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Texto: Antônio Calvo
15 de maio de 2018 - 10:00 |
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Antônio Calvo e Danielle Pinto na primeira parada da via enquanto Mônica Filipini segue escalando. Crédito: Daniel Cotellessa |
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O barulho do pesado martelo esmurrando forte no batedor ecoava pelo vale abaixo. O som, de ferro com ferro continha um certo ritmo. Foram necessários 60 minutos - 1 hora ! - para furar sete centímetros de rocha. Eu respirava ofegantemente e suava como nunca, suava de nervoso; eu não podia parar sequer um segundo para descansar. Estava a uns cinco metros do chão pendurado num pequeno gancho metálico, cuja ponta sentava sobre uma saliência na rocha: uma pequena agarra de gnaisse que eu rezava para não quebrar com o meu peso. Aliás, era justamente o meu peso que o mantinha no lugar: qualquer movimento brusco para os lados ou para cima poderia tirá-lo da posição e me jogar para baixo. Mesmo com uma corda de segurança amarrada em minha cadeirinha de escalada o tombo seria feio. Quando inseri o parafuso no furo e fixei a chapeleta com a porca, consegui, enfim, ter um local seguro para descansar. Esse seria o primeiro dos cinco furos ainda por vir. Eu estava conquistando uma nova via de escalada na Face Sul da Ana Chata, em São Bento do Sapucaí. Decidido que queria abrir uma via da maneira mais tradicional possível, não pedi uma furadeira emprestada - onde eu estava com a cabeça? - aos amigos escaladores da cidade. Resolvi (junto com os parceiros Carlos “Charlie" Alves e Danilo Hecht) fazer tudo à mão, à moda antiga, da maneira mais “analógica" possível.
Dois anos depois, em abril de 2018, voltei para finalizar a segunda parte da via: os últimos trinta metros (dos sessenta de parede); mas, desta vez, com mais experiência na bagagem e uma furadeira na mochila. O trabalhou voou com a furadeira e em três investidas o final da “Renascimento da Antiguidade" - 6º VIsup A0 E2 D1 60m - estava pronto. Era preciso, agora, convidar os amigos para repeti-la. Numa rápida troca de mensagens, as amigas Mônica Filipini e Danielle Pinto aceitaram o convite e lá fomos nós. |
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Danielle Pinto no primeiro lance de aderência da via. Crédito: Antônio Calvo |
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A brisa do outono trazia um vento frio. Vesti meu casaco e continuei tirando algumas fotos enquanto as duas exploravam os detalhes da via. A Dani guiou a primeira parte, eu fui o segundo a subir e logo depois a Mônica juntou-se ao grupo no meio da parede. Fiz as contas de quantas vezes eu pisara ali, no exato lugar onde estava agora. Era a quarta vez. Era a quarta vez que eu estava ali. Entre todos os seres humanos da terra, eu fui o primeiro a chegar até ali, simplesmente porque no dia em que conquistamos este trecho eu estava na frente da empreitada (o Charlie conquistou outras partes da via). E qual a importância disso tudo? Nenhuma. Eu nunca abri vias de escalada para ser o “primeiro homem a pisar na Lua”. O meu barato é outro. Eu gosto da conexão que o esporte me proporciona, gosto da maneira como tenho que focar para não me acidentar, gosto do silêncio das montanhas, da forma como a geologia cunha suas feições. Gosto da brisa do outono. Neste sentido, eu, Dani e Mônica pensamos de maneira muito parecida. Para a Dani, "escalar é uma atividade que me realiza e me conecta com tudo aquilo que acredito, com a natureza e consequentemente com a minha própria natureza essencial”. A Mônica já foi para o lado mais sentimental, porque "no inicio foi paixão instantânea - ainda é. Tinha acabado de ter a Flora, que tinha seis meses quando comecei, e a escalada me deu uma motivação enorme pra continuar na luta e buscando caminhos. Hoje também sinto que é um lugar onde me conecto, onde me encontro, conquisto minhas montanhas, compartilho momentos com pessoas incríveis, vou com meus próprios meios e chegamos aos cumes, visuais que ficam na sua cabeça para sempre e você esquece qualquer perrengue e tá pronto pra outra. Também curto demais o desafio do jogo mental de achar o caminho para subir, a preparação física e psicológica.” |
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Eu estava feliz em compartilhar a escalada com estas duas “super poderosas”. Super poderosas porque, além de cuidarem da família - cada uma tem uma filha - cuidam da casa, trabalham e ainda conseguem tempo para escalar. E escalam muito. A determinação que vem delas é tão bacana que em 2017 a cineasta e atriz Renata Calmon decidiu que valeria a pena gravar um curta metragem sobre a escalada feminina aqui em São Bento e, claro, as duas se tornaram o centro do projeto que, segundo a apresentação no Catarse, "pretende investigar essas mulheres desbravadoras que se arriscam praticando um esporte tão ousado e perigoso”. O título? “Mulheres São Montanhas” - confira o trailer aqui e ajude-as a finalizar o documentário!
A Renata começou a escalar recentemente, aproximadamente um ano atrás, inspirada no documentário Valley Uprising, que narra a história da escalada em grandes paredes - big wall - no Parque Nacional de Yosemite, nos Estados Unidos. Para ela, escalar significa "conectar com a montanha, com o (a) parceiro (a) com quem estou escalando, e comigo mesma. Eu sou atriz e a sensação que eu tenho ao escalar é muito parecida com a de subir no palco. A adrenalina de me conectar com o público é parecida com a de estar na rocha, a não sei quantos metros de altura. E o transe… Você cessa os pensamentos cotidianos e banais e entra numa outra sintonia, quase meditativa, um outro estado de atenção”. O Valley Uprising é ótimo e está disponível no Netflix. Numa das passagens mais impressionantes do documentário, a escaladora Lynn Hill conta um pouco da sua experiência. “A conquista da nossa geração foi a escalada livre” ela diz e o narrador explica, intercalando com falas e cenas de outros escaladores da época:
“A escalada livre revolucionou o esporte. O que podemos fazer só com as mãos e pés? Nas gerações anteriores, a escalada artificial era a norma, com escaladores confiando no equipamento para segurá-los enquanto subiam um penhasco. Colocar um parafuso na rocha, colocar um estribo nele, escalar o estribo, e repetir esse processo. Tendo assistência direta do equipamento. A escalada livre mudou tudo. Agora, escaladores se seguram diretamente pela ponta dos dedos, numa extenuante dança vertical. Quando você escala em livre, apoia os pés e as mãos na rocha. Você tem de enfiar as mãos em fendas, esmagar os dedos, mover as peças de proteção toda hora. Você só usa a corda para segurar sua queda caso você caia. Você olha as pequenas agarras sem ter certeza de que terá força. Os antebraços queimam, os dedos começam a abrir… E você tem de continuar.” |
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Danielle Pinto na primeira enfiada da Renascimento da Antiguidade. Crédito: Daniel Cotellessa |
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Mais adiante, no documentário, Lynn afirma que “queria ser a primeira pessoa a fazer uma escalada livre na via The Nose do El Capitan. É a escalada mais famosa e histórica do mundo. E parecia a melhor culminância de todas as minhas habilidades como escaladora”. E um dos entrevistados, na cena seguinte, comenta: “Aí vem Lynn e arrebenta. Meu Deus, dá para fazer escalada livre no El Cap! Foi inovador, revolucionário. E foi uma mulher.” E Lynn finaliza tirando um sarro: “É possível, meninos”. Essa façanha aconteceu no início dos anos 90 e em diversos momentos do documentário Lynn explica como era viver e escalar num universo quase que 100% masculino. Perguntei às três se elas sentiam algum tipo de preconceito na escalada, apenas pelo fato de serem mulheres. "Sim, sinto preconceito por ser mulher. Acho que cada vez menos, tanto na montanha como em outras situações. Percebo que essa tendência da mulher ser vista como menos capaz que os homens para certas atividades está caindo por terra. Mas tivemos e, muitas vezes, ainda temos que provar isso”, respondeu a Dani. A Renata abordou sob outro ponto de vista: "E o que eu descobri foi o seguinte: escalada é um esporte bruto, praticado por gente bruta. Se você fica com muita frescura você é naturalmente expelido dele. Então, dificilmente um homem vai ficar com muitos dedos com uma mulher (que escala), ainda mais na escalada tradicional. Você precisa de um mínimo de força, de técnica e de resistência pra poder acompanhar. Então não acho que escaladores sejam especialmente machistas. Acho que homens são machistas e isso inclui alguns escaladores”. A Mônica também seguiu por este caminho, pois “preconceito existe em todo lugar, existem pessoas que são preconceituosas em qualquer lugar e outras não. A escalada tem também, já passei por inúmeras situações”.
Eu também enxergo, infelizmente, essa sociedade machista. Não gosto do que vejo. Eu acredito no poder feminino, no poder “da mãe”, no poder “do fogo” - talvez por ter a felicidade de compartilhar minha vida com mulheres tão seguras de si como a minha querida avó Thaïs, lúcida aos 92 anos de vida; minha mãe Luizila, um exemplo de pessoa; minha sogra Iraci, que veio de uma fazenda do interior do Paraná e fez a vida em São Paulo; e, claro, a Luiza, minha parceira de “outras vidas”, um exemplo de delicadeza. Clarisse Pinkola Estés traz uma luz ao assunto quando diz que "uma mulher não pode tornar a cultura mais consciente apenas com a ordem de que se transforme. Ela pode, no entanto, mudar sua própria atitude para consigo mesma, fazendo com que projeções desvalorizadas simplesmente ricocheteiem. Isso ela consegue ao resgatar o corpo. Ao não renunciar à alegria do seu corpo natural, ao não “comprar" a ilusão popular de que a felicidade só é concedida àqueles de uma certa configuração ou idade, ao não esperar nem se abster de nada e ao reassumir sua vida verdadeira a plenos pulmões, ela consegue interromper o processo. Essa dinâmica de amor-próprio e da aceitação de si mesma são o que dá início à mudança de atitudes da cultura.” Barbara Nickel e Mariana Bandarra também abordam muito bem esse tema: “E na terra úmida entre as raízes de uma árvore centenária, agradeça à sua mãe pela benção e enterre em si mesma aquela menina que tenta agradar todo o mundo. Dentro do manto escuro, o poder do fogo ilumina apenas aquilo que importa. O poder do fogo te transforma na mulher que você já é. Só o que não serve será queimado. Escute com atenção quando ouvir a voz que sabe. Acredite nela e ela ficará cada vez mais clara. Para a mulher sábia, a verdade ecoa através de todo o ruído. Você tem tudo o que precisa para dominar este fogo”. |
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Quando me dei conta, era a minha vez de escalar o último trecho da via. Tremia um pouco de frio, a brisa aumentara a velocidade e com isso a sensação térmica baixara. A Dani já estava no cume e me chamava para escalar, “segurança pronta” ela gritou. Guardei rapidamente todo o equipamento fotográfico, vesti a sapatilha, dei tchau para a Mônica e toquei para cima num terreno recém descoberto dias atrás… Algumas agarras ainda estavam sujas, cobertas por musgos e líquens, como se estivessem assim há milênios. Cheguei no cume e comemorei com a Dani; em seguida chegou a Mônica, toda eufórica e sorridente. Encerrávamos, assim, mais um dia em nossa pacata vida sambentista.
"Será que existe alguma coisa de diferente na amizade entre mulheres, que a torna especial?” se perguntou a psicanalista Helena Albuquerque, da Universidade de São Paulo.
“As mulheres costumam fazer muitas coisas juntas. Não é raro vê-las em pares ou em grupo no cinema, fazendo compras, viajando, olhando vitrines, andando no parque, indo a shows, a exposições, almoçando, e tudo isso sem parar de conversar (mulher fala, não?!). Romances, relacionamentos, rompimentos, perdas, filhos, profissão, roupas, menstruação, tpm, menopausa, exercícios, sexo, etc; assunto é que não falta! Uma grande amiga minha chama de “sair para mulherar” essas tantas atividades que fazemos juntas enquanto, ao mesmo tempo, vamos falando da vida. As mulheres trocam confidências, expõem aquilo que vivem e seus conflitos, bordam e tricotam (literal e metaforicamente), brigam, acompanham e cuidam umas das outras, numa troca recíproca e coletiva. Nas muitas atividades em companhia das amigas, aparentemente tão triviais, fios da subjetividade de cada uma de nós se entrelaçam e nos ajudam a virar mulher, a ser mãe, a ser amiga, a casar, a ter filhos, a descasar, a trabalhar, a enfrentar a saída dos filhos de casa, a voltar a namorar, a passar pela menopausa, a envelhecer, a fazer os lutos e tantas outras coisas. A vida seria muito mais dura se não fossem pelas irmãs-amigas, amigas-irmãs, com as quais podemos falar e elaborar tanto as dores como as delícias que vamos experimentando ao longo da estrada. “Mulherar” ajuda a fabricar tecido psíquico, um tecido que vai sendo bordado coletivamente, criando novos desenhos e novas formas de pensar e dar sentido às nossas vivências e à nossa história.” |
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No cume, a dupla feminina conversando sobre os lances da via. Crédito: Daniel Cotellessa |
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No fim da manhã, já descendo a trilha de volta ao carro, eu quis verbalizar às duas algo honesto, algo que representasse o meu sentimento com aquela escalada. Era um misto de euforia, uma vitória pela via conquistada e uma alegria pela primeira repetição. Mas as palavras não saíram da boca… E logo mudamos de assunto. Mas agora eu sei o que gostaria de ter dito: “Obrigado por “mulherarem" comigo”.
O documentário Mulheres São Montanhas precisa da sua ajuda: entre por aqui no Catarse e deixe sua contribuição. Elas merecem, assim como a escalada feminina brasileira. Essas lindas fotos não teriam acontecido sem a especial ajuda de duas figuras importantíssimas: Daniel Cotellessa e Jair Pires que prontamente aceitaram o convite para registrar o nosso dia. Antônio Calvo tem o apoio do Armazém Aventura e Thule.
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Croqui da via |
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