Qualquer pessoa que decida sair da Europa por terra, rumo ao Oriente Médio – ou fazer o caminho inverso – terá que passar pela Turquia, um país que há séculos funciona como elo entre dois mundos diferentes. A oeste está a Europa, berço da cultura ocidental, do cristianismo, do feminismo, do modernismo e de muitos outros ismos; a leste está a Ásia, o maior e mais diverso continente do mundo, terra de infinitas religiões, etnias, culturas e rixas ideológicas .
A transição entre os dois continente oferece não apenas uma mudança cultural, mas também uma grande alteração no relevo e na paisagem. Na Turquia praticamente não há terreno plano. Apesar de não ser um país de grandes montanhas com picos nevados, seu território é enrugado, repleto de elevações, vales e infinitas montanhas. Poucos são os picos que passam dos 4 mil metros, mas a lista de montanhas com mais de 3 mil metros é bem grande.
Não há planícies, nem planaltos nesse país, mas para onde se olha há apenas montanhas, muitas montanhas, de todos os formatos e tamanhos. Por conta de seu relevo, as belezas e surpresas do território são muitas, há montanhas que parecem ter sido esculpidas, montanhas brancas, com escadas, montanhas afiadas, esquecidas, cansadas, intocadas, coloridas, montanhas motivo de briga e até montanhas com cabeças em seu topo.
As belezas do país são inegáveis, mas quem viaja com as próprias pernas deve estar preparado para os altos e baixos. Pedalar pela Turquia exige muita disposição e pouco peso, assim como um bom planejamento para lentamente atravessar as sinuosas e inclinadas estradas do país que conseguem surpreender a cada curva.
Primeira montanha
Minha primeira tentativa de entrar na Turquia falhou justamente por suas montanhas. Estava no Irã e atrasado em meu cronograma inicial. O cálculo que eu havia feito com base nas estações do ano para minha viagem já estava de ponta-cabeça e não funcionava mais. Onde eu devia escapar das chuvas eu era acompanhado pelas implacáveis monções e onde eu devia pegar calor e apenas acampar, já começava a nevar. Apenas três meses de atraso faziam toda a diferença. A fronteira entre o Irã e a Turquia foi um desses casos.
Localizada entre montanhas, a fronteira entre os dois países geralmente permanece fechada durante boa parte do inverno em decorrência das baixas temperaturas e constantes nevascas, que tornam o trecho praticamente intransitável. Era final de novembro e eu sabia que encontraria frio ao trocar de país, mas não o suficiente para me parar, pois a neve mais pesada só começaria a cair em janeiro. Naquele ano, no entanto, o inverno chegou mais cedo e no final de novembro já nevava forte, forte o suficiente para fechar a fronteira.
Poderia arriscar, seguir viagem e provavelmente cruzaria aquela fronteira, porém esse era um tipo de desafio sem sentido. Entrar em território turco era simples, difícil seria continuar pedalando sob neve num dos países mais montanhosos do mundo. Após pensar bastante, conclui que perderia o melhor da Turquia caso fosse cabeça dura o suficiente para não enxergar que prosseguir com o plano inicial seria um erro naquelas circunstâncias.
Essa conclusão me custou alguns dias, mas mudei completamente meu roteiro. Diante das possibilidades que eu tinha, conclui que iria na direção contrária daquela que havia planejado. Segui para o sul, rumo aos países árabes, onde o inverno era a melhor época do ano para qualquer atividade esportiva e com essa alteração sabia que chegaria na Turquia na hora certa.
Altos e baixos
Mais de seis meses se passaram até eu chegar perto, pela segunda vez, da fronteira turca. Nesse meio tempo havia pedalado pela Península Arábica, pelo chifre e norte da África e pelo Oriente Médio, para, finalmente, da Síria, entrar na Turquia. Era primavera e eu sabia que o clima não me impediria desta vez.
A Síria não é um país plano, mas percebi que a estrada por onde eu pedalava estava ficando muito mais inclinada que o normal conforme eu me aproximava da fronteira. Era como se eu subisse uma serra em direção à fronteira. Após algum tempo pedalando em velocidade baixa – tinha quase 30 quilos de bagagem comigo –, cheguei ao alto de um morro e lá estava o posto de imigração.
Finalmente estava na Turquia e agora não havia como fugir das montanhas, restava ficar mais leve, eliminar o excesso de bagagem que acaba sendo acumulado com o tempo e aproveitar o clima quente para encarar as montanhas. Meu corpo logo se adaptou ao ritmo do país, onde era comum chegar ao nível do mar num dia, no outro dormir a mais de mil metros de altitude e no dia seguinte voltar ao nível do mar.
Com essas oscilações era preciso pensar duas vezes antes de incluir qualquer novo destino na rota, pois as montanhas eram sempre parte integrante do roteiro. A Capadócia, um dos destinos mais procurados do país, está em sua região central, num terreno cercado de montanhas e vulcões. Um dos visuais mais incríveis do país, com uma relevo que parece ter saído de um filme de ficção, exigia bastante disposição para ser atingido.
Menos conhecido, porém muito mais intrigante, é o Monte Nemrut, ao leste da Capadócia. A montanha em si não tem nada de mais, com 2.134 metros de altura, quem olha de longe não vê mais que uma montanha arredondada, dessas que parecem ter sido desenhadas por uma criança. A surpresa está em seu topo, onde cabeças gigantes esculpidas em pedra parecem brotar do chão.
Herança do rei Antíoco, as estátuas foram construída no século I d.C, mas não se sabe porque ele mesclou tradições persas e gregas em suas esculturas e nem porque eles escolheu o topo do Nemrut para seu ousado templo. Todos essas perguntas fazem desta montanha, com cabeças de homens, águias e leões e seu topo, um local ainda mais incrível. Fora isso, o topo do Nemrut oferece uma das melhores vistas de toda a região.
Montanha de algodão
O mais interessante da Turquia é que cada pedaço de seu território parece ter uma história para contar. Tanto as torres de pedra da Capadócia quanto as cabeças do Nemrut ou a neve do Monte Ararat, o pico mais alto da Anatólia, com 5.137 metros, todos têm uma história incrível, de antigos povos, de guerras e conquistas. Entre as mais curiosas está a que afirma que a Arca de Noé possivelmente está no Monte Ararat. Verdade ou invenção, todas essas histórias dão vida a essas montanhas.
Um local em especial parece combinar perfeitamente história e beleza natural. Pamukkale, nome cuja tradução significa “castelo de algodão”, é uma impressionante montanha branca, repleta de piscinas termais e formato de cascata, formadas pelo calcário que desce montanha abaixo com a água. Ao lado na montanha estão as ruínas de Hierápolis, uma cidade romana, que inclui as Piscinas de Cleópatra, um grande anfiteatro e outras ruínas deste grande império.
A Turquia apesar de suas infinitas montanhas, tem mais do que isso, há praia, ótimas cidades, como Istambul, Antalya e Izmir, ilhas, ruínas, sítios arqueológicos e uma série de lugares tão impressionantes que fazem de uma pedalada entre sua montanhas não só valer a pena como nem ser tão pesada quanto se esperava. Digo isso pois no final das contas, após cruzar aquela alta fronteira, fiquei quase dois meses na Turquia antes de seguir para a Grécia e continuar minha volta ao mundo de bicicleta.
Arthur Simões
www.arthursimoes.com.br
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