enquanto a manchete dizia que o país mais perigoso do mundo não era mais o Iraque e sim o Paquistão. Ótimas notícias para quem gosta de péssimas notícias! Mesmo ciente das influências que pairavam sobre a revista norte americana, aquilo mostrava que a situação do país não era das melhores, e pior, estava se degradando.
Como já tinha meu visto em mãos, resolvi não pensar muito e entrei no Paquistão. Cruzei a fronteira e logo de cara gostei do país. Na cidade de Lahore, onde fiz minha primeira parada e onde uma onda de protestos violentos atraia centenas de jornalistas do mundo todo, descobri um povo muito simpático, hospitaleiro, educado e acolhedor. Exatamente o oposto do que me diziam. Por mais incrível que possa parecer, eu me senti em casa no Paquistão – o que também ressalta as dificuldades de se pedalar na Índia.
No hostel em Lahore havia gente do mundo todo, nenhum turista, apenas viajantes. Havia gente viajando de moto, um casal num carro antigo desde Londres, um espanhol somente de carona, um canadense a pé e até um suíço que viajava de parapente, algo inédito para mim até aquele momento. Ninguém estava perdido ali, mas conforme o clima esquentava, todos começaram a pensar em encolher a estadia no país.
Eu havia acabado de cruzar a fronteira e não estava disposto a deixar o Paquistão antes de chegar pedalando até o Irã. Mesmo com uma longa estrada pela frente, resolvi esticar até as montanhas do norte do país e percorrer a Rodovia Karakoram, cuja fama me atraia havia algum tempo.
No caminho até a montanhosa região do Baltistão, perdi as contas de quantas vezes fui parado por policiais que sempre checavam meu passaporte, me pediam para assinar formulários e, por vezes, checavam minhas bolsas. Numa dessas paradas descobri que o, então presidente, Musharraf, havia acabado de decretar o Estado de Emergência no país. Parecia sério, mas aquilo não mudava nada para mim, na realidade era até melhor, pois dava mais poder ao Estado, que era quem garantia minha segurança, mas, ao mesmo tempo, mostrava que algo não estava bem com o país.
Como se nada houvesse acontecido, segui viagem para Gilgit, capital do Baltistão, onde eu já estava acima da cinzenta camada de poluição que parecia cobrir toda a parte baixa do Paquistão e estava de frente para uma das mais incríveis paisagens que eu já havia visto. Para onde eu olhava via os altos picos nevados da Cordilheira Karakoram, com montanhas que pareciam ter sido esculpidas, tamanha a beleza que tinham.
Gilgit não era muito diferente das outras cidades paquistanesas, era pobre, com ruas empoeiradas, com apenas homens em suas ruas, muitas motocicletas e vendedores ambulantes por todos os lados. Entretanto o povo era diferente, com a pele clara e traços mais “europeus”. Sentia como se houvesse entrado num outro país. Tudo era diferente do resto do Paquistão, a fisionomia, o idioma, a religião, os costumes, as tradições, as roupas, a comida. Aquilo era novo para mim e ao mesmo tempo me agradava muito.
Como estava deixando minha barba crescer havia algum tempo, em Gilgit apenas comprei uma calça e uma camisa típica num brechó local, onde o dono fez questão de frisar que eu estava comprando “peças novas”, que apenas estavam sendo vendidas num brechó porque seu dono havia morrido numa guerra entre tribos. A informação era incomum, mas a roupa era bacana e resolvi ficar com ela. Saí da loja como um típico paquistanês. Faltava apenas a metralhadora para completar o traje, mas este acessório eu resolvi deixar de lado.
Com tal mudança de visual, a simpática população local se tornou ainda mais hospitaleira e sempre me convidavam para tomar chá, bater um papo e tentar me converter ao islamismo, caso contrário minha alma não teria mesmo salvação. Eles não conseguiram me converter, mas através destas conversas consegui muitas caronas e dicas da região. Decidi passar alguns dias em Karimabad, no coração do Vale do Hunza, e também no vilarejo de Passu, onde estavam algumas das montanhas e paisagens mais bonitas que vi em minhas viagens.
Não havia nenhum tipo de tensão na região na época, o próprio Estado de Emergência, que assustava todos os estrangeiros, nem parecia ter chegado naquelas montanhas, que seguiam um ritmo próprio e pareciam ser um território a parte do resto do país. Sem equipamentos para chegar em grandes altitudes, contentei-me em fazer solitários trekkings pelas montanhas e vales da região, antes de voltar para o Paquistão de verdade e seguir meu rumo.
Ao passar por Islamabad, capital do país, me deparei com muito trânsito na rodovia principal e sem entender o que estava acontecendo, apenas me aproximei do olho do furação e me deparei com dois sujeitos mortos no meio da estrada. Acerto de contas, disseram. Diante daquele clima que parecia prestes a entrar em ebulição, resolvi continuar pedalando e seguir meu caminho rumo ao Irã.
De volta a Lahore, o hostel já estava quase vazio. Todos haviam ido embora, com medo de atentados ou do início de uma guerra. Somente os fotógrafos se aglomeravam ainda mais nas ruas da cidade, esperando alguma catástrofe para fazerem a foto de suas vidas. Para mim, não havia mais o que fazer na cidade.
Eu subi em minha bicicleta e segui viagem. Mesmo com tudo isso, eu me sentia seguro. Sabia que eu não era o alvo de nenhum lado daquele conflito. Aquela era uma guerra ideológica e étnica, que envolvia religião, política e poder. Eu não tinha nada a ver com aquilo e bastava eu não estar no lugar errado na hora errada, que nada iria acontecer comigo. Estava seguro, mas tinha que contar com a sorte.
Mesmo assim, esse não era o pensamento do governo. A morte de um estrangeiro iria gerar uma péssima repercussão internacional, além de espantar ainda mais os já escassos visitantes que se atreviam a entrar no país. Um dinheiro mais que bem-vindo para uma economia em crise. Assim, bastou eu deixar o Estado de Punjab, que a polícia me parou na estrada para deixar claro que dali para frente, a única forma de seguir viagem era com escolta armada. Uma escolta gratuita e compulsória, fornecida pelo governo do Paquistão e realizada pelos polícias das cidades do caminho.
A minha aventura no país havia acabado naquele instante. Perdi a liberdade que eu tinha de parar nos locais onde eu queria, de seguir por estradas alternativas, de acampar pelo caminho, para sempre ter policias me acompanhando com metralhadoras a tiracolo ou mesmo me impedindo de pedalar e colocando minha bicicleta numa caminhonete para então me desovar na próxima delegacia do caminho.
Sob o contínuo olhar da polícia paquistanesa, cheguei até a fronteira do Irã. E poucos dias após deixar o país, a panela de pressão explodiu. Num atentado, mataram Benazir Bhuto e o país entrou num caos.
Vi que a sorte estava ao meu lado. Apesar de alguns problemas, minha passagem pelo Paquistão havia sido muito boa e eu levava boas memórias do país comigo, especialmente de sua população. Mesmo assim, sabia que não seria um destino para indicar para outros viajantes e nem mesmo para voltar tão cedo. A situação apenas piorava e territórios que eram considerados seguros já não ofereciam garantia de nada.
Com as recentes notícias, senti uma tristeza por saber que até as montanhas do norte do país, um local considerado seguro e quase intocado durante muitos anos, agora também são cenário de crimes e atentados. Parece que nenhum local escapou. E enquanto o Paquistão não tiver controle sobre isso, a maior de todas as aventuras que poderá ser feita em seu território não será escalar uma montanha ou pedalar por suas estradas, mas sim contar com a sorte para sair vivo de lá.
Arthur Simões
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