Extremos
 
COLUNISTA AGNALDO GOMES
 
O pior dia que já tive em uma montanha
 
texto: Agnaldo Gomes
06 de outubro de 2015 - 00:01
 

Escalando o Denali.
 
  Karina Oliani

Neste ano de 2015 eu estava no Alasca tentando escalar o monte Denali e ótimos artigos já foram escritos por algumas pessoas que estavam por lá nesta última temporada (1, 2 e 3), então não vou escrever novamente sobre a minha experiência nesta montanha, vou me ater somente a um dia, o pior que já tive em mais de 20 anos escalando em alta montanha.

Acordamos no campo 3 com o tempo nublado e sem vento, a previsão do clima do dia anterior parecia que ia se confirmar, mais um dia quente e sem vento na montanha mais fria do mundo. Até então, em alguns dias, chegamos a andar de madrugada, que apesar do sol nunca se por no verão oferecia temperaturas mais amenas, o calor estava de rachar por mais absurdo que isto pareça.

Carregamos as mochilas com todo equipo e comida para subir ao campo 4 ou high camp, o último antes de ir ao cume. Decidimos levar tudo de uma vez, sem fazer transporte de equipamentos, em vez de subir 2x leve subiríamos uma vez pesados, algo como 20/25 quilos por pessoa. Tão ruim quanto passar frio em uma montanha é passar calor e acreditem, isto acontece! Com a previsão indicando um dia quente e sem vento me equipei apenas com uma segunda pele grossa, fleece fino, anorak, macacão corta vento e uma luva média. O resto ia dentro da mochila, casacos grossos de pena, mitens, barraca, comida e outras traquitanas.

Na saída do campo 3 uma neve caia de leve, pela frente um dia de oito horas, com uma subida tranquila pela neve até o começo das cordas fixas, ai um paredão inclinado e depois as cristas que levam até o campo 4. Estas cristas são muito estreitas e com abismos dos dois lados, algo que faria sua avó dizer: “Cuidado menino, não vai cair dai…”

Começamos o dia assim, mochilas pesadas, com uma neve caindo de leve e cheios de vontade. Depois de duas horas estávamos chegando ao ponto das cordas fixas, conversando com quem já havia descido nos dias anteriores ficamos sabendo que o pior trecho era ali nas cordas, depois era manter o equilíbrio e com calma chegar ao campo 4. Quando nos engatamos nas cordas o clima havia mudado um pouco, a visibilidade era de uns 30 metros e um vento começava a soprar um pouco mais forte. Fomos progredindo e no meio da parede o vento já soprava com mais vontade e era difícil ver quem ia à frente, o clima estava mudando rapidamente. O vento levantava a neve fresca o que deixava difícil enxergar, era tudo um redemoinho branco, os “degraus" que tínhamos a informação de terem se formado na neve por outros escaladores deixaram de existir e o vento só havia deixado o gelo duro para enfiarmos nossos crampons e piquetas.

     
     

Depois de um certo perrengue conseguimos passar as cordas fixas e tentamos nos proteger do vento atrás de umas rochas, a idéia era descansar um pouco ali, fazer um chá e nos aquecer, mas mesmo parcialmente protegidos a temperatura caia rapidamente, não estava confortável, tinhamos que continuar escalando.

Naquele momento a temperatura devia estar em 15 graus negativos e o vento a uns 30 km/h. Bom... nada mal, dava para tocar pra cima. Continuamos subindo e confiamos na previsão do clima, achamos que pior do que aquilo não ia ficar, mas ficou.

Depois de duas horas estavámos no meio da pior tempestade que já peguei, a temperatura despencou para algo em torno de 30 graus negativos e o vento constante de 70 km/h. Veja, já paguei vento de 100 km no Elbrus, já senti temperaturas abaixo de 40 graus negativos no Cho Oyu, já fiquei 5 dias preso a 6000 metros no Aconcágua com uma tempestade dos infernos e sei lá mais o que, mas nunca antes havia sentido que a situação estava fora de controle e subir as encostas do Denali no meio de uma bagunça de frio, vento e neve não desejo para ninguém, ter que lidar com mosquetões e cordas, costurar nos pontos de ancoragem fica complicado, a temperatura corporal ia caindo rapidamente e os movimentos eram lentos e imprecisos. Antes de chegar a crista ia subindo apoiando os dentes da frente do crampon e a piqueta na neve, não dava para ficar de pé por causa do vento. Um pouco antes de entrar na crista paramos entulhados (estávamos em 4 na cordada) em um patamar estreito de rocha, a tempestade estava formada, paramos e colocamos nossos grossos casacos de pena de ganso. Tinhamos pela frente a parte mais exposta do dia, abismos dos dois lados e um vento que mal nos deixava de pé. Ora bolas e porque não voltar dali em vez de seguir em frente na pior parte da montanha? Sei lá… na hora avaliamos que o campo 4 estava perto (e estava mesmo, talvez num dia normal algo como 1 hora de distância) nossos altímetros indicavam que a parte mais íngreme já havia ficado para trás, pesou também o fato de estarmos tão cansados que era melhor arriscar na crista até o campo 4, do que descer durante 5 horas de volta ao campo 3. A tempestade estava consumindo rapidamente nossas forças e descer podia ser mais perigoso do que subir.

Estávamos a 10 horas subindo quando entramos na crista, minhas mãos estavam geladas e os dedos doendo, e meio cambaleantes fomos seguindo em frente, se alguém escorregasse ali provavelmente levaria os outros 3, além do fato de ser uma queda direta é provável que o cansaço tornaria ineficaz qualquer tentativa de frear a queda de alguém. Neste momento tive a certeza que não ia dar, que a chance de morrer era muito grande, todos os fatores para dar algo errado estavam presentes, lembrei do filme Sonhos onde os alpinistas quase morreram congelados a alguns metros do acampamento sem enxergar que ele estava tão perto.

Depois de muita luta chegamos em um campo amplo de neve, sabíamos que a crista tinha terminado e o acampamento era ali, mas onde? Só fomos ver uma barraca depois de quase tropeçar nela, eu estava entrando em hipotermia tremia tanto que não conseguia lidar com o zíper do meu casaco e já sabia que meus dedos estavam congelados. Pedi para alguém pegar meu saco de dormir dentro da minha mochila e enquanto montavam a barraca fiquei enfiado dentro do saco tentando me aquecer, não tinha condição de ajudar na árdua tarefa de montar uma barraca no meio daquela tempestade. Obrigado companheiros! Nos amontoamos os 4 numa única barraca e o que se ouvia depois na segurança da barraca eram somente gemidos, parecia que havíamos acabado de sair de um campo de batalha. Depois de 12 horas estávamos a salvo.

Namastê!
Agnaldo Gomes

 
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