Em 16 de maio de 1975, Junko Tabei, então com 36 anos, foi a primeira mulher a chegar ao topo do monte Everest. Na escalada, ela e sua equipe chegaram a ficar soterradas por uma avalanche, mas nada disso diminuiu o empenho de chegar ao topo. A partir desse feito, sua vida de escaladora e de dona-de-casa mudou muito. Seu gosto pelas montanhas se intensificou, ela se envolveu com questões ambientais e ao comemorar este ano [a publicação original aconteceu em 2005] o 30° aniversário de seu feito, Junko Tabei tem em seu currículo mais de 120 picos escalados. E continua em forma.
Sua meta tem sido escalar os picos mais altos de cada país e sua lista inclui os montes McKinley, Kilimanjaro e Aconcágua, entre outros. Ela também é autora de dois livros sobre montanhas. Após nos conceder esta entrevista, a primeira para uma revista brasileira, ela afirmou que quer vir ao Brasil para escalar nossa montanha mais alta.
Aman Morbeck: Como e quando a senhora começou escalar?
Junko Tabei: Minha primeira experiência foi um passeio para escalar uma pequena montanha de 1.900 m na minha região. Eu tinha dez anos e minha professora me levou até lá com outros amigos.
AM: O que despertou seu interesse em desafiar o Everest?
JT: Em 1969, organizei o Clube de Escalada das Mulheres (Ladies Climbing Club - LCC), com expedições apenas de mulheres para conquistar montanhas no Himalaia. Inicialmente, nosso objetivo era um pico de 7.000 m e depois partimos para picos acima de 8.000 m. Expedições apenas com mulheres faz com que o desafio se torne mais equilibrado, porque todas as pessoas têm condição física parecida.
AM: A senhora já era casada quando decidiu fazer parte da equipe japonesa? Já tinha filhos? Como foi a reação de seu esposo e de outros membros de sua família?
JT: Quando fui para o Annapurna III (7.555 m), em 1970, eu já estava casada, mas não tinha filhos. Minha primeira filha nasceu em 1972 e estava com três anos quando fui para o Everest. Por meu esposo e eu termos nos conhecido por meio da escalada, ele sempre me apoiou em minhas atividades de montanhismo. Durante a expedição ao Everest ele e minha filha ficaram com a família de minha irmã.
AM: Foi muito difícil encontrar patrocinadores para esse projeto pelo fato de vocês serem mulheres?
JT: Nos anos de 1970 a economia japonesa estava sofrendo os efeitos do choque do petróleo (1972, 1973) e muitas empresas também disseram que seria impossível escalar o Everest com uma expedição formada apenas por mulheres. Assim, foi extremamente difícil encontrar patrocinadores. Por fim, uma rede de televisão e um jornal resolveram nos patrocinar.
AM: O que foi mais marcante nessa experiência no Everest? No que a senhora mudou a partir dela?
JT: Aprendi que uma pessoa não deve ir atrás de patrocinadores para fazer coisas que são de seu próprio interesse. Desde então, nunca mais procurei por patrocínio para nenhuma escalada. É melhor não dever nada para ninguém.
AM: Como a senhora lidou com o medo que acredito qualquer pessoa deve sentir nesse tipo de aventura?
JT: Lidei com ele mantendo a convicção que surgiu de minha própria experiência e a confiança em minha parceira, na qual eu estava amarrada com uma corda.
AM: Quanto tempo sua equipe ficou na montanha durante a expedição?
JT: Uns dois meses desde nossa chegada ao acampamento base, em 16 de março de 1975, até chegarmos ao topo do Everest, em 16 de maio de 1975. Se acrescentarmos outros dois meses que gastamos para fazer o trekking até o acampamento base e voltarmos, temos quatro meses. Contando outros dois meses gastos para conseguirmos passar os equipamentos pela alfândega na Índia, para depois serem enviados ao Nepal, o tempo total vai para seis meses.
AM: O que a senhora sentiu quando finalmente chegou lá, no topo do mundo, a primeira mulher a fazer isso?
JT: O que veio a minha mente quando vi a geleira Lombuk do outro lado da montanha [Tibet] foi: "Não preciso mais escalar". A vista também era impressionante, com o contraste entre a dureza e as pontas das montanhas e o marrom suave das terras do Tibet. Ficamos uns 50 minutos no topo para tirar fotos e fazer o relato por rádio à líder. Não tive sentimento de felicidade, estava mais preocupada em fazer a descida de forma segura.
AM: Sua vida mudou muito desde 1975?
JT: Embora minha vida, centrada em tomar conta de um bebê de três anos de idade, não tenha mudado depois de 1975, as pessoas e o ambiente ao meu redor mudaram. Eu tive de lidar com muitos pedidos para fazer palestras e para escrever artigos.
AM: Por que a senhora não tentou escalar o Everest de novo?
JT: Por causa da quantidade de dinheiro que isso requer. Também não me sinto atraída por montanhas pavimentadas como autoestradas, com cordas fixas do acampamento base ao topo. Prefiro ir a montanhas onde nunca estive antes.
AM: Quando foi sua última visita ao Nepal?
JT: Em maio de 2003, quando houve a celebração do jubileu de ouro [50 anos da chegada dos primeiros escaladores ao topo do Everest, Sir Edmund Hillary e Tenzing Norgay]. Voltarei lá em outubro de 2005 para organizar a celebração do 30º aniversário da primeira conquista do Everest por mulheres. [No final de outubro de 2005 houve a comemoração em Kathmandu, com o encontro de Junko Tabei com outras 15 montanhistas que chegaram ao topo depois dela.]
AM: A senhora e Sir Edmund Hillary mantêm contato? [Em 2005 ele ainda estava vivo.]
JT: Todos os anos eu envio cartão de Natal para ele e de vez em quando o encontro com sua esposa na Índia ou em outros lugares. Sou uma das curadoras do Himalayan Environmental Trust (HET) que Sir Edmund e outros fundaram. Trabalhamos juntos pela proteção dos Himalaias e em outros assuntos. No fechamento do International Year of the Mountain das Nações Unidas, em 2003, conversamos via satélite na televisão.
AM: Por que a senhora se tornou uma ativista ambiental pela preservação das montanhas? JT: Fiquei impressionada com o empenho de Sir Edmund Hillary, o primeiro homem no Everest [ao lado de Tenzing Norgay], em construir hospitais e escolas para a comunidade sherpa, além de sua atividade no montanhismo. Segui seus passos para trabalhar na proteção do ambiente nas montanhas e proporcionar benefícios para as comunidades nessas áreas.
AM: A senhora tem algum projeto pessoal de ajuda aos sherpas?
JT: Em 1991, fundei a ONG Himalayan Environment Trust Japan como um braço da HET. Construímos um incinerador de lixo e iniciamos uma plantação de macieiras em Lukla. Desde 1996, fazemos pomares de macieiras na vila Choplung, a caminho do Everest, um projeto de dez anos. Seu propósito é ajudar as pessoas a terem renda, bem como parar com o desmatamento.
AM: Na questão ambiental, houve avanços na consciência preservacionista por parte dos montanhistas?
JT: Existe uma corrente muito boa formada por pessoas interessadas e preocupadas com o meio ambiente. Elas levam de volta o que trouxeram às montanhas.
AM: A senhora consegue ser mãe e dona de casa apesar de sua fama? Seus filhos também se interessam por escalada e montanhismo?
JT: Ainda é possível ser dona de casa. Minha filha não se interessava por atividades ao ar livre quando era pequena e acabou se interessando por esqui, o que ela ainda curte mesmo depois de casada. Meu filho uma vez se envolveu em competições de esqui downhill e gosta de atividades ao ar livre.
AM: A senhora já é vovó?
JT: Ainda não.
AM: A senhora ainda escala? Com que frequência?
JT: Uma vez por mês vou para as montanhas ou faço trekking em outros países. Quase semanalmente escalo montanhas japonesas. Tenho uma casa nas montanhas, perto de onde cresci.
AM: Qual o seu sentimento quando se aproxima de uma montanha para escalar?
JT: Preocupo-me se vou conseguir escalar ou não e, uma vez confiante para começar a subida, sinto-me inspirada. Tenho amigos escaladores, mas meus parceiros de escalada não são fixos. Eu mesma planejo e vou com duas a três ou cinco a seis pessoas. E não tenho patrocinadores.
AM: A senhora acha que um dia se aposentará?
JT: Quando sentir que estou ficando fisicamente fraca e posso causar problemas para outros companheiros, então deixarei de escalar.
AM: Como é um dia de rotina em sua vida? E seu treinamento?
JT: Fisicamente não faço nada de especial, mas ir para as montanhas toda a semana é uma forma de treinamento, enquanto também faço alongamentos e fico de cócoras. Além dos trabalhos domésticos, ensino montanhismo para pessoas de meia-idade e idosas. Também estou trabalhando como membro do conselho de uma universidade, de conselhos do governo e de algumas fundações. No momento, também estou aprendendo a tocar piano e faço aulas de canto.
AM: A condição feminina na sociedade japonesa mudou muito desde 1975, não?
JT: Sim, a situação melhorou e mais mulheres hoje são diretoras de escolas, prefeitas, governadoras e ministras, enquanto o governo tem trabalhado em iniciativas para diminuir a desigualdade sexual. Há também um número cada vez maior de casais em que ambos trabalham.
AM: Que mensagem a senhora deixaria às mulheres que ainda se sentem impossibilitadas de transformar seus sonhos em realidade?
JT: Se conversar com as pessoas ao redor e pedir que cooperem para que você consiga realizar seus sonhos e também cumprir suas responsabilidade de forma determinada, eles acabarão se concretizando, mesmo que demore um pouco.
AM: A senhora sabia que o Brasil tem a maior comunidade japonesa fora do Japão? O que a senhora gostaria de dizer a seus “compatriotas”?
JT: Li muito sobre as dificuldades e os sucessos dos imigrantes japoneses no Brasil e estou orgulhosa deles, assim como eles devem orgulhar-se deles mesmos. Eu gostaria de escalar o pico mais alto do Brasil como parte do meu desafio de chegar aos picos mais altos de cada país no mundo.
SOBRE A MATÉRIA - Essa entrevista que fiz com Junko Tabei aconteceu em outubro de 2005. Eu trabalhava na revista Aventura&Ação, como repórter, e mensalmente entrevistava uma mulher com destaque no mundo da aventura (no presente ou no passado). Eu tinha de sugerir os nomes nas reuniões de pauta e, se aprovados, partia para o trabalho de campo.
Encontrar Junko Tabei foi muito difícil. Depois de muita pesquisa na internet, encontrei um site todo em japonês do qual só entendi o e-mail. Escrevi para ele e, dias depois, recebi resposta de sua secretária. Depois das trocas de mensagens, sempre com intermediação da secretária, pois Junko não falava inglês, e do envio de algumas edições para que ela conhecesse a publicação, ela concordou em responder às perguntas e enviar algumas imagens dela (inclusive no topo do Everest) e uma mensagem escrita de próprio punho para ilustrarmos a entrevista.
As respostas chegaram e, dias depois, recebi a mensagem e as fotos pelo correio – todas em papel, acompanhadas de uma cartinha dizendo que eu precisava devolvê-las depois, pois eram as únicas que Junko tinha (ela não tinha nem mesmo o filme para fazer outras cópias). Isso me surpreendeu demais! Como ela podia confiar tanto numa pessoa que nunca viu e que estava do outro lado do mundo? Digitalizamos todas em altíssima resolução o mais rapidamente possível e enviei-as de volta, com o coração na mão, agradecendo muito por ela ter sido tão generosa.
A entrevista foi publicada e enviei alguns exemplares a ela. Nunca mais nos falamos, mas guardo com muito carinho essas lembranças, a entrevista em papel e a mensagem que ela escreveu. Junko foi uma das 14 participantes na expedição feminina japonesa e, em 16 de maio de 1974, tornou-se a primeira mulher no topo do mundo. No texto acima, fiz algumas observações entre chaves em relação ao que mudou nesses quase sete anos desde a entrevista.
Neste mês das mulheres, propus ao Elias que a republicássemos no Extremos em homenagem a ela, a todas as outras que também abriram caminho na aventura e em outros campos dominados por homens para que pudéssemos trilhá-los com mais facilidade e a cada uma de nós que, quem sabe, talvez estejamos abrindo outros caminhos para gerações que virão. |