A Argentina, seus vinhos, sua gente, seu clima, sua beleza e principalmente sua grande montanha, estão muito vívidos em minha mente e em meu coração.
Voltei há poucos meses da minha incursão por essas paragens, com destaque para a maior montanha fora do Himalaia e a maior das Américas, que me fez me enxergar com outros olhos e pensar que sim, sou capaz de pensar maior e escalar os 7 cumes do mundo.
O Aconcágua me fez mais forte física e mentalmente e me deu coragem para assumir uma vontade que eu nem sabia direito que tinha e me mostrou que quando acreditamos em nossos sonhos com o coração, nossos pés e nossas mentes nos guiam até eles.
Saí de casa, em São Paulo, no dia 2 de janeiro de 2015. O voo foi tranquilo e cheguei à cidade de Buenos Aires às 5h, já com uma hora a menos de fuso. Peguei toda a bagagem, fiz novo check in e tive que pagar 9 kg de excesso de peso, já que nesse voo só é permitido 20 kg e só de comida, eu deveria ter uns 3 kg. Cheguei à Mendoza às 9h40 do dia 3 de janeiro com mais dois companheiros de viagem que encontrei nos aeroportos e como os quartos estavam demorando a ser liberados no hotel, aproveitamos para ir alugar os equipamentos que faltavam.
Chegamos à loja e começou o exercício de experimentar bota dupla, que é extremamente dura e desconfortável, crampon, isolantes térmicos, luvas mitten e capacete. Fizemos todo o processo de aluguel e voltamos para o hotel.
Assim que cheguei, liguei para o quarto dos guias e combinamos de descer para nos encontrarmos no lobby e almoçarmos. Passamos no quarto deles antes de descer e como estavam enlouquecidos com todas as marinheiras (duffle bags) abertas e o quarto inundado de compras, organizando tudo e esse processo demoraria, combinamos de nos encontrar no restaurante, já que estávamos famintos e com sono, pois estávamos sem dormir uma noite inteira por causa da viagem.
Almoçamos, tomamos vinhos e voltamos ao hotel para descansar.
O pouco que vimos de Mendoza me agradou muito. É uma cidade extremamente agradável, com avenidas largas, muito arborizada, com belas praças e um clima bastante quente, seco e abafado.
Eu e minha companheira de quarto fomos tomar banho e dormir. Ainda teríamos que colocar todos os equipamentos alugados num espaço que já estava praticamente lotado (marinheiras e mochilas). Foi uma engenharia que nos consumiu um bom tempo.
Mendoza / Penitentes
No dia seguinte, 4 de janeiro, era meu aniversário. Levantamos, nos arrumamos e descemos para o briefing da expedição. Conhecemos o restante do grupo e ouvimos as explicações do Carlos Santalena, nosso guia, a respeito dos riscos, de como proceder em algumas situações, medimos batimentos cardíacos, oxigenação e pressão, cada um se apresentou e fomos para o café. Faltava apenas um integrante do grupo para chegar. O grupo era formado por 16 pessoas, sendo 13 clientes e 3 guias.
Logo após, saímos para trocar dinheiro, demos umas voltas, fomos tomar café e seguimos para tirar o permiso. Na hora do almoço, os guias apareceram com um bolo e todos cantaram parabéns para mim. Comemorar o aniversário em uma expedição, prestes a partir para a montanha, não tem preço.
Voltamos ao hotel e logo o micro-ônibus apareceu para partirmos para Penitentes. Chegamos ao nosso destino às 19h15.
O hotel era bem bacana e eu achei que seria tipo albergue, mas era muito melhor. Fizemos o check in, deixamos as bagagens e descemos para jantar. O cardápio era muito bom e os pratos nos surpreenderam pelo capricho e sabor.
Penitentes (2400 m.) / Pampa de Leñas (2.800 m.)
No dia seguinte levantamos às 7h45, nos arrumamos e descemos para o café às 8h30. Terminado o café, finalizamos a arrumação das mochilas, aferimos os índices corporais de controle e pegamos a van que nos levaria ao início da trilha, na entrada do parque.
Chegando lá, pegamos os lanches de trilha, tiramos fotos, rezamos pedindo proteção e iniciamos a caminhada às 11h.
O dia estava extremamente quente e caminhamos o dia todo com sol escaldante, o que transforma a caminhada num processo mais difícil e sofrido. Caminhar entre as montanhas, quase o tempo todo ao lado do rio e no vale cercado pelas pedras, é algo muito especial, embora difícil, pois não havia nenhuma árvore e nenhuma sombra.
Quase toda a trilha era de pedras, o que é um pouco mais complicado e temos que tomar cuidado para não torcer o tornozelo, já que o solo é muito instável. Todos seguiam num bom ritmo, em fila indiana. Durante um bom tempo, havia um vento forte que ajudava a amenizar o calor, mas jogava areia, que entrava em todos os cantos. A pele ficou grossa, áspera e suja, mas pelo menos diminuía a sensação de abafamento.
Chegamos ao acampamento Pampa de Leñas, às 17h30 e começamos as atividades de montar as barracas e pegar as marinheiras que vieram no lombo das mulas.
Barraca é sempre uma experiência muito interessante. Os meninos nos ajudaram a armá-la, pois eu não tenho a menor habilidade para essa tarefa. Arrumamos os isolantes térmicos, esticamos os sacos de dormir e nos higienizamos com lenços umedecidos, hidratante, talco e fomos jantar.
Antes do jantar ficamos comendo “aperitivos”, como, queijos, salame, biscoitos, preparados pelos guias e logo depois jantamos.
Foi feito o briefing para o dia seguinte e fomos liberados. Estava bastante quente.
Pampa de Leñas (2.800 m.) / Casa de Piedra (3.200 m.)
No dia seguinte, levantamos às 7h e começamos a arrumar as mochilas, marinheiras e fomos tomar café. Depois voltamos para desmontar a barraca e finalizar os preparativos, pegar água e partir.
Começamos a caminhar às 10h e o dia todo foi nublado, o que facilita, diminuindo o desgaste. Tivemos vento quase o tempo todo, dando até um friozinho, pois não havia sol.
O percurso foi maior do que no dia anterior, mas fizemos no mesmo tempo, já que o grupo estava andando muito bem. Gostei muito da paisagem, que consistia das altas montanhas, um grande descampado e o vale aberto, com o rio nos acompanhando todo o tempo. A grama seca dava uma coloração dourada à paisagem e deixava tudo mais bonito.
Parte da montanha tinha uma coloração esverdeada, com faixas alternando com o rosado. Chegamos ao acampamento Casa de Piedra às 15h30 e fomos montar as barracas, lavar umas roupas numa grande borracha que havia e fazer uma higienização um pouco melhor com água e sabonete.
Tomamos um lanche e esperamos o churrasco feito pelos muleiros, que saiu às 19h. Além de carne, tínhamos provoleta e legumes assados para os vegetarianos. Ficamos conversando e tomando chá até umas 21h. A noite já estava bem fria, com um vento gelado que piorava a sensação térmica. Fomos dormir, pois sairíamos bem cedo na manhã seguinte.
Casa de Piedra (3.200 m.) / Plaza Argentina (4.200 m.)
De fato, levantamos às 5h30, pois os porteadores teriam que subir com todas as bagagens para depois descer até a entrada do parque, então precisávamos liberar tudo cedo. Saímos do acampamento por volta das 8h.
Logo no início tivemos que atravessar um riozinho raso e estreito, mas que tinha uma temperatura congelante. Atravessamos de sandálias ou tênis, pois não podíamos molhar as botas com as quais andaríamos o dia todo. Tive a nítida sensação de que os meus dedos tinham congelado. Sentamos na outra borda e ficamos secando os pés e friccionando os dedos para que voltassem à temperatura normal. Eles não voltaram, mas colocamos as botas e meias mesmo assim.
Caminhei o dia todo de fleece (blusa de frio fina, porém quente) e o sol ficou escondido boa parte do dia, que foi nublado e com rajadas de vento muito fortes.
A paisagem era estonteante, com o rio correndo tranquilo à nossa esquerda, o vale dourado pelas gramas secas e as montanhas emoldurando todo o cenário. As montanhas são enormes, de pedra esculpida pelos ventos e chuvas, formando imagens belíssimas e transmitindo uma paz muito grande.
A trilha tem uma subida íngreme logo no início, o que nos faz caminhar lentamente, respirando fundo para não ficarmos ofegantes. Cruzamos com as mulas diversas vezes pelo caminho e tínhamos que subir nos barrancos para que elas passassem com suas pesadas cargas.
Boa parte da trilha foi feita na beira do penhasco e tínhamos que tomar cuidado para não escorregar. Chegamos à Plaza Argentina, campo base, por volta das 15h30 com um vento muito forte.
O campo base é como uma pequena vila, lotada de barracas espalhadas pelo areal e os domos (barracas refeitórios) que são grandes e acomodam bem todos ao redor das mesas.
Tivemos uma excelente recepção feita pelos argentinos integrantes da nossa expedição, que são muito simpáticos e nos atenderam muito bem a todo o momento.
O dia foi muito puxado, longo, com um desnível de 1.000 m e andamos muito, mas todos chegaram bem. Aqui terminou o trekking de uma das integrantes que caminharia até o campo base. Agora éramos 12 clientes.
Plaza Argentina (4.200 m.)
O dia seguinte foi de descanso. A noite foi de muito vento e a barraca balançava o tempo todo. Essa noite foi a mais fria até então.
Aproveitei para tomar banho, já que não caminharíamos nesse dia. A barraca do banho era maior e mais alta do que as outras, tinha uma entrada onde eles guardavam materiais e depois uma lona que separava a área de banho, onde tinha um galão com 13 litros de água com piso de pedras e uma torneirinha para regular o fluxo (5 ou 10 gotas. Rs). Quando vivemos essas situações muito diferentes do habitual, passamos a valorizar cada vez mais coisas que podem parecer banais no dia a dia como um bom banho, uma cama gostosa, um travesseiro fofo.
Pode não ser o mais confortável, o fluxo é pouco, mas é muito bom, depois de 3 dias sem banho, poder sentir uma água escorrendo pelo corpo e lavar a cabeça. E um banho na montanha depois de muita poeira, suor e cansaço, é revigorante. A gente se sente uma nova pessoa.
Outras particularidades são os banheiros. Em geral são numa caixa metálica alta, com um buraco no meio e um latão enfiado na terra. A visão não é das melhores e nem das mais bonitas e no início é meio constrangedor ter pessoas do lado de fora esperando, já que entre a cabine e o latão no chão, existe um vão que nos permite enxergar o que está saindo de dentro do banheiro. Em outros acampamentos, existe uma barraca banheiro, com jornal, papel higiênico, às vezes algumas pedras para se apoiar e o processo de falta de privacidade é o mesmo: pessoas do lado de fora, esperando para usar o banheiro. Não é legal, mas a gente se acostuma.
Após o almoço fomos tentar arrumar nossa barraca, já que uma das varetas havia quebrado por causa do vento que foi cruel toda a manhã. Outras 3 barracas do acampamento, mas não da nossa expedição, quebraram também.
Por volta das 16h fizemos o treino com bota dupla, crampon e luva mitten que usaríamos a partir do dia seguinte. A bota montada pesa em torno de 3 kg cada uma, o que dificulta muito andar em terrenos acidentados, gelo e altitude carregando mais esse peso, mas ajuda a não torcer o pé e dar mais estabilidade nesses terrenos.
Mais tarde fomos ao consultório médico e medimos oxigenação, batimentos cardíacos e auscultamos o pulmão. Existe esse controle feito por médicos no campo base, para atestar quem está em condições de subir para os campos altos.
Os guias tiveram que arrumar novamente nossa barraca, que com os ventos que continuaram fortes durante todo o dia, teve mais uma barra quebrada. Ela estava toda torta.
Plaza Argentina (4.200 m.) / Campo 1 (4.950 m.)
Essa noite foi muito gelada, marcando -1 dentro da barraca e eu estava sem meias. Tinha deixado 2 pares no refeitório, dentro das botas duplas e as outras estavam na marinheira fora da barraca. Então, para mim, a temperatura estava ainda pior e dormi muito pouco, acordando o tempo todo.
No dia seguinte saímos para a trilha de aclimatação, às 9h20 e todo o caminho foi bastante íngreme. Começamos no passo de montanha, bem devagarinho e o clima ajudou com um sol ameno e sem vento.
Fomos fazendo paradas a cada 1h e seguíamos bem, embora com o cansaço aumentando a cada passo. Logo no início um dos integrantes do grupo disse que estava muito cansado e um dos guias ficou para trás para acompanhá-lo.
A trilha é muito puxada e seguíamos tentando manter o mesmo ritmo, mas aos poucos as conversas iam rareando e todos concentravam-se nos passos, na respiração e em chegar. No último trecho de subida saí da fila, parei para recuperar o fôlego, acalmar a respiração e voltar ao passo correto.
Esse trecho é cruel, com pedras soltas e escorregadias, o que nos fazia dar um passo e escorregar dois. Achei muito difícil essa última etapa e estava muito cansada.
Aliás, todos chegaram muito cansados, mas bem. Descansamos, tomamos lanche e ficamos conversando embaixo de um solzinho gostoso por quase 1h.
Levamos 2h30 para descer tudo o que havíamos subido e senti que os pés escorregavam na bota dupla e as bolhas foram se formando em cada dedão. Dói muito, mas depois de um tempo você já nem sente mais e segue pisando nelas, até porque não tem muita alternativa mesmo. Chegamos bem, porém bastante cansados.
O dia foi de aclimatação, que é quando subimos para uma altitude maior e descemos para dormir em uma mais baixa para forçar o corpo a novas altitudes. Sempre devemos seguir o ditado: “ Climb high, sleep low “, ganhe altitude, exercite seu corpo e durma em altitudes mais baixas. Ascendemos quase 800 m, o que é muito em altitude e o ar falta. Tivemos sorte de não ter vento como no dia anterior e pouco frio, que ajuda muito nessas condições.
Voltamos ao campo base e fomos para o refeitório nos hidratar, descansar e esperar pelo companheiro que não estava muito bem na subida. Ele chegou bem depois e estava visivelmente mal. Um dos integrantes, que era médico, olhou de longe e disse que ele estava atáxico, ou seja, com uma irregularidade na coordenação dos movimentos e desordem na marcha e foi com os guias acompanhá-lo até o consultório médico. Constataram, que, infelizmente, ele estava com edema pulmonar e teria que descer de helicóptero.
O edema, seja pulmonar ou cerebral, regride rapidamente quando descemos para altitudes menores, mas pode ser muito perigoso se continuamos em altitude elevada. O edema pulmonar geralmente é causado por insuficiência cardíaca, que leva ao aumento da pressão nas veias pulmonares. À medida que a pressão nesses vasos sanguíneos aumenta, o líquido é empurrado para dentro dos espaços aéreos dos pulmões, chamados alvéolos. Esse líquido acumulado interrompe o fluxo normal de oxigênio nos pulmões, resultando em falta de ar. Em função da escassez de oxigênio e a alta pressão nas artérias pulmonares, por osmose o pulmão enche-se de fluídos provenientes do sangue. Os principais sintomas são: tosse contínua com secreção rosa e espumosa, mãos úmidas e geladas, fraqueza, falta de ar, respiração ruidosa, lábios e unhas azuladas (cianose).
Todos ficamos muito tristes e eu sempre penso o quanto investimos de grana e emoção para ter que desistir tão no início. Ele ainda almoçou conosco antes do helicóptero chegar. Despediu-se de todos, desejou boa sorte e foi embora.
Plaza Argentina (4.200 m.)
Depois da aclimatação do dia anterior, no dia seguinte apenas descansamos. Os resultados de oximetria e batimentos cardíacos estavam melhores, graças ao exercício de ontem.
Aproveitei para tomar outro banho, pois não sabia quando teria esse luxo novamente. Estava me sentindo renovada de cabelos lavados e limpa. Só sabe o poder rejuvenescedor e reanimador de um banho quem já foi privado dele.
Logo após, fomos todos para o refeitório para separar as comidas liofilizadas que seriam levadas para os campos altos.
A vida no campo base é animada para as equipes que “moram” alguns meses por lá para atender às expedições. Eles se divertem ouvindo música o tempo todo na cozinha, estão sempre em contato com os clientes, fazem festa todas as noites em alguns domos, inclusive com direito à música bastante alta quando quase todas as expedições já se recolheram nas barracas e numa das noites, passaram gritando pelas barracas e acordando as pessoas. O grupo que nos atendia era bastante animado, solícito e alegre.
Plaza Argentina (4.200 m.) / Campo 1 (4.950 m.)
Levantamos às 07h30, terminamos de embalar tudo e começamos a caminhar às 10h50. Começamos bem devagar, no passo de montanha e começamos a longa subida de 750 m. de desnível. Toda a caminhada é feita em subida e o fôlego vai faltando a cada passo. Embora dura, a subida foi mais fácil do que a dois dias quando subimos para fazer a aclimatação.
A paisagem é linda, com as montanhas rochosas à nossa frente e ao nosso redor o rio de degelo descendo por esculturas formadas pelo gelo congelado e muita areia e pedra descendo pelas encostas. Olhar os picos nevados lá longe, instiga e impõe respeito ao mesmo tempo. É para lá que estamos indo, são eles que nos movem e é por eles que caminhamos tanto...
Chegamos às 15h45 cansados, mas bem fisicamente e muito felizes. Chegar a cada acampamento e confraternizar dando abraços, recebendo palavras carinhosas ou dando as mãos, é muito bom e nos dá mais ânimo para seguir em frente nos outros dias. É muito bom esse carinho que os participantes da expedição têm um com o outro. É uma forma de incentivo e de reconhecimento por tudo o que já fizemos.
Tivemos uma linda recepção com queijos, salame, azeitonas e batatas fritas, preparada por um dos guias que havia saído um pouco antes para deixar tudo pronto na nossa chegada. Mais uma vez, esse tipo de carinho alimenta o corpo e a alma e é um privilégio ter acesso a tudo isso a quase 5.000 m.
Ficamos um tempo lá fora comendo sentados nas pedras, já que a partir desse acampamento não teríamos mais barracas ou domos refeitório e as refeições seriam feitas do lado de fora ou dentro das barracas, dependendo do clima.
Campo 1 (4.950 m.) / Campo 2 (3 de Guanácos – 5.490 m.)
A noite foi muito fria e fez -4 dentro da barraca. Levantamos cedo e começamos a nos arrumar para subir ao Campo 2, chamado 3 de Guanácos. Tomamos um café da manhã maravilhoso com tapiocas feitas por um dos guias. Tinha tapioca doce, salgada, as duas juntas. Um presente para começarmos bem o dia que prometia ser puxado.
Novamente a trilha toda é uma subida muito íngreme e subíamos muito devagar por causa da altitude e do ar rarefeito.
O tempo estava bastante frio e saímos com os fleeces e anoraks (casaco corta vento). Íamos parando, fazendo hidratação e comendo para ajudar na aclimatação.
O tempo foi fechando e esfriando ainda mais. No final da trilha estávamos andando com neve que havia começado a cair aos poucos e chegamos ao Campo 2 por volta das 16h com o tempo totalmente fechado e muito frio.
Os porteadores já haviam montado as barracas, o que nos poupou muita energia. Durante a tarde ventou e nevou muito. O acampamento ficou coberto de neve e fazia muito frio. O dia foi duro e longo, mas eu me sentia bastante forte. A noite prometia ser muito fria.
Campo 2 (3 de Guanácos – 5.490 m.)
A noite foi bastante difícil e mais uma vez não dormi praticamente nada. Ventou muito a noite toda e a barraca balançava bastante. Fez -10 dentro da barraca, mas estava bem agasalhada e não senti frio.
Às vezes caíam gotinhas de gelo no rosto, formadas pela condensação da respiração. É muito difícil dormir, pois as vias aéreas entopem totalmente e quando respiramos pela boca, seca a garganta e aí temos que levantar para beber água, que a essa altura está congelada e o processo todo fica muito complicado.
Aliás, essa é outra dificuldade. Tudo congela: barras de cereais, chocolate, cremes, colírio, soro fisiológico, enfim, se não colocarmos esses itens dentro do saco de dormir, junto ao corpo, não há como utilizá-los.
Como o clima é muito seco, sai muito sangue do nariz, coisa que continua acontecendo por pelo menos 10/15 dias quando voltamos da montanha, bem como um formigamento nas extremidades dos dedos dos pés e das mãos
Muitas vezes esquecemos que estamos em altitude e fazemos movimentos rápidos e quase desmaiamos pela falta de ar. Nessa altitude tudo deve ser feito muito lentamente.
O dia foi de descanso e fizemos uma pequena aclimatação, subindo a 5.650 m. Almoçamos sentados nas pedras e o cardápio foi pizza, aliás, pizzas maravilhosas. O clima estava ventoso e frio, embora tivesse sol. Não conseguíamos sair das barracas sem nossas plumas, que são os nossos casacos mais potentes.
Quando eventualmente ficávamos fora da nossa barraca jogando conversa fora em outra barraca da expedição e voltávamos, levava um tempo para a temperatura estabilizar e pararmos de tremer, porque tudo ficava completamente gelado.
Campo 2 (3 de Guanácos – 5.490 m.) / Cólera (6.000 m.)
Nos arrumamos, comemos tapioca, nos aquecemos com chá e café e seguimos rumo à Cólera. O dia estava ensolarado, embora frio e seguimos subindo rumo ao nosso último acampamento antes do ataque ao cume. Saímos tarde, por volta das 10h, depois dos porteadores desmontarem todo o acampamento e em 4h. de caminhada já tínhamos vencido os 510 m. de desnível e estávamos em nosso destino.
O caminho é lindo, com as montanhas nevadas ao nosso redor e o areal e pedras à nossa frente, num caminho aberto e amplo. Todos caminharam muito bem e estavam fortes e determinados.
Nesse acampamento já não temos mais água do rio e os guias precisam derreter água das geleiras. Vão com as pás, pegam a neve e derretem, mas é preciso muita neve para fazer pouca água. É um processo que dá trabalho e leva tempo.
Como estava muito frio, cada um foi ficando em sua barraca, arrumando as coisas, descansando, se hidratando e se preparando mentalmente para o grande momento do ataque ao cume, que seria feito de madrugada.
Pela primeira vez nessa viagem tive dor de cabeça por causa da altitude e não me senti muito bem durante um tempo. Fiquei conversando com a minha parceira de barraca, deitada em meu saco de dormir, até perceber que ficar sentada me fazia sentir melhor. Tomei um remédio e esperei passar.
Os guias vieram trazer água quente e comida liofilizada para jantarmos, mas confesso que não tinha a menor vontade de comer nada. Acho que a ansiedade do momento, além da altitude, travam meu estômago e começo a ficar inapetente. Não era a primeira vez que acontecia isso em uma expedição. Tentamos dormir um pouco ou pelo menos descansar.
Estava muito frio lá fora e nossa barraca estava muito mal posicionada, com um desnível que não nos deixava parar de escorregar. Na medida do possível tentávamos descansar, embora ficássemos acordando todo o tempo.
Cólera (6.000 m.) / Cume (6.962 m.)
O Carlos nos acordou às 3h para começarmos a nos arrumar, pois a ideia era sairmos às 4h30. Ele nos trouxe o café da manhã na barraca, pois estava muito frio lá fora, por volta de -10 e tínhamos que poupar energia para o que faríamos a seguir.
Precisávamos de energia e mesmo sem fome, me obriguei a comer, pois já não havia jantado na noite anterior e o esforço seria muito, muito grande a partir de agora.
Depois do café, começamos a nos vestir: 1ª camada, calça fleece e anorak nas pernas e meia grossa para a bota dupla. 1ª camada, fleece e pluma no peito e braços. Gorro, buff ou balaclava, lanterna de cabeça, luva fina e luva mitten.
Depois de toda essa parafernália, saímos para a madrugada fria. Começamos a caminhar e a subir em direção ao nosso objetivo, às 4h30, conforme combinado.
Obviamente estava um breu e fomos passo a passo subindo a montanha e enxergando só os nossos pés e o facho da lanterna da pessoa da frente.
Montanha é 70% cabeça e 30% corpo. Se não estivermos muito concentrados, focados e tranquilos, podemos colocar tudo a perder, pois em condições adversas, é muito fácil nos desestruturarmos e é preciso muito controle emocional para vencer medos, frio intenso, escuro total, desconforto e ansiedade.
Seguimos caminhando e eu tinha a sensação de que os dedos dos pés estavam congelando, tamanho o frio que sentia.
Montanha acima e logo após chegarmos à Piedras Blancas um dos integrantes disse que ia parar. O Carlos ainda tentou demovê-lo, mas ele estava decidido, disse que estava no seu limite e muito cansado. Tínhamos andado por volta de uma 1h30. Lamentamos e um dos guias argentinos retornou com ele ao acampamento.
Seguimos nosso difícil caminho, ladeira acima e eu me sentia muito cansada e sem fôlego. Parecia que o pouco ar que entrava não era capaz de me saciar e sentia muita dificuldade em respirar. O peito não abria o suficiente e a sensação que dava é que estava tudo fechado.
Chegamos à Independência ainda no escuro e paramos para nos hidratar, comer algo e colocar os crampons nas botas, pois o trecho com pedras começaria.
Eu sentia muito frio nos pés, além de ter as mãos duras e geladas. O Carlos disse que a partir de agora seria assim mesmo e disse para movimentarmos os dedos o tempo todo. Disse que enquanto sentimos dor, é bom, mas seria preocupante se parássemos de senti-la.
Continuamos nossa marcha e pouco tempo depois foi a hora de outro integrante desistir e pedir para parar.
Começamos a entrar no Gran Carreo, que é um trecho muito, muito difícil, íngreme e com um vento forte. O vento batia lateralmente e entrava pelos óculos, direto nos olhos. Fiquei com muito medo de ter um congelamento e puxava o capuz da pluma para cobrir o rosto o tempo todo. Andava com um bastão em uma das mãos e com a outra cobria o rosto com o capuz.
Esse trecho cheio de areia e pedra que fazem as botas com crampon escorregarem o tempo todo, é extremamente íngreme e tão cansativo, que tinha vontade de parar, sentar e não levantar mais. Tinha a sensação de estar andando por inércia, sem pensar, tamanho o cansaço. Eu olhava para cima e o caminho parecia não ter fim.
Estava tão concentrada na tarefa de subir e seguir o ritmo, que nem olhei para trás para ver os outros na fila. Só me dava conta do cansaço extremo em que todos estavam quando parávamos para nos hidratar, comer e descansar.
Continuávamos todos extremamente cansados. Você coloca um pé e escorrega, você força a perna e escorrega novamente e tem que seguir fazendo muito mais força do que o normal para subir as pedras, pois o terreno é extremamente escorregadio. Tudo isso numa altitude cruel. É extenuante. A gente olhava o cume e ele estava tão distante e já estávamos tão no limite...
Seguimos lentamente até chegar à La Cueva e paramos para descansar por volta de 40 minutos. Nos sentamos exaustos e aí comecei a observar as outras pessoas do grupo: um, que é atleta e muito forte, estava exausto. O outro, mal falava, um estava entregue e andava de maneira descoordenada. Vários com os rostos muito cansados e poucos, cansados, mas bem.
Depois de descansarmos, seguimos rumo à temível Canaleta, que é um longo e dificílimo aclive todo em neve onde temos que fincar os bastões e crampons para conseguir subir.
A Canaleta é um trecho extremamente cansativo e seguíamos a passos lentíssimos, vencendo cada pedra e subindo extenuados em uma fila indiana de zumbis. Subíamos um pouco e parávamos para respirar e descansar o tempo todo.
Logo depois da parte com neve, chega o lance final em pedra, que faz um zigue zague até chegar ao cume. É tanto esforço, que falta ar o tempo todo.
Então, depois de mais de 12h de exercício físico sobre-humano, por volta das 16h30, após vencermos quase 1.000 m de desnível, chegamos ao cume do Aconcágua (6.962 m.). Cheguei e deitei no chão para respirar e não cair, já que fiquei completamente zonza quando me abaixei.
Fiquei deitada um tempo, tendo outros companheiros ao meu lado, também deitados. Aos poucos fomos melhorando e cada um levantando e caminhando pelo cume, tirando fotos, todos se abraçando e confraternizando, admirando a quase impossível face sul do Aconcágua e percebendo a grande conquista que acabávamos de ter.
Do total, 11 pessoas chegaram ao cume, sendo 8 clientes e 3 guias. Estávamos exaustos, mas exultantes com mais um cume, no topo do Sentinela de Pedra.
A montanha foi perfeita e nos recebeu com um dia lindo, claro, pouco vento e sol.
Ficamos uns 40 minutos curtindo nossa conquista, mas como todo montanhista sabe, o cume é somente a metade do caminho e agora tínhamos todo o difícil retorno para fazer e descer.
Descemos o primeiro trecho de pedra, escorregando e tropeçando muitas vezes, até chegarmos à Canaleta com neve. Descíamos e eu queria parar a todo o instante porque estava exausta. Ia parando nas pedras e um dos guias dizendo que tínhamos que descer.
Cheguei à Cueva, onde havíamos deixado nossas mochilas para subirmos mais leves e descansar e fiquei observando os outros chegarem e um vinha pior que o outro. Um deles, que vinha logo atrás, sentou e dormiu instantaneamente; outro praticamente desabou no chão; um não conseguia descer uma parte, travou e quando foi sair, levou um tombo. Cada um lidando com a exaustão de uma maneira diferente.
Descansamos uns 30 minutos e continuamos. Como os guias estavam acompanhando aqueles que não estavam muito bem, e por isso desciam lentamente, eu e outro amigo pedimos para seguir na frente para adiantar, pois ainda tínhamos um longuíssimo caminho.
A partir desse momento paramos muito pouco, ganhamos distância e fomos seguindo montanha abaixo com ganas de chegar e poder descansar. Seguíamos, andávamos, escorregávamos e o tempo ia passando, passando e nada de chegar.
Em determinado ponto éramos só eu e mais dois integrantes e já não víamos os outros. Um deles às vezes escorregava atrás de mim, caía e dormia automaticamente. Numa das vezes tive que chamá-lo para que se levantasse.
Para quem não tem familiaridade com o montanhismo, pode parecer loucura uma coisa dessas acontecer, mas o nível de exaustão física é tão intenso, que alguém pode cair e dormir no mesmo instante, por mais estranho que possa parecer. Continuamos descendo e em um ponto do caminho começou um vento tão forte, que gelava tudo e dificultava ainda mais a tarefa. As horas passando, o tempo esfriando e nem sinal do acampamento.
Em um momento estava muito frio e eu estava muito cansada e falei para pararmos um pouco. Nos abrigamos atrás de uma espécie de depósito, uma casinha de madeira, sentamos na neve e esperamos o vento diminuir um pouco. Sentamos os três muito próximos para tentar nos aquecer e novamente um deles dormiu.
Deixamos o abrigo e seguimos. O bigode de um deles estava congelado, com gelo pingando, tamanho o frio. O vento foi dando uma trégua e seguimos já com o dia terminando e a noite chegando de mansinho.
Estávamos no limite, mas a paisagem era linda. Já avistávamos o acampamento lá embaixo, ainda longe. A pirâmide do Aconcágua se desenhava no horizonte ao nosso lado e a estrutura meio lunar nos acompanhando por todo o tempo. Essa imagem da pirâmide é um clássico, mas estava tão cansada, que não consegui nem pegar a câmera para tirar foto. Essa maravilha vai ficar guardada só na minha cabeça e nas minhas lembranças.
Nós três fomos os primeiros a chegar ao acampamento por volta das 21h15, já com noite alta e fomos recebidos pela guia argentina. Nos abraçamos e cada um foi direto para sua barraca, exausto.
Nesse dia insano e intenso, eu tinha tomado 1 gel e comido 2 barras de cereais e só. Depois de mais de 17 horas de exercício físico, eu merecia um saco de dormir e algumas horas de sono.
Cólera (6.000 m.) / Cume (6.962 m.)
Tomamos café dentro da barraca, pois fazia muito frio lá fora e fomos nos arrumando aos poucos para a descida até o campo base do outro lado da montanha. Arrumamos tudo, desmontamos acampamento e partimos por volta das 10h30.
A descida também é complicada e em muitas partes temos que “esquiar” a areia com pedras, o que exige cuidado, pois podemos enroscar em alguma pedra e o risco de cair existe o tempo todo. Eu sempre levo alguns tombos e caio de bunda várias vezes.
Chegamos à Plaza de Mulas por volta das 14h30 e entramos no domo refeitório, coisa que não víamos há 5 dias e nos serviram hambúrguer, pizza e coca cola. Almoço dos deuses.
Alguns resolveram tomar banho, outros foram arrumar as bagagens e o dia foi passando. Os guias trouxeram vinho para brindarmos ao sucesso da expedição e depois fomos visitar o Miguel, um pintor que vive 3 meses por ano no campo base e tem a galeria de arte mais alta do mundo, que consta no Guinness Book. Fizemos uma festa na “galeria” dele e ficamos até de madrugada ouvindo música, dançando e conversando. Até tango e samba nós dançamos.
Plaza de Mulas (4.300 m.) / Horcones / Mendoza
Tomamos café da manhã, arrumamos as marinheiras e partimos para a nossa longa e última jornada dessa expedição. Teríamos 36 km de caminhada rápida até a entrada do parque e mais 3h de transfer até Mendoza.
Saímos de Plaza de Mulas por volta das 11h e começamos a caminhar rapidamente pelas pedras da Costa Brava, nos equilibrando e de repente o dia que começou muito gelado, tinha um sol que já se mostrava forte, com tendência a piorar, até atingirmos a famosa Playa Ancha, que são 12 km de uma paisagem que não muda e parece que não acaba nunca.
É uma grande planície aberta, com montanhas ao redor, cheia de pedras sobre as quais andamos e que machucava ainda mais os meus pés com enormes bolhas nos dedões, lembranças da descida do cume.
A paisagem era bonita, mas o defeito é parecer infinita. O sol veio com toda a força e quase não tinha sombra, a não ser uma ou outra grande pedra pelo caminho.
Um dia, um frio terrível, onde nem podemos sair direito da barraca, com direito a ventos fortes e neve. No outro, um sol que castiga o tempo todo sem pena. Haja resistência física para lidar com tanta diversidade climática.
Andamos, andamos, andamos e muitíssimas horas depois, chegamos à Confluência, depois de termos cruzado com as mulas carregando as bagagens, além de outras expedições e cruzado o rio que estava muito raso.
Paramos lá para nos hidratar, comer frutas, descansar um pouco e depois seguir rumo à entrada do parque (Horcones). Chegando lá por volta das 18h30, nos confraternizamos novamente e pegamos a van que nos levaria à Mendoza.
Paramos no caminho para jantar, regado à cerveja e vinho e depois todos caíram no sono até Mendoza, quando chegamos por volta da meia noite.
Chegamos ao hotel, descarregamos as marinheiras imundas, fomos para os quartos tomar banho e dormir.
Mendoza
Vou resumir os dias que tivemos em Mendoza na volta. Tivemos um almoço dos deuses em uma vinícola, que começou às 13h30 e se estendeu até às 21h, com direito a muitas garrafas de vinho, menu com 4 pratos de sabores divinos e apresentações primorosas, muitas fotos, risadas e histórias para se guardar para sempre na memória e no coração.
Visitamos outras vinícolas e nos encantamos com tudo, fizemos incursões gastronômicas fantásticas pela linda cidade de Mendoza, tomamos vinho com comida japonesa, com carne, com peixe, com empanadas, com queijos, com tapas, com tudo o que se possa imaginar. Fomos a restaurantes chiques, simples, a bares, mudamos de hotel, mudamos de roupa, rejuvenescemos as almas, limpamos a mente e nos divertimos com pouco e com muito.
Histórias que farão parte para sempre da minha vida!! Hasta la vista, yo te extraño a ti, Argentina.
Obrigada,
Sabrina Paschoal
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