O cheiro da chuva, intenso como um incenso indiano, pôs-me a relaxar. O barulho dos largos pingos no resistente tecido do bivaque ecoavam como uma música em minha cabeça. Seu ritmo encontrou, num compasso perfeito, o frenético vento que chacoalhava o abrigo, ambos seguiam a mesma melodia como um belo casal dançando tango. Ela fria e pesada, ele rápido e leve. Pensei, reclinado no isolante térmico, acampando sobre uma fria laje de pedra nas montanhas da Serra da Mantiqueira, que a evolução humana nos afastara da natureza e a busca por refúgio ensinou que qualquer cobertura, de caverna à palha de bananeira, é melhor que passar frio ou calor. Aprendemos a improvisar abrigos, cabanas e construir complexas edificações. Tomar chuva virou coisa do passado.
Era preciso, no entanto, esquentar o corpo, beber algo quente para entrar na dança e não perder o compasso. Nunca gostei de tango, entretanto, dessa vez não existia escapatória. Então fiz o que não deveria ter feito, o que - certamente - não ensino aos meus alunos: acendi o fogareiro dentro do bivaque! Resolvi esquentar uma água para o mate. O processo todo foi muito rápido, pegar o fogareiro e a garrafa de combustível na mochila, conectar o sistema, abrir o cantil de água, despejar água na panela e acender o fogo. Em minutos a água quente já estava no garrafa térmica e o mate servido em sua tampa - os puristas argentinos que não leiam este texto! O primeiro gole amargo desceu perfeito, forte, quente, dilatando todas as entranhas do estômago. O calor acendeu o corpo e num forte momento de egoísmo tomei a segunda e terceira doses antes de passar a cuia - quer dizer, a tampa! - adiante.
Estava feliz, voltando ao trabalho de campo após dois anos afastado. Foi quando lembrei do grupo. Ponderei se eles precisavam da minha companhia ou ajuda na cozinha para preparar o jantar depois do primeiro e intenso dia de caminhada, mas a vontade de sair dali era zero. A chuva não poderia ser mais uma desculpa, juntei forças e caminhei até o toldo onde a cozinha fora montada. Sob o tecido de naylon, entre secos e molhados, encontrei um espaço para relaxar o cansado corpo. Duplas, trios e quartetos conversavam dos mais variados assuntos. O ânimo era bom, o papo também. O primeiro, de quatro dias, encerrava-se com chave de ouro.
Chegar em casa depois de alguns dias de natureza, de montanha, de uma expedição de caminhada e de um trabalho muito bem sucedido nunca é fácil. É, na verdade, mais difícil e doloroso que percorrer quilômetros e quilômetros de terreno acidentado, de tomar chuva na cabeça, de dormir longe do conforto do colchão e acima de tudo, de carregar todo o peso nas costas... O barulho do Homem incomoda, as luzes, como um carro que não abaixa o farol na estrada, ofuscam, a poluição - de todos os tipos - dão nos nervos e intoxicam o pulmão que acabara de respirar o mais puro ar. A realidade, porém, é que a verdadeira expedição, a verdadeira aventura, nua e crua, se passa por aqui: no cotidiano dos centros urbanos; no dia a dia de nossas vidas.
Tentando compreender e aceitar esse doloroso momento de transição, deitado no sofá, olhar distante no teto branco, ouvi uma música da clássica banda de rock Secos e Molhados - quanta ironia relembrar da chuva do primeiro dia e dos amigos secos e molhados na cozinha sob o toldo de naylon! - ainda em sua formação com Ney Matogrosso. Eram os versos de Primavera nos Dentes.
Quem tem consciência pra se ter coragem
Quem tem a força de saber que existe
E no centro da própria engrenagem
Inventa a contra-mola que resiste Quem não vacila mesmo derrotado
Quem já perdido nunca desespera
E envolto em tempestade decepado
Entre os dentes segura a primavera
No pesado rock'n blues com lindos versos - mesmo que sua concepção fora uma dura crítica à ditadura militar no país - a minha volta para casa fazia mais sentido agora, as fichas caiam no mesmo ritmo do frenético tango entre chuva e vento. A minha consciência, a minha própria engrenagem, expande na medida da força de coragem que não vacila quando derrotado. A contra-mola que resiste no cotidiano dos Homens segura a primavera, o florescer, o renascer, a beleza de uma vida em família e a luta diária na "civilização". Eu voltei melhor de quando saí. E você? O que leva em sua mochila na expedição do cotidiano viver? A seleção das fantásticas imagens do fotógrafo André Berlinck é uma homenagem às pessoas que me ajudaram neste processo.
Boas caminhadas.
Antônio Calvo
www.armazemaventura.com.br
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