Dia 31 de Outubro se comemora o Halloween na maior parte do mundo. No Brasil, nessa mesma data em 2016, as bruxas pareciam estar soltas. Um ciclone extra-tropical atingia com força o litoral Sul-Sudeste do País provocando estragos na orla marítima de várias cidades. Recebi um e-mail naquela noite onde se lia "O navio está atrasado". Isso significava que eu iria demorar pelo menos mais um dia para embarcar em minha viagem rumo ao Sul do Planeta. Rumo ao chamado sétimo continente. Não seria meu sétimo ainda, pois nunca estivera na África nem na oceania. Mas seria certamente o mais especial. Perder um dia, ainda era uma previsão e eu temia o pior. Certa vez ouvi que temer o pior é perda de tempo. Devemos é esperar sempre o melhor, Afinal, esperei muitos anos por aquele momento, era chegada a hora de partir para a Antártica.
O navio em questão, era um yate de 4.200 toneladas, 90 metros de extensão e 15 de largura. Tinha 59 cabines com capacidade para 114 passageiros e 78 tripulantes. Acabara de ser reformado para uma expedição especial e centenária: A Shackleton´s Centenary Expedition 2016, dedicada à prestar homenagens ao centenário da expedição de Shackleton a bordo do HMS Endurance (1914-1917). As propostas eram recriar passagens da viagem do Endurance, seguir as pegadas de Shackleton na Geórgia do Sul na dificílima travessia a pé da ilha com um grupo de alpinistas, e tentar o desembraque na Ilha Elefante. Além disso, iríamos estudar o legado de várias expedições à Antártica, através de palestras de historiadores e cientistas que também cobririam aspectos geográficos, geológicos, metereológicos e de fauna do continente. Gelo, pinguins, elefantes marinhos, pássaros, tudo seria ricamente discutido com o grupo de viajantes apaixonados não só pela Antártica mas, especialmete de aficcionados por Shackleton.
Depois de receber a mensagem sobre o atraso da nossa partida, eu soube, através de outros passageiros, que já aconteceu de navios em cruzeiro para a Antártica nem mesmo saírem do porto pois sofreram avarias causadas pelo mar revolto na tentativa forçada de navegar em situações extremas. Bem, eu temia que isso acontecesse mas não queria acreditar nessa possibilidade. Afinal, essa era a última das 3 temporadas das expedições centenárias do Endurance e só duas empresas as operavam: A Polar Latitudes, com a qual eu viajaria e a Lindblad, esta com selo da National Geographic, o que trazia um custo altíssimo que naufragava qualquer esperança de viajar ainda aquele ano.
Outra forma de se viajar até a Geórgia do Sul é através de veleiros particulares que fazem expedições à Antártica. Todos devem ter autorização prévia do governo local além de doumentos de permissão (Permits) para todas as atividades pretendidas na ilha.
Eu desejava ir para a Antártica desde 1992 mas não sabia como, nem estipulei prazo. Quando descobri as viagens temáticas sobre Shackleton, eu encontrei o que sempre procurei, algo extraordinário para um lugar extraordinariamente incrível. Não bastava ir até a Península Antártica. Eu queria mais que tudo, ir para a Geórgia do Sul. Os meus objetivos eram caminhar os 6 km finais da Travessia da ilha, em um trekking mais curto, chamado de Shackleton Walk, e visitar o túmulo de Shackleton em Grytviken. O desembarque na Ilha Elefante seria a cereja do bolo mas algo sabidamente dificílimo. Começei a tentar uma vaga em meados de 2014 e consegui em 2016, na última temporada, na última chamada, a útima cabine.
O Embarque
Buenos Aires amanheceu cinzenta e fria. Quando chegamos na zona portuária, chovia torrencialmente. Sentada dentro do ônibus que nos levava em direção ao navio, eu não escondia a ansiedade perdida em meio a containers, observando os outros passageiros. Do Brasil, apenas eu e minha amiga Juliana Schlaad, parceira de trabalho na ABMAR (Associação Brasileira de Medicina de Áreas Remotas e Esportes de Aventura) e companheira de empreitadas no Trekking ao Campo Base do Everest e na subida do Monte Roraima. Ela topou meu sonho. Absorta em pensamentos, eu seguia imaginando como seria a nossa convivência nos próximos 22 dias. Além disso, havia o mistério sobre quem seria a nossa colega de quarto já que estavamos compartilhando uma cabine tripla feminina. Imaginava quem seriam os outros loucos como eu por Shackleton e histórias polares. Seria essa a minha tribo? Olhando por sobre os bancos do ônibus, via muito mais cabeças grisalhas, gente madura, acostumada a viajar pelo mundo. Quantas história eles teriam para me contar? Eu não sabia nada sobre cruzeiros. A ideia que eu tinha era a de viajar em um hotel 5 estrelas flutuante, cheio de gente, com música alta e disperdício de comida. Essa era a minha primeira experiência confinada com desconhecidos em alto-mar. Seríamos pouco mais de 100 passageiros, a música se restringiria a um pianista russo com muito karaôke no final das noites de calmaria, e a comida teria um menu enxuto porém requintado. Foi assim, em um cruzeiro turístico e fora dos padrões que eu conseguiria realizar o sonho de uma vida: O de pisar na Antártica de Shackleton e seguir suas pegadas.
Fomos muito bem recepcionados pelo Staff da Polar latitudes e tripulação do Hebridean Sky. Depois de entregar o passaporte fomos arrumar aquela que seria a nossa casa pelas próximas 3 semanas. Ainda ancorados, experimentamos as jaquetas, as botas, os coletes salva-vidas e fizemos testes e simulações de segurança durante a tarde. Em caso de emergência, já sabíamos como proceder. Fomos ganhando aos poucos familiariade com as áreas comuns do navio entre os 6 decks.
Os decks eram identificados através de números e nomes. Cada um deles, prestava homenagem a um explorador polar com fotos de suas respectivas expedições à Antártica. No deck 2, uma foto do norueguês Roald Amundsen, conquistador do Pólo Sul e da Passagem Noroeste no Àrtico, no seu famoso traje Inuit, indicava a área do restaurante. As fotos de Richard Byrd, comandante americano, com o avião que foi o primeiro a sobrevoar o Pólo Sul, ficavam no terceito deck, onde aconteciam as palestras e o brienfing do final de todos os dias. O Deck número 4 era dedicado a Douglas Mawson, geólogo australiano, que liderou a Australasian Antartic Expedition, quando fez importantes descobertas científicas e geográficas sobre a Antártica e viveu uma das mais épicas histórias de sobrevivência sozinho no gelo. O capitão britânico Robert Falcon Scott também decorava o quarto deck, coincidentemente o andar da bilbioteca do navio. Scott, conhecido por gostar de escrever, foi para a Antártica em duas ocasiões. No quinto deck do navio, ficavam as fotos das expedições de Scott. O privilégiado deck 6, o mais alto e com as cabines mais luxuosas não poderia ser de ninguém menos que Shackleton, o grande nome dessa expedição. Nas paredes várias fotos de Frank Hurley, o fotógrafo do Endurance, e a foto de Shackleton usando um sueter (com suspensórios) que se tornou icônico. Hoje em dia, a peça é fabricada e vendida no Reino Unido com a marca Shackleton´s Mens wear. Descobri que a paixão de algumas pessoas por tudo que envolve Shackleton realmente não tem limite.
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Famosa foto de Shackleton. |
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A Saga do Endurance
A Expedição Imperial Trans-Antártica de Shackleton tinha o objetivo de cruzar o continente do mar de Weddell ao mar de Ross, passando pelo Pólo Sul. Para isso dois navios seriam usados: o Endurance e o Aurora, que iria esperar o grupo do outro lado da travessia. Do Aurora se fala menos, mas assim como no grupo do Endurance, os homens enfrentaram uma luta por sobrevivência e três vidas foram perdidas. A Saga do Endurance é bem conhecida e está também bem descrita em outros artigos do Portal Extremos. Resumindo, o navio ficou preso no gelo antes do grupo conseguir desembarcar e foi esmagado e afundado pela força do mar congelado. Toda a tripulação foi conduzida por Shackleton em uma jornada de sobrevivência acampando no gelo flutuante e atravessando o mar aberto em botes até atingir terra firme em uma ilha isolada. Nesta ilha, a ilha Elefante, 22 homens ficaram 4 meses esperando serem resgatados enquanto outros 6 atravessaram 1300 km em um mar de fúria até a Geórgia do Sul na tentativa de um resgate. Porém, chegando lá, sem conhecimento do interior da ilha e nem habilidades como alpinistas, tiveram que atravessar montanhas e glaciares em um trekking de vida ou morte. Esse percurso, hoje em dia, pode ser completado em 3 dias, tem 35 km e se chama Shackleton´s Traverse.
Sobreviventes
Sabia que teríamos a bordo familiares dos sobreviventes do Endurance. Para mim, soava algo como conhecer uma celebridade, era como estar mais perto ainda de Shackleton e dos grandes nomes dessa história.
Phillipa Wordie, era neta de James Wordie, geólogo e chefe dos cientistas do Endurance. Wordie foi, anos mais tarde, presidente da Royal Geographic Society e consultor de expedições tanto na Antártica como no Everest. Pippa não conheceu o avô em vida. Essa era a sua terceira viagem aos mares do Sul. Em 2005, ela e seu pai, conseguiram desembarcar na Ilha Elefante, algo que a marcou profundamente. Dessa vez, ela tentaria o desembarque mais uma vez. Eu também sonhava dia e noite com essa possibilidade. Durante a viagem, Pippa me mostrou uma relíquia de família: uma cópia do diário do avô. O diário foi deixado à disposição para a leitura a bordo e no final da viagem seria leiloado para arrecadar fundos para o Museu Marítimo da Geórgia do Sul.
Durante aquela mesma semana, uma outra expedição partiria como a primeira da temporada para realizar a Traverse. Nela estavam a neta de Tom Crean, que foi um dos três integrantes da travessia de Shackleton, seu marido e seus dois filhos. Os irlandeses chegaram à Geórgia do Sul no Veleiro Pelagic do Skip Novak, um dos maiores velejadores dos mares antárticos e que já fez a travessia da ilha 5 vezes. Mas as coisas não saíram com o planejado. Aillen, a protagonista da expedição, quebrou a perna durante a descida de um glaciar e teve que ser resgatada. Não existem serviços médicos e de resgate na Geórgia do Sul, não existe aeroporto e pouso de helicópteros. O resgate demorou 2 dias em terra e mais 4 dias de navegação até as Falklands onde foi feito o transporte aéreo até Punta Arenas, no Chile para o tratamento definitivo da fratura. Aillen encontra-se recuperada na Irlanda e o restante do grupo conseguiu completar a traverse em nome da família Crean.
Nos Mares do Sul
Zarpamos do mesmo porto que Shackleton com o Endurance 102 anos e 6 dias depois. Demorou uma eternidade para sairmos do Mar del Plata. A saída para mar aberto durou a tarde toda e boa parte da madrugada. Não dormi aquela noite. Olhos arregalados na escuridão da cabine, memorizando onde guardara tudo. Onde estavam roupas, luvas, gorros, câmeras e o mais importânte: as cartelas de medicamentos contra enjoo. No Brasil e na Argentina não encontrei os Patchs, ou adesivos de escopolamina, o que facilitaria a prevenção dos sintomas e me deixaria livre dessa preocupação.
A primeira perna do percurso foi de Buenos Aires até as Falklands. levamos 2 dias na travessia. As ilhas fazem parte do território ultra-marinho britânico e têm sua importânica histórica marcada pela guerra das Malvinas em 1982. Foi bom desembarcar. As Ilhas representam algo com o primeiro contato com a Antártica, com lojas de suvenirs temáticas. Visitamos o Historic Dockyard Museum, onde acontecia coincidentemente a Shackleton´s exhibition do Scott Polar Research Institute, o Museu polar da Universidade de Cambridge.
Senti mesmo o que é navegar nos Mares do Sul durante os 1.450 km da travessia entre as Falklands e a Geórgia do Sul. Quase dois dias e meio. Enjoei muito mas os medicamentos surtiram efeito e usei também as chamadas "sea bands", pulseiras que fazem a compressão de pontos anti-enjoo no punho. Superstição ou não, as pulseiras funcionaram. Tinhamos um médico à disposição e felizmente ele teve pouco trabalho. Qualquer acidente ou doença grave implica em voltar para as Falklands e pode comprometer e até abortar a viagem do grupo todo.
Geórgia do Sul
A Geórgia do Sul, é uma ilha que juntamente com as Ilhas Sandwich são território ultra-marinho britânico desde 1985. É uma ilha sub-antártica estabelecida em 1904 quando lá chegaram os primeiros baleeiros. A descoberta da ilha, entretanto, é carregada de histórias. Em 1675, um navio carregando o comerciante londrino Antonie de la Roché, foi afastado de seu curso no cabo Horn e se abrigou em uma larga baía em uma ilha. Os registros se perderam mas tudo indica que o navio tenha ancorado no local agora conhecido com Fiord Drygalski. O primeiro desembarque, entretanto, aconteceu em 1775 na segunda viagem do Capitão James Cook ao redor do mundo. Cook desembarcou no lugar que chamou de Possession Bay e tomou assim posse da Ilha em nome de sua Majestade. Navegando mais ao sul na costa, ele achou que tinha descoberto o tão sonhado continente do Sul, a Antártica, até que ele se deu conta que não se passava de uma ilha. O ponto onde ele descobriu seu equívoco é chamado de Cape Disappoitment ou Cabo da Decepção. Alertados sobre os relatos de Cook, navegantes e caçadores de focas e elefantes marinhos foram atraídos para a Ilha. No início do século XX, os baleeiros chegaram e estabeleceram estações e indústrias baleeiras. Mais de 175.000 baleias foram capturadas. A última estação foi fechada em 1965. Depois disso, a ilha já foi ocupada como estação científica e base militar. Não há habitantes permanetes na Ilha mas os gabinetes do governo estão em King Edward Point onde a British Antartic Survey opera bases científicas. Existe sempre uma equipe trabalhando no Museu da Geórgia do Sul durante a temporada de verão. Por ano, 50 navios com cerca de 6.000 passageiros e veleiros com suas próprias expedições chegam na Ilha. Todos devem ser integrantes da IAATO (International Association of Antartic Tour Operators) e se submeter às regras de preservação do governo. Com 43 locais permitidos para desembarque, tudo é controlado e permits devem ser emitidos com antecedência para as atividades dos alpinistas no caso da Traverse.
Localizada em um ponto remoto do atlântico sul, a ilha tem 170 km de extensão e de 2 a 40 km de largura e formação geológica da mesma placa tectônica, a placa de Scotia, da cordilheira dos Andes e que mais para o sul ainda dá origem às montanhas trans-antárticas. Suas montanhas e glaciares são vistos de longe. Sua posição no oceano sul, causa um clima frio, quase antártico. O Monte Paget, ponto mais alto da ilha tem 2.934m de altitude e outras 12 montanhas têm mais de 2.000m. Colônias de Pinguins Rei em St. Andrews Bay e em Salisbury Plain têm juntas 450.000 pares. Pássaros como Petréis e albatrozes estão por toda a parte. Visitamos Prion Island, onde ninhos do Wandering Albatross, a maior ave em envergadura do mundo, são preservados. Não é a toa que a Geórgia do Sul é considerada "O Serengueti" da Antártica.
Na verdade, a Geórgia do Sul é o local que marca o término de duas jornadas. Ela foi o destino da viagem épica de Shackleton e também foi o final da sua jornada de vida. A coincidência de ser a última morada de um herói, enterrado perto do local do seu triunfo, adiciona um brilho especial à história da ilha.
A Travessia de Shackleton na Geórgia do Sul
Antes que Shackleton e os outros 5 homens a bordo do James Caird pudessem aportar na Geórgia do sul em 8 de Maio de 1916, eles tiveram que aguardar a luz do dia e acabaram enfrentando um verdadeiro furacão que quase ceifou a vida deles. Quando a tempestade passou, eles conseguiram desembarcar na Baia de King Haakon. Lá permaneceram abrigados em uma caverna (Cave Cove) onde descansaram por 4 dias. Depois desse descanso o James Caird foi lançado ao mar contornando a baia até alcançarem um abrigo melhor protegido das ondas que foi chamdado de Peggotty Camp, em referência à obra do escritor inglês Charles Dickens.
Não havia nada desse lado da ilha onde se encontravam. Shackleton sabia de visitas pregressas, que todas as estações baleeiras ficavam do outro lado e temia que nem todas estivessem operando no tardar da temporada. Se havia um lugar onde seria certo encontrar vida humana, era a estação de Stromness, também o caminho mais longo e era para lá que eles deveriam seguir. Com o bote imprestável para navegar, só restava a opção de atravessar a ilha a pé. Nunca, desde o descobrimento da ilha, ninguém havia se aventurado no interior da Geórgia do Sul. A unica pista nas mãos de Worsley, o capitão do Endurance e hábil navegador, era um mapa impresso com o controno da ilha feito por uma expedição alemã em 1911.
Assim que o tempo permitiu, às 03:00 de 19 de Maio, Shackleton, Worsley e Crean partiram para a jornada de vida ou morte. Os outros 3 homens ficariam aguardando no acampamento. Optando por escalar leve, eles deixaram os sacos de dormir para trás e levaram comida para 3 dias estocada em meias penduradas no pescoço, um fogareiro Primus com parafina para 6 refeições quentes, uma caixa com 48 fósforos, um machado e uma corda de 15 metros. Worsley carregava ainda 2 compassos, binóculos, um cronômetro e o mapa. Segundo o mapa, a distância até Stromness era de 27 km em linha reta. Mas a rota deles poderia ser tudo, menos reta. Para enfrentar os campos de gelo e glaciares, McNish, o carpinteiro do Endurance, martelou pregos retirados da madeira do James Caird no solado das botas dos alpinistas.
Shackleton mais uma vez foi o líder, indo na frente, com a árdua tarefa de abrir o caminho de gelo. Seguiram subindo encordados uns aos outros através do Murray Snowfield parando por 2 minutos a cada 15 ou 20 minutos. Desde que tinham deixado a ilha Elefante tinham andado muito pouco e ainda sentiam os efeitos de terem passado 16 dias navegando apertados em um bote. Iluminados com o brilho da lua cheia, passaram por picos nevados, desceram crevasses e glaciares. Em um momento, achando-se perdidos pararam para conferir a rota com o mapa em um ponto, que foi nomeado mais tarde de Shackleton Gap. Com o nascer do sol do primeiro dia, fizeram então um contorno de 180º e seguiram caminhando até o Trident (Picos nevados em formato de Tridente), Passaram todo o dia na tentativa de encontrar um acesso para o outro lado e no quarto colo conseguiram encontrar o local ideal para iniciar a descida. Já estava escuro quando Shackleton sugeriu que eles deveriam escorregar montanha abaixo. Sem os sacos de dormir, na altitude, poderiam congelar se parassem durante a descida difícil. E assim, sentados, enfileirados, uns nos outros eles desceram cerca de 275 metros, segundo shackleton descreveu depois. Hoje, com a camada de gelo mais fina, expondo as rochas, esse tobogã seria impossível. Uma curta marcha através do Glaciar Crean os levou até a visão de Fortuna Bay. Desceram o glaciar até a baia em um local chamado de Breakwind Gap. De Fortuna Bay, subiram o último glaciar em direção a estação baleeira de Stromness. Nesse trajeto final, Shackleton pensou ter ouvido um apito. Eram 06:30, o horário que Shackleton sabia que os baleeiros eram acordados para trabalhar. Se assim fosse, um novo apito seria ouvido às 07:00 quando de fato o trabalho iniciava. Então às 07:00 o som ficou claro, era o apito que vinha da estação localizada a 8 km dali. Essa era a prova que estavam no caminho certo. De Fortuna a Stromness eles ainda tiveram que fazer um rapel com a corda e desceram uma cachoeira. Hoje em dia, qualquer pessoa que olhe a cachoeira, se pergunta porque eles não desceram pelas encostas ao lado dela usando o machado e a corda como estavam fazendo nas outras descidas até então. Talvez, descer os 15 metros da agora chamada Shackleton´s waterfall tenha sido a melhor opção. Enxarcados e tremendo, eles caminharam os quilômetros finais através do vale. Ao chegarem na praia, estavam em farrapos com as mesmas roupas que vinham usando nos últimos 7 meses. Eram 3 figuras irreconhecíveis quando entraram na casa do governador. Um homem ao ver os três perguntou: " Mas que diabo são vocês?" e um deles balbuciou : "Meu nome é Shackleton".
A Traverse atualmente é realizada em uma rota bem parecida com a original e geralmente se faz dois ou três acampamentos em locais como o Murray Snowfield, no Trident e no Breakwind Gap. Entretanto, esses locais podem variar conforme as condições climáticas.
The Third Man Factor
Nos relatos que seguiram após a travessia épica da Geórgia do Sul, os três homens tiveram a sensação da presença de uma quarta pessoa os acompanhando. Shackleton escreveu: 'Eu sei que durante aquela longa marcha de 36 horas através de montanhas anônimas e glaciares da Geórgia do Sul pareceu para mim que éramos quatro, e não três'. Semanas depois Worsley disse a ele: 'Chefe, eu tive a sensação curiosa que havia uma outra pessoa conosco'. E Crean concordou.
Esse fenômeno de se imaginar a presença de uma pessoa extra é conhecido como o fator da terceira pessoa, ou The Third Man Factor, nome dado pelo escritor T.S Eliot que escreveu um poema sobre o assunto, inspirado ao ler a experiência de Shackleton. Esse fator já foi experenciado por muitas pessoas, entre elas, exploradores, velejadores solitários, pilotos, alpinistas e sobreviventes de naufrágios. O montanhista Joe Simpson, escreveu em seu livro "Tocando o Vazio", que sentia a presença de uma voz que o guiava e estava sempre certa.
Se a quarta companhia de Shackleton era um anjo da guarda ou um mecanismo de sobrevivência da mente, ela serve de demonstração do quão fragilizados e se sentindo perto do fim eles estavam durante meses a fio e naqueles últimos quilômetros sabendo estarem perto da salvação.
A Traverse
A travessia forçada de Shacketon, Worsley e Crean na Georgia do Sul é considerada uma das maiores jornadas de trekking da história Polar. Retraçar essa rota é a ambição de muitos aventureiros mas muitas vezes não é possível passar através dos mesmos trechos por motivo de segurança devido à velocidade dos ventos e às tempestades de neve.
A primeira tentativa de recriar a rota de Shackleton na Geórgia do Sul foi feita por Ducan Carse. Após a segunda guerra mundial, o marinheiro britânico decidiu que queria explorar as ilhas sub-antárticas e por sugestão da Royal Geographical Society e do Scott Polar Institute, a ilha escolhida foi a Geórgia do Sul. Carse organizou e liderou a South Georgia Survey de 1951-57, e suas pesquisas resultaram no primeiro mapeamento topográfico da ilha. Em 1961, ele decidiu viver como um ermitão em uma parte remota da ilha chegando a construiur uma casa para invernar. No entanto, 3 meses depois seu acampamento foi destruido pos ondas gigantes e ele teve que sobreviver ao inverno até que conseguisse contato com um navio, o que ocorreu 116 dias depois. No museu de Grytviken, Ducan Carse tem um local de destaque. Na sala principal do museu ainda estão uma réplica do James Caird, e a corda e o machado originais utilizados na travessia de Shackleton.
Apesar do esforço de Carsen, a primeira traverse completa foi feita em 1964 na Malcom Burley´s Combined Services Expedition. Montanhistas famosos da atualidade como Dave Hahn em 2006 e Reinhold Messner com Conrad Anker em 2007, também já completaram a Traverse. Recentemente, tem se tentado incluir a Shackleton´s Traverse ao Explorer Gran Slam, um troféu que inclui caminhar o último grau de latitude (111km) até os dois Pólos geográficos da terra e alcançar as montanhas mais altas de cada continente, o chamado Seven Summits. Há ainda aqueles que consideram o True Explorer Grand Slam, que acrescenta aos feitos do Explorer Gran Slam, a visita aos Pólos Norte e Sul Magnéticos e escalar todas as 14 montanhas acima de 8.000 metros.
O Trekking Centenário
Ao chegarmos na Ilha, assim como Cook no século XVIII, tivemos a nossa decepção. Devido às condições climáticas, não seria possível ancorar em King Hakoon´s Bay. Foi esse o local exato que Shackleton aportou. No alto das montanhas deste lado oeste da Ilha, ventos de 100km/h não permitiram que o nosso grupo de alpinistas começasse a travessia da Ilha . A proposta era que eles fizessem o percurso em 3 dias e encontrassem o restante de nós já do outro lado, em Fortuna Bay para juntos seguirmos até a estação baleeira de Stromness. Esse trajeto mais curto, que todos faríamos juntos, tem 6 km de distância e elevação de apenas 300 metros e leva o nome de Shackleton Walk.
Chegamos em Fortuna Bay às 05:30 de uma manhã chuvosa. A programação era explorar a baia como atividade de lazer matinal, voltar para o café da manhã e a tarde subir o glaciar para iniciar a Shackleton Walk. O staff aproveitaria para checar as condições locais e do gelo. Eu tomei a decisão de não desembarcar. Estava tão ansiosa pelo trekking que resolvi ficar no navio salvando energia. Essa estratégia, foi adotada porque em 2015, em uma outra madrugada fria, eu havia saido para escalar o Kala Patthar, no Nepal e não consegui na tarde do mesmo dia, chegar ao Campo Base do Everest. Uma combinação de fatores fez com que eu sofresse do mal de montanha e tive que ser resgatada. Eu não queria arriscar no dia que eu considerava um dos mais importantes da expedição. Analizando depois, uma coisa não tinha nada a ver com a outra, mas era assim que minha mente se comportava naquele momento.
Os botes voltaram e o grupo retornou. Dentro do navio, eu seguia um por um procurando alguém do staff, e a notícia veio, notícia ruim chega rápido na Antártica também. A Shackleton Walk saindo de Fortuna Bay estava cancelada. Seria muito arriscado caminhar por causa das condições do gelo.
Uma vez abortada a Traverse e a Shackleton Walk, contornamos a ilha navegando e rumamos para a estação baleeira de Stromness, o local que marcaria o ponto final do trekking. Ainda hoje é possível ver o que restou da indústria baleeira que funcionou ali entre 1904 e meados dos anos 60. O Maquinário enferrujado segue encravado no solo e não se pode chegar na antiga vila onde ficavam as casas e a casa do governador. A recomendação é permanecer a 200 metros de distância, pois além do risco de desabamento dessas construções, o ar inalado devido às telhas de amianto causam danos pulmonares severos.
Seguindo essas normas, ao desembarcar, tomamos fôlego e iniciamos enfim o nosso trekking centenário. Todos juntos, inclusive os alpinistas, fariamos a Shackleton Walk invertida e pela metade. Não importava a ordem dos fatores, estávamos lá, pisando em solo sagrado para nós, amantes de uma história e seguidores de um líder.
Saindo da praia, iniciamos a caminhada no Shackleton Valley. Quase tudo ali leva o nome da expedição de Shackleton. O solo é irregular, cheio de pedras por onde correm pequenos riachos oriundos do degelo das montanhas próximas. Conforme se caminha, o pé afunda no lodo enxarcado e apesar de curta, a marcha chega a ser cansativa com o movimento de levantar as botas pesadas. Nos momentos em que eu parava para descansar, talvez durante os mesmos 2 minutos de Shackleton, eu olhava para trás e ficava imaginando a sensação que eles devem ter tido ao caminhar naquele solo que em maio de 1916 já devia estar repleto de neve, o frio, a ansiedade dos últimos intermináveis passos rumo à salvação. Chega a ser quase inacreditável que fizeram aquilo 100 anos atrás com as roupas e materiais da época. Eu estava usando 3 camadas de calças e 4 camadas de roupa na parte superior, balaclava, gorro e luvas, 2 pares de meias, e botas impermeáveis feitas para regiões polares e mesmo assim quando parava de me movimentar ainda sentia o vento gelado. A temperatura estava em torno de 2°C mas com o efeito do vento a sensação térmica chegava a - 15°C.
No final do vale, onde começam as montanhas, um deslumbre: A Shackleton´s Waterfall. A pergunta se repetia. Porque eles desceram a cachoeira com tantos outras possibilidades ao redor? Talvez não enxergassem muito, e a presença de gelo ao redor não inspirava segurança. Foi Shackelton que desencorajou a descida em outro local por não achar seguro. Além disso, enquanto não enxergassem a praia, poderiam seguir o curso do riacho.
A cachoeira do rapel dos nosso heróis era acessível, foi escalada por nós e até fotografada com o cover de Shackleton. Em um dos momento mais especiais, o grupo todo se reuniu para ler um trecho do livro South, de 1919, onde Shackleton narra a descida da cachoeira e o caminho através do vale. Após uma oração e com os olhos marejados, tomamos o caminho de volta. Dessa vez, finalmente, caminhamos no mesmo sentido da travessia original, olhando o mesmo mar e o teto das casas que aqueles homens viram há 100 anos. Cada um de nós levava no peito a satisfação de realizar um sonho e a certeza das infinitas possibilidades da vida, carregados de novas esperanças.
Ilha Elefante e a ilha da Decepção
Uma das coisas que aprendi durante os 22 dias a bordo, foi que na Antártica tudo é imprevisível, por mais que você tenha recursos sofisticados e consiga fazer previsões adequadas. É um desafio constante para o comandante e o líder do grupo trabalharem nessas condições e a segurança sempre estava em primeiro lugar. Aguardar a melhora do tempo para arriscar a Traverse com 12 alpinistas, comprometeria a expedição de outras 100 pessoas. A maioria delas estava capacitada apenas para a Shackleton Walk e mesmo assim alguns não estavam seguros se iriam conseguir completá-la. Entretanto, aproveitamos todas as oportunidades e conseguimos desembarcar 17 vezes, o que é considerado excepcional em viagens de turismo na Antártica.
Algumas pessoas estavam refazendo a viagem pela segunda e até terceira vez em uma tentativa de desembarque na Ilha Elefante. Navios turísticos não vão lá. Mas como se travata da viagem do centenário, a ilha era o local mais especial e remoto da nossa aventura. Nada do que aconteceu na Ilha em 1916 restou. O governo Chileno fez questão de homenagear o Piloto Pardo, comandante do navio Yelcho, que resgatou os 22 sobreviventes, inaugurando um busto de bronze no local. Na nossa tentativa de chegar lá, o mar estava tão agitado que não pudemos nos aproximar e nem sequer avistar a ilha. Acredito que tenhamos passado perto dela durante alguma madrugada de navegação entre a Geórgia do Sul e a Península Antártica. Se a não tentativa de aproximação e desembarque foi ou não a consequência fatídica daquele primeiro dia perdido, o dia das bruxas, nós nunca saberemos.
Nos despedimos dos mares da Geórgia do Sul e seguimos rumo ao continente. Pisar na Antártica propriamente dita, tem registro e certificado para aqueles que o fazem. O ponto de escolha foi Brown Bluff. Foi incrível navegar no Antartic Sound repleto de Icebergs tabulares e desembarcar em Deception Island. A ilha, tem formato anelar, como um atol e seu interior é a cratera de um vulcão que desabou. Suas águas são calmas, quentes e sulfurosas e lá acontece o famoso Polar Plunge, um verdadeiro mergulho antártico para os corajosos. Entrar na Baía, no interior da cratera, é um desafio para as embarcações pois a abertura do anel é estreita e rasa. Muitos navios e veleiros se abrigam em suas águas calmas e o local serve além de abrigo, como porta de entrada para a Antártica. Engraçado o fato da Ilha Elefante ter sido a Ilha da Decepção na nossa viagem e a verdadeira ilha da Decepção, ou Deception Island, ter sido a ilha mágica e inesquecível.
De volta para casa
Atravessaríamos o Estreito de Drake pela primeira vez com destino à Ushuaia. Foram dois dias de ondas altas. Porém o Drake estava como um lago para nossa sorte. O nosso último dia nos mares do sul nos reservou um espetáculo à parte com um maravilhoso pôr-do-sol. Envolvida em um clima de emoção, abraçada entre as duas melhores colegas de cabine que eu poderia ter, e com todos a bordo na popa contemplando aquele deslumbre, me lembrei de uma frase de Shackleton no livro South, de 1919, sobre os dias que eles passaram na busca pela sobrevivência:
'When I look back at those days, I have no doubt that providence guided us'.
'Quando eu me lembro daqueles dias, eu não tenho dúvida que a providência nos guiou'.
Assim, a Antártica se despediu de nós, e apesar de não completarmos a Traverse e termos feito apenas uma parte da Shackleton Walk, fomos afortunados com tantas outras experiências não menos incríveis e com o aprendizado de tudo que compartilhamos. A Traverese continuará lá para ser desafiada por aqueles que se dispuserem a seguir as pegadas de Shackleton e assim ajudar a perpetuar os rastros deixados por essa história.
Daniela Silvestre |