Dia do Summit: Kibo Hut – Williams Point – Guilman's Point – Stellar Point e Uhuru Peak! E logo depois, a descida…
Depois de ter cochilado por mais de duas horas a tarde, não consegui pegar no sono de jeito nenhum! E quanto mais eu pensava que tinha que me obrigar a dormir, menos sono eu tinha!
Fiquei pensando no frio, na escuridão, no cansaço, na dor no pescoço e na neve que não parava de cair do lado de fora da barraca…
As 11 da noite em ponto o guia veio nos "acordar" – tivemos que nos arrumar e arrumar nossa barraca na escuridão total! O café da manha parecia um funeral… Ninguém tinha conseguido dormir direito (ou sequer dormir) e 2 pessoas estavam passando muito mal… Preparamos nossas garrafas de água, com água fervendo (que congelaram pelo caminho!) e lá fomos nós!
Começamos a nossa caminhada a meia noite e foi uma coisa surreal! A neve tinha parado de cair e o céu era um tapete infinito de estrelas!
Mas andar na escuridão total, apenas com uma lanterna de cabeça, foi muito mais difícil que imaginava!
A explicação do porque começamos a escalada a noite foi bem simples: como o solo nessa área da montanha é composto de areia e cinza vulcânica, é um terreno muito difícil de se caminhar… seria como escalar dunas de areia, a 5 mil metros de altitude… Então durante a noite, como a temperatura esta sempre abaixo de zero, o ano todo, o solo congela e a área mais cinza ficam compactas e fáceis de andar.
Mas foi difícil não tropeçar nas pedrinhas no chão, e manter o equilíbrio na subida quando a única coisa que conseguia enxergar na frente de meu nariz (congelado) era um foco de luz no logo da mochila do Aaron…
Mas o pior mesmo foi a concentração mental… depois de cerca de uma hora de caminhada acabei ficando muito entediada! Sério! Um tédio fora do normal…! Ninguém conseguia conversar porque mal tínhamos ar para respirar… não tinha nada para ver a nossa volta… não conseguia tirar fotos de nada porque estava escuro demais (tirei algumas fotos ao longo da noite, mas a grande maioria ficou fora de foco, ou escura demais, ou sem o menor sentido)… Meus pensamentos começaram a me enlouquecer e fiquei com um mega mau humor!
Foi uma coisa meio claustrofobica como nunca senti na vida. Uma ansiedade esquisita, como se estivesse fechada num lugar escuro…
Para completar, pouco a pouco meus pés começaram a congelar demais, e já não sentia nada do tornozelo para baixo. E somado a isso, umas duas horas adentro da caminhada, meus ombros e pescoço começaram a doer demais outra vez, ainda sequela da tarde anterior, somado ao frio e estar mais uma vez subindo com a cabeça baixa (para me proteger do vento cortante e para conseguir enxergar onde estava andando…). Sofri calada com a dor por mais ou menos mais uma hora, até que chegou um ponto em que as "facadas" de dor no meu pescoço se tornaram insuportáveis! E tudo isso contribuindo pro meu desespero de frio, claustrofobia, tédio e dor! Quando estava a ponto de largar a mochila por lá, num canto qualquer (com máquina fotográfica, garrafas de água, capa de chuva, comida e tudo mais), o guia (Makeke) se ofereceu para levar minha mochila e me salvou!
Foi incrível como aquele gesto me relaxou, e não estar mais sentido dor aliviou meus outros sintomas…
Mas isso causou um problema ainda pior! SONO! Assim que parei de sentir dor, do nada me bateu um sono avassalador! E nesse ponto da caminhada o grupo ainda estava todo junto, e 2 pessoas estavam se sentindo muito mal e estavam andando MUITO devagar! Para entreter minha mente entediada naquela escuridão eu fiquei contando quantos segundos demorávamos entre um passo e outro, e adivinhem!? 3 segundo por passo! Serio, é muita coisa! Mas é o tempo que leva para darmos uma inalada profunda de ar a cada passo.
O problema é que esse não era meu ritmo, e meu pulmão estava se virando muito bem obrigada. Então esses 3 segundos por passo eram o suficiente para que eu pegasse no sono entre um passo e outro! Sabe aquele sono que dói? Incontrolável? Dei vários tropeções, porque dormia enquanto andava! Que desespero que aquilo ia me dando! E isso tudo foi virando um transe, onde juntou o sono, a claustrofobia da escuridão, os passos ritmados, o frio e uma alucinação generalizada (efeito da falta de oxigênio, segundo o guia).
Tem uma historia interessante nessa parte da alucinação. No terceiro dia da caminhada o guia descobriu que eu era brasileira. Entre vários papos de futebol para cá e para lá, ele se deu conta de que o Inglês não era minha língua materna e ficou preocupadíssimo! Aparentemente, um dos efeitos da altitude é alucinação causada pela falta extrema de oxigênio o que pode causar falta de memória temporária, e consequentemente algumas pessoas não conseguem se comunicar em língua estrangeira. Então ele me mostrou seu caderninho de emergência com frases chave em tudo quanto é língua: holandês, russo, francês, espanhol, alemão, etc… e começou a anotar algumas frases e palavras em português também. (e o Aaron confirmou que em sua escalada na Bolivia, no ultimo dia ele não conseguia lembrar o nome da própria irmã por nada no mundo!)
Então quando eu estava nesse momento de transe (e chata para caramba, pois segundo o Aaron eu não parava de reclamar e tagarelar, enumerando tudo que eu ia exigir que ele fizesse por mim depois da viagem, afinal era tudo culpa dele e eu só estava lá por causa dele, e aquela era a pior noite da minha vida e era tudo culpa dele! hahahaha) o Makeke sacou seu caderninho e começou a me perguntar várias coisas em Português, para ver se minha chatice era puro cansaço e mau humor ou se era efeito da altitude… mas era só irritação mesmo!
E então algo aconteceu! Um dos senhores do nosso grupo desmaiou! Apagou completamente por falta de oxigênio! Os guias entraram em "mode" primeiros socorros para levar ele de volta pro acampamento, e então decidimos dividir o grupo. Nessa divisão eu, Aaron, os dois irmãos escoceses e um outro cara seguimos na frente com o Makeke, e nesse momento tudo se transformou!
Entramos num ritmo ótimo de caminhada, bem mais rápido que estávamos antes e rapidinho eu despertei e sai do meu transe de chatice! Foi mais ou menos nessa hora que passamos da caverna de William's Point, que marca os 5 mil metros de altitude e vimos no horizonte o pico Mawenzi pequenininho lá em baixo… E vi também como a lua estava linda e reparei que o horizonte já não estava tão escuro como antes.
A subida foi ficando mais e mais íngreme e cheia de pedras a medida que íamos subindo, e lá pelas 5 horas da manhã, a cerca de 5.500 metros de altitude o sol começou a despontar no horizonte!! QUE VISTA MARAVILHOSA!!!!
O horizonte começando a mudar de cores, Mawenzi lá em baixo, as luzes da fronteira do Kenya perdidas lááááá em baixo no horizonte. Demos um último gás, pois queríamos conseguir chegar no primeiro pico do Kilimanjaro, o Guilman's Point, a tempo do nascer do sol: Tínhamos cerca de 45 minutos para escalar (na unha!) os últimos cento e poucos metros de altitude.
E conseguimos!
Assistimos o nascer do sol mais fantástico do universo, a 5.600 metros de altitude, no topo da África!
Infelizmente ficamos pouquíssimo tempo lá em cima – nossas garrafas de água estavam congeladas, aos poucos o frio foi piorando (á incrível a diferença de temperatura no corpo quando estamos andando e quando paramos por poucos segundos!) e tínhamos que decidir: queremos seguir até Uhuru Peak por mais 3 horas, ou não. Um dos irmãos escoceses sentou e não conseguia levantar mais. Ele tinha atingido seu limite e não conseguia andar mais. E depois o Aaron confessou secretamente que ele achava que eu também ia desistir, e se isso acontecesse, ele teria desistido também…
Mas não! Eu fui logo a primeira a sair andando pelas pedras! Aquele por do sol, Mawenzi, os glaciares e tudo a minha volta, tinham me dado um novo animo de energia e eu sabia que TINHA que conseguir chegar até o final!
Então nós 4 e Makeke começamos nossa caminhada final… são apenas 200 metros de altitude, e cerca de 800 metros em distância (menos de 1 quilometro!) e Uhuru estava tão perto! Já conseguíamos ver o topo, víamos os grupos de turistas descendo a montanha, mas foram os metros mais difíceis até então.
O pulmão já não responde, as pernas já não respondem…. Eu comecei a chorar incontrolavelmente… uma sensação sem igual de não poder mais, mas saber que jamais me perdoaria se parasse estando ali tão perto (um sentimento que os ingleses descrevem tão bem com uma única palavra: Overwhelmed (esgotada)! Eu me sentia completamente overwhelmed e inundada por todos os sentimentos bons e ruins que existem!). E a cada passo eu continuava chorando; diferentes grupos de turistas com seus guias iam descendo pelo mesmo caminho e nos dando forca "You can do it!" "You're almost there!" "Dont't give up now!" e eu ia chorando mais e mais (sério, chorei escrevendo esse post, só de lembrar a inundação de sentimentos e dores, e tudo mais daquelas última duas horas de caminhada!).
Até que viramos a curva que nos deixou ali… cara a cara com a reta final… com a placa que remete para o mundo "CONGRATULATIONS YOU HAVE REACHED UHURU PEAK 5895 METERS ABOVE SEA LEVEL THE HIGHEST POINT IN AFRICA AND THE HIGHEST FREE STANDING MOUNTAIN IN THE WORLD"!!! (Parabéns você alcançou o pico Uhuru a 5.895 metros acima do nível do mar, o ponto mais alto da África e a montanha mais alta do mundo).
Se eu tivesse oxigênio suficiente no meu sangue e meus músculos, teria dado um pulinho de emoção, e teria feito a dança da felicidade! Mas em vez disso eu chorei. E chorei, e chorei. E abracei o Aaron, abracei o Makeke e saquei minha câmera fotográfica do bolso interno do casaco! (estava no bolso interno para ficar quentinha, já que a altitude e o frio podem descarregar a bateria da câmera e cristalizar as lentes – então preferi não arriscar, e as fotos da subida foram tiradas com minha maquininha velha, que levei só para registrar essa escalada final!).
Tiramos muitas fotos, por momentos que pareciam uma eternidade lá em cima. O Uhuru Peak era só nosso, e tínhamos toda a Africa aos nossos pés!
Mas a pesar do sol estonteante que estava lá em cima, o vento era de matar e o Makeke logo nos lembrou que a pesar de termos conseguido chegar ate o final, agora faltava descer tudo de novo!!!!
E então começamos pouco a pouco a descer. Dizem que para baixo todo santo ajuda, né? Fui nessa fé ladeira abaixo e fui deixando meu corpo ser carregado pela gravidade…
Até que chegamos de novo na parte onde a areia e cinza vulcânica já tinha começado a derreter… e a trilha que usamos para subir tinha virado um rebuliço de lama preta….
Seriam mais 3 horas descendo (são 4 horas para descer o mesmo percurso que demorou 9 horas para subir) mas o Makeke propôs um atalho que prometia economizar 1 hora de nossa descida! E lá fomos nós, praticamente de Ski-bunda montanha abaixo!
Nossas pernas enterravam até o joelho na areia e deslizava alguns metros pra baixo, enquanto ainda tentava desenterrar a perna anterior para repetir o processo. Usei as "bengalas" de caminhada para manter meu equilíbrio e dar uma forcinha ao meu joelho, que pouco a pouco ia sentindo o esforço de descer uma ladeira tão violenta e tão rápido, e o peito latejava a cada inalada, com uma respiração pesada sem oxigênio, mas tudo que eu queria era ir mais e mais rápido e chegar logo lá em baixo!
E lá fomos nós… 1 hora… 2 horas…. As nuvens subiram e nos alcançaram no meio do caminho, mas eu estava suando em bicas, e já tinha tirado quase todos os meus casacos… Até que o guia apontou uma formiguinhas lá em baixo… "Olha é o Kibo Hut! Estamos chegando perto! Mais 1 hora e estamos lá!"
UMA HORA?!?! Eu não aguentava mais nem um segundo… mas tudo que sobe, desce… e fui seguindo meu deslizamento de barranco abaixo sonhando com minha barraca!
Quando finalmente chegamos na entrada de Kibo, vários de nossos carregadores estavam lá nos esperando! Vieram ajudar a nos carregar de volta para as barracas, carregar nossas mochilas e casacos e atender qualquer pedido especial (Água! Água!!)!
Fui direto para minha barraca e me recusei a ir almoçar – e então me dei conta que não tinha comido nada, e mal bebi água durante as últimas 12 horas! (e nem fui ao banheiro nesse tempo todo, mas ai já é too much information….).
Entrei na barraca com lama até os joelhos, sem colchão nem saco de dormir… Onde meu corpo encontrou o chão congelado da barraca, foi onde eu fiquei, e apaguei instantaneamente!
Mas cerca de 1 hora depois, os guias vieram nos acordar de novo… era hora de começar a caminhada de volta, pois tínhamos que descer pro acampamento Horombo, a 3700 metros de altitude, para que nosso Corpo pudesse se recuperar com oxigênio suficiente.
Nossa, e o mau humor que me assolava?!??!
Mas tudo bem.
Arrumei minhas coisas de volta na mochila e começamos a descer pelo deserto, na direção contrária de onde viemos (agora estávamos descendo pelo lado sul da montanha). |