Extremos
 
COLUNISTA ANTÔNIO CALVO
 
Quando Desistir?
 
Texto: Antônio Calvo
7 de janeiro de 2014 - 23:37
 
Esquentando os motores na aproximação da Pedra do Altar, a primeira escalda do final de semana na via Alexandra. Antônio à esquerda e Paul à direita. Foto: Paul Colas-Rosas
 
  Antônio Calvo  

Eu fiz a escolha errada. Entusiasmado com a escalada, com os dias longe do agito do dia a dia, feliz por estar com um grande amigo, escolhi uma linha um pouco mais à esquerda que deveria e quando percebi já estava enroscado, parado no meio da parede quase vertical, sem conseguir subir ou descer e com a minha segurança ainda uns cinco metros abaixo, nada pronta. Até agora eu ficara num estado de transe, num universo paralelo - e só meu - que me afastara de tudo e de todos, mergulhado numa sensação que muitos aventureiros e esportistas dizem que sentem quando atingem o máximo da concentração e performance. Mas o medo me fez perder o foco e a magia do momento foi embora. Então voltei a ouvir a minha respiração e sentir o sangue fluindo pelas veias, ouvi o coração batendo. E isso não era nada bom...

A primeira coisa que eu tentei fazer foi me concentrar para concentrar. Parece engraçado e sem nexo, mas foi justamente isso que eu fiz: uma concentração enorme para voltar a me concentrar. Aos poucos achei um pé mais em baixo e tomei coragem para mudar de posição. Já era hora, meus braços estavam cansados e muito provavelmente eu não aguentaria por mais tempo. Consegui um segundo apoio de pé mais em baixo, havia desescalado apenas alguns centímetros quando senti um leve puxão na corda. Com a minha discreta descida o Paul percebeu que a corda estava solta e por isso era necessário retesá-la. Gritei alguma coisa como “não puxa, não puxa”. Eu não queria levar um tranco da corda a ponto de desequilibrar e cair os cinco metros que me separavam do último grampo logo depois da grande chaminé. Foi então que desci mais um metro e parei, travei de vez, não conseguia pensar em mais nada além de fud*!

Eu estava com o amigo Paul Colas-Rosas escalando a Chaminé Jimmy nas Agulhas Negras, dentro do Parque Nacional do Itatiaia. Era a primeira viagem desde o nascimento do meu filho Luca. Estes meses parado me deixaram com aquela coceira no corpo que os viajantes sentem ao ficar por mais de alguns dias no mesmo lugar, como bem descreve Jack Kerouac em seu livro beat “On the Road”. Era preciso colocar a mochila nas costas e o pé na estrada.

A Jimmy ou Travessia Diagonal tem um nível moderado de dificuldade, “apenas” 3º IV, porém sua exposição é E3 - numa escala de 1 a 5. Quanto menor o número da exposição, mais protegida é a via e, portanto, apresenta mais pontos para a segurança ao longo da subida. Seus conquistadores e data da façanha são desconhecidos. É considerada uma das mais belas vias das Agulhas segundo o “Guia da Região do Itatiaia, Escaladas e Montanhismo” e sua descrição segue da seguinte maneira, segundo a publicação da família Spanner:

“(...) Continue beirando o grande paredão à sua esquerda e você estará na base da escalada. Nesse ponto, a Jimmy segue à esquerda e para cima, por um lance de canaleta e entalamento. Em seguida, continue à esquerda e visualize um grande corte em diagonal à esquerda, que é por onde segue a primeira metade da via. Siga pelo corredor formado por esse grande corte, por diversos lances de trepa-pedras e entalamentos, com algumas passagens um pouco expostas. (...) A localização desse grande corte é fundamental, uma vez que o primeiro grande lance da chaminé da via está exatamente no final desse grande corredor em diagonal. (...) No final da chaminé, na parte mais externa, há um grampo para segurança. Vencido esse primeiro grande lance de chaminé, visualize várias canaletas na parede da esquerda. Uma delas é uma canaleta curva para a direita, que é exatamente por onde sobe a via."

     
     

Colado na pedra como um gato escaldado, à esquerda da “canaleta curva para a direita”, no meio das Agulhas Negras, gritei para o Paul que eu precisava de ajuda. “Quanto tempo você consegue ficar nesta posição?” ele perguntou. Acho que respondi “uns 5 minutos!”. Ele desfez a segurança em sua cadeirinha para liberar o único sistema que nos conectava, o cordão umbilical que liga os escaladores e que, em teoria, nunca, nunca mesmo deve ser solto. Mas eu já estava sem proteção alguma porque a corda ainda não estava costurada em nenhum grampo. Simplesmente não há proteção naquela parte da escalada, logo não faria a menor diferença estar ou não conectado ao parceiro. Então gritei “voa!”.

A estratégia era simples. Bastava ele chegar num bloco de pedra ao meu lado, quase na mesma altura, e refazer a segurança. Se eu caísse a partir de então, ao invés de chapar no final da grande chaminé que acabáramos de escalar, pendularia para a base desse bloco. Na minha cabeça o estrago seria menor. Calmo e objetivo, o Paul escalou até o bloco de pedra e preparou a minha segurança novamente. Que alívio, o plano havia dado certo!

Mas a escalada estava condenada, perdi totalmente as minhas forças, físicas e mentais. E ainda era preciso descer tudo o que havíamos escalado até então. Yvon Chouinard, fundador e proprietário da marca de vestuário Patagonia, no texto Fun Hogs em sua colaboração no livro “180º South Conquerors of the Useless”, escreveu que “a sensação de júbilo no cume em qualquer escalada árdua é temperada pela consciência que ainda é preciso descer”. Ele estava se referindo à sua escalada ao Fitz Roy na viagem de 1968, quando desceu de carro a costa do Pacifico rumo à Patagonia partindo dos EUA com alguns amigos para surfar, esquiar e escalar.

“Naquele momento estávamos na estrada por quase quatro meses, mas ainda levaria mais dois meses para escalar o Fitz Roy. O pico fora escalado apenas duas vezes, a primeira pelo iconoclasta francês Lionel Terray que escreveu que o Fitz Roy era uma das duas montanhas que ele não tinha mais desejo de repetir. Ele entendia que a maneira que se chega ao cume era muito mais importante que a própria façanha em si. A sua abordagem marcou aqueles escaladores como nós que tínhamos “arrancado os dentes” nas primeiras ascensões das grandes paredes de Yosemite, onde você chega ao topo apenas para perceber que não há nada por lá.

As nossas barracas não eram páreas para tais ventos, então nós tivemos que cavar na neve. Nos 60 dias que levamos para chegar no cume, tivemos apenas cinco com tempo bom para escalar. O resto dos dias foi esperando.

Eu passei um total de 31 dias confinado na caverna de gelo. Eu tinha espetado a minha perna com o piqueta de gelo enquanto pegava gelo para derreter no fogareiro. Então enquanto os outros desciam periodicamente para arranjar uma ovelha para melhorar as nossas refeições eu fiquei de costas olhando para o sombrio teto de gelo derretendo a alguns centímetros acima da minha cara. Toda vez que acendíamos o fogareiro para cozinhar as paredes pingavam em nossos sacos de dormir de pena de ganso, deixando-os inúteis. Nós estávamos constantemente com frio e famintos. Eu virei 30 anos de idade dentro daquela caverna, o que foi um ponto baixo em minha vida, mas por me ensinar a lidar com adversidade, foi um ponto alto também.

A sensação de júbilo no cume em qualquer escalada árdua é temperada pela consciência que ainda é preciso descer. Não conseguimos voltar à caverna de gelo antes do anoitecer e depois de 21 horas de descida e rapeis, fomos forçados a bivacar. O vento retornou e a noite foi péssima, mas como falou um outro amigo escalador Doug Scott quando bivacou no Everest “a qualidade da sobrevivência foi boa”.

 

Quando é preciso desistir dos sonhos e vontades e assumir que é hora de voltar? Eu me lembro que o Paul foi olhar o próximo lance da Jimmy enquanto eu retomava o fôlego. Era o crux, o trecho mais difícil da via de escalada, que tem início num enorme platô e possui parcas proteções na rocha. Enquanto ele esteve fora eu peguei a máquina de filmar e apertei o rec. As palavras não saíram da minha boca. Os primeiros segundos mostram uma respiração profunda, um olhar solto, triste, perdido. Olho para o relógio na tentativa de buscar coragem e assumir que eu não tinha mais força para continuar. Não queria desapontar o amigo e muito menos eu mesmo. Não queria assumir a derrota e sair daquele universo paralelo que tanto me empolga quando estou ao ar livre, mas era preciso entender que a maneira que se chega ao cume é muito mais importante que a própria façanha em si, como bem descreveu Terrey; mas nem no cume eu estava (!) ... E aí começo a confessar: “são 14h15 e eu estou extremamente exausto”, foram as primeiras palavras, e na sequência “desisti, o Paul foi olhar o platozão da Jimmy e aproveitei para descansar na sombra. Aquela exposição com uma desescaladinha, com a tensão de esperar a segurança chegar acabou comigo. Então daqui a gente já desce, desescalando e fazendo rapel. Acontece, bora pra casa, segurança em primeiro lugar”.

Não foi fácil assumir a derrota. Nunca é fácil conjugar frases e pensamentos em primeira pessoa, assumir o “eu” interno: eu posso, eu não posso; eu sou capaz, eu não sou capaz. Mas é preciso ter coragem quando necessário. Afinal, o cume não é necessariamente o verdadeiro pico da montanha, o cume é na verdade o lugar que carregamos em nosso interior, em nossos corações. É um lugar íntimo e pessoal, mas verdadeiro em seus sentimentos como escreveu a Luiza, minha esposa, depois de ler o rascunho deste texto: “Fico feliz em sentir que sabe desistir quando necessário e que isso não tem sido mais tão frustrante assim. Afinal, com você eu pude aprender que muitas vezes o nosso cume não é necessariamente o cume real da montanha ou o final da via de escalada. Ainda bem que desistiu, que chegou em casa seguro e feliz para curtir a saudade comigo e com o Luquinha. Te amamos e com certeza ainda temos muitas aventuras para curtirmos juntos!”

A descida não foi fácil. Na verdade, o desnível das Agulhas é tão alto que, mesmo acordando às 5h45 e iniciando o retorno por volta das 15h00, só conseguimos alcançar o acampamento no refúgio Rebouças às 19h00, com as lanternas na cabeça para encontrar o caminho no breu da noite.

Terminei o dia feliz. Feliz porque sabia que a escolha fora correta. Porque não forçando a barra, evitamos causar qualquer tipo de acidente. Feliz porque o Paul iria cozinhar alguma coisa gostosa para o jantar - assim eu esperava! - e eu só precisaria servir o mate. Por saber que iria adentrar novamente, numa próxima escalada em algum outro lugar por aí, aquele universo paralelo que eu tanto gosto quando o foco é total. Feliz porque mais uma vez, como Chouinard, as atividades ao ar livre me ensinaram a lidar com a adversidade e, por isso, foi um ponto alto também. Terminei mais forte de quando comecei.

Boas escaladas,
Antônio Calvo
www.armazemaventura.com.br

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